quinta-feira, 25 de outubro de 2012

JULGAMENTO: "Mensalão" e algumas discussões jurídicas no julgamento mais importante do Supremo em 2012.

Em 1940, o criminólogo norte-americano, Edwin Sutherland, publicou pela primeira vez a expressão "White Collar Crime"  (crime de "colarinho branco") para caracterizar a criminalidade desenvolvida pelos mais ricos e influentes, geralmente praticada por pessoas respeitáveis ou de forte prestígio social, no exercício de uma determinada função. No desenvolvimento de sua teoria, Sutherland procurou estabelecer as bases e as razões pelas quais indivíduos detentores do poder político ou econômico ainda sentiam a necessidade de delinquir e, o que é pior, ao praticar esses delitos, agiam com tamanha naturalidade que parecia que suas condutas seriam inofensivas ou não fariam mal a ninguém. Dentre os vários crimes associados a essa teoria, podemos destacar os atos de corrupção praticados por detentores de cargos nomeados ou eletivos. Nesse sentido, o recente julgamento do episódio conhecido na crônica política como "Mensalão" não destoa muito dos caracteres apontados na teoria de Sutherland.
 
Sabe-se que, em sua origem, quando o ex-deputado Roberto Jefferson apresentou o caso à opinião pública, o suposto "Mensalão" teria ocorrido após  a histórica vitória do ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002. Novo governo, nova base aliada, novas esperanças, assumindo o poder sob a desconfiança dos mercados (apesar da histórica "Carta aos Brasileiros"), o governo do representante do Partido dos Trabalhadores sabia dos inevitáveis obstáculos políticos que o esperavam, e da necessidade de se cooptar apoio externo, principalmente da bancada parlamentar. Para isso, segundo a denúncia formulada pelo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, integrantes do governo daquela época (entre eles, o ex-todo poderoso Chefe da Casa Civil, e ex-deputado José Dirceu) compraram apoio político, aliciando parlamentares mediante a compra de votos em votações fundamentais, nos primeiros meses do novo mandato presidencial, praticando, para isso, diversos atos criminosos. Aquilo que na opinião dos defensores dos réus seria apenas a formação de um "Caixa 2" em campanha eleitoral (o que por si só já é errado), transformou-se numa rede de intrigas e corrupções, que culminou não apenas com a queda e exoneração de cargos públicos de diveros políticos, como também com a responsabilização criminal de quase todos eles, numa avalanche de denúncias e punições que culminou com o julgamento do volumoso processo criminal das semanas anteriores, no Supremo Tribunal Federal.
 
O processo do "Mensalão" (na verdade, a Ação Penal nº 470) irá entrar na história não como o mais complexo dos processos criminais já julgados por uma Suprema Corte no Brasil, envolvendo uma quantidade tão grande de personalidades da vida política nacional,  mas sim pela polêmica de seus fundamentos jurídicos, pelas controvérsias sucessivas e inflamadas entre o infatigável ministro relator (Joaquim Barbosa) e o revisor (Ricardo Lewandowski); o fracasso retumbante de medalhões da advocacia brasileira na defesa dos acusados, como o eminente jurista Márcio Tomaz Bastos, que não conseguiram inocentar a maioria de seus clientes, réus do processo; a pressão midiática constante e onipresente durante o processo, que tornou seu julgamento o mais televisionado e o mais comentado da história jurídica recente, em nossos verdes trópicos; além da instrumentalização política e da demonstração cabal de uma cristalizada rivalidade partidária entre as duas principais agremiações políticas do Brasil: o PT e o PSDB.
 
Dentre as teses jurídicas controversas, uma das que foi utilizadas para facilitar a condenação dos réus pelo tribunal foi a da dispensabilidade de ato de ofício nos crimes praticados contra a administração pública. Mudando entendimento anterior da própria corte, em relação a processo julgado nos anos noventa do século passado, quando foi inocentado o ex-presidente da República, Fernando Collor de Melo, os ministros do STF em sua maioria entenderam que, agora, não há a necessidade de que seja praticado um ato de ofício, decorrente da condição do servidor ou agente público de detentor de cargo ou mandato eletivo, para que se configure o crime de corrupção passiva, definido no art. 317 do Código Penal. Agora, segundo o voto do ministro Luiz Fux, basta que o detentor do cargo que solicitou ou recebeu para si ou para outrem, vantagem indevida ou aceitar promessa de vantagem, tenha autoridade para solicitar ou receber tal vantagem ou promessa; pois o ato de ofício é produzido pelo servidor no exercício da função, mesmo quando ele não for provocado. Os ministros entenderam, então, que, por exemplo, pela sua qualidade de chefe  da Casa Civil, o ex-ministro José Dirceu não só poderia, como teria a autoridade para saber que estava havendo compra de votos no Parlamento pelo Executivo, fazendo parte de uma trama urdida por um publicitário do setor privado (Marcos Valério) e por um ex-tesoureiro de partido (Delúbio Soares), no sentido de arrecadar dinheiro a fundo falso perante bancos, beneficiados em contratos estatais, a fim de desviar dinheiro público oriundo desses bancos para não só financiar campanhas eleitorais (como aconteceu não apenas com a campanha do PT para a Presidência, como também do PSDB, anos antes, ao governo do estado de Minas Gerais), como também para pagar parlamentares da base aliada do governo, a fim de votar em projetos de interesse do Poder Executivo.
 
