quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

VIOLÊNCIA: No RN, é assassinada a advogada Vanessa.Na África do Sul, Pistorius mata a namorada. Em ambos, a violência contra a mulher e a dominação masculina.

Passei a última semana com dois fatos chocantes que abalaram a mídia local, no Rio Grande do Norte e a mídia internacional. Em ambos os casos, viu-se uma demonstração de violência e horror extremos, que culminaram com o assassinato de duas mulheres pelos seus respectivos companheiros. No RN, a advogada Vanessa Ricarda de Medeiros foi brutalmente assassinada pelo seu ex-namorado, o policial militar Gleyson Araújo Galvão, em um motel, na cidade de Santo Antonio, há 20 km de Natal, capital do estado. Vanessa foi morta a pancadas, com vários golpes de um pedaço de madeira na cabeça, ficando com o rosto desfigurado, e deixando atônita uma sociedade inteira, com o impacto de tanta violência.

A advogada Vanessa Ricarda:morta brutalmente. 
Vanessa tornou-se advogada no ano de 2011, e foi da turma concluinte de 2010 da Faculdade de Natal (hoje vinculada ao grupo Estácio de universidades), do curso de Direito daquela instituição, a qual também leciono. Conheci Vanessa quando era estudante, logo que entrou no curso, e fui seu professor por dois semestres. Naquela época, tive a oportunidade de conhecê-la e com ela fazer amizade, assim como fiquei amigo de uma centena de alunos que passaram por aquela faculdade e por outras instituições de ensino onde dou aulas. Era uma moça bonita, vaidosa, que gostava de praticar esportes, ir à academia, mas também não descuidava dos estudos. Vinha de uma família modesta, do interior do RN, e com suas duas irmãs resolveu fazer o curso de Direito,como uma busca de ascensão social que milhares de jovens procuram todos os dias no Brasil, lotando salas de aula de pequenas faculdades e grandes universidades. Eu a admirava principalmente pela força de vontade, a vinculação forte à família, apesar de saber pouco de sua vida amorosa. Somente ao saber de sua morte (o que muito me entristeceu) é que soube que ela tinha uma relação complicada com um rapaz de hábitos violentos, que acabou se tornando seu algoz.

No outro lado do mundo, atravessando o Oceano Atlântico em destino a outro continente, um outro caso envolvendo pessoas famosas mundialmente, acabou se tornando bem parecido com o triste assassinato da jovem advogada Vanessa. O atleta paraolímpico Oscar Pistorius, considerado um dos maiores corredores de todos os tempos, chocou o mundo, ao ser preso e acusado de matar a tiros e pancadas sua namorada, a loira e bela modelo e apresentadora de TV, Reeva  Steerkamp. Foram ao menos três disparos de arma de fogo que Pistorius efetuou contra sua companheira, encerrando uma breve vida de 28 anos. Agora, preso, desmoralizado e correndo o risco de ser condenado à prisão perpétua, Pistoriu vê desabar sobre si não apenas  o seu mundo, mas também o seu mito; assim como outro corredor, o ciclista Lance Armstrong, também se viu desmoralizado por um delito menos violento, mas tão grave quanto: ao ser acusado de ter praticado o maior estelionato da história do esporte mundial, ganhando títulos olímpicos e a Volta da França, valendo-se de doping, Que triste imagem desses ex-atletas.

São inúmeras as teses criminológicas que explicam a violência contra as mulheres. Eu vou expor apenas uma, vinculada à sociologia, e que explora menos os crimes passionais, mas sim as relações de dominação que antecedem atos mais violentos contra o gênero feminino, e que servem de pressuposto para toda forma de abuso e humilhação por que passam as mulherees em todo o mundo: a dominação masculina. É lendo Pierre Bordieu, um dos mais consagrados filósofos e sociólogos do século XX, que eu tento entender a lógica de dois assassinatos tão distantes no espaço e na fama de seus personagens, mas tão próximos em seu modus operandi, como se deu com as vítimas Vanessa Ricarda e Reeva Steemkamp. Vou expor apenas uma parte da palestra e artigo que estou preparando para o V Congresso de Direito Penal & Psicologia Criminal, a acontecer nos dias 12 e 13 de abril, na cidade de João Pessoa, quando serei um dos conferencistas. Aqui vai alguma de minhas reflexões sobre o tema:

Pierre Bourdieu foi um dos grandes pensadores das Ciências Sociais no século XX, não apenas retomando a tradição dos clássicos (como Durkheim, Weber ou Marx), mas inovando, através de novas pesquisas sobre a sociedade e seus indivíduos, além de ter estabelecido um vasto e próprio vocabulário, resultante de intenso labor intelectual que rendeu obras clássicas, como a mais famosa intitulada "A Dominação Masculina". Neste livro, o filósofo e sociológo