Outra teoria que passou a predominar no julgamento do Supremo foi a do "domínio do fato", já consagrada há mais de cinquenta anos no direito alemão (através dos estudos do jurista Hans Welzel), mas que só veio a ganhar destaque no Brasil na segunda metade dos anos oitenta do século passado, quando então  a velha teoria causalista, de orientação positivista, deixou de ser empregada em sua totalidade, em determinados casos de crimes praticados em concurso de agentes, onde era necessário identificar a figura do "chefão" ou do mandante. Tal teoria caiu como uma luva no julgamento dos "mensaleiros" condenados pelo STF. Mais uma vez, sobrou a pecha de líder de uma organização criminosa, para o ex-deputado, ex-militante estudantil, ex-ativista político e ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. O que valeu aqui, nos supostos atos criminosos praticados, não foi a participação direta do ex-ministro nas negociatas e atos de corrupção que levaram ao "Mensalão", mas sim sua posição no tabuleiro político, como chefe da articulação que teria domínio sobre todos os acontecimentos que se desenrrolaram durante o tumultado primeiro semestre do mandato do ex--presidente Lula. 
 
De qualquer forma, divide-se a comunidade jurídica entre os que acreditam que o julgamento do "Mensalão" é um marco divisório, na formação de uma jurisprudência sobre casos de corrupção no país, e outra que considera que a tarefa do tribunal se deu muito mais de forma casuística, insuflada por pressões políticas e pelo apelo da opinião pública graças a maciça intervenção dos meios de comunicação na abordagem do caso. Para os velhos estudiosos da criminologia, atos supostamente atribuídos a homens públicos como os "Dois Josés" (José Dirceu e o ex-presidente do PT, José Genoíno), Valdemar Costa Neto, Roberto Jeferson, João Paulo Cunha e uma dezena de políticos e parlamentares de diversas legendas, aliados do governo, atos criminosos que geraram o "Mensalão" são tão corriqueiros quanto é corriqueira a relação de determinados indivíduos com cobiçados cargos de poder, inseridos na Administração Pública ou presentes em instituições privadas. Por fazer a velha política é que os reús do processso julgado com esmero pelo STF agiram como típicos criminosos do colarinho branco, valendo-se de seu prestígio social, ou da importância de seus votos, em votações importantíssimas para o governo, a fim de barganhar vantagem pessoal, lucro financeiro, ou simplesmente para comprovar que determinadas funções públicas só funcionam na base da "grana". É, sem dúvida, uma situação lamentável!
 
A única unanimidade que se coloca até o momento diz respeito ao destino do publicitário Marcos Valério, pivô da rede de relações que culminou com o "Mensalão", pessoa física e particular que amealhou vultosas somas em dinheiro, através de empréstimos a bancos e movimentações financeiras, para beneciar a si próprio e os demais réus do processo. Valério atuou como um mercador da política, um homem da iniciativa privada que reduziu a articulação política dentro do seara estatal num negócio, como se dá tristemente na espúria relação que se estabelece, de quando em quando, na economia capitalista, entre o mercado e o Estado. Por conta disso, sua condenação deve ser uma das maiores, e é grande a possibilidade do empresário ir para a cadeia, por conta do somatório de suas penas indicar um regime inicialmente fechado de cumprimento de pena. Pode-se dizer então que foi Valério um dos maiores prejudicados no julgamento do "Mensalão"; mas,  sem dúvida quem perde mais com isso tudo é o cidadão brasileiro, especialmente aquele que ainda acredita na credibilidade de nossas instituições, e que, independentemente da coloração ideológico-partidária, crê que os agentes públicos possam realizar com um mínimo de ética e decência as atribuições políticas dos cargos a que foram eleitos. Ganha em credibilidade o Supremo, especialmente através das manifestações aguerridas e inquebrantáveis do relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, recém-empossado como presidente de nossa Suprema Corte, incensado pela mídia (em especial pela mídia oposicionista ao governo), como um dos heróis do julgamento, graças a suas posições duras e convictas quanto a responsabilidade dos acusados. Que o episódio do "Mensalão" ao menos passe para a história como uma lição política de como novos governos, progressistas, e com forte apelo popular, identificados com o novo, não se valham de velhas formas politiqueiras relacionadas com vetustas e anacrônicas formas de disputa de poder que não podem mais ser aceitas numa democracia. É pagar pra ver o que vem após esse julgamento do Supremo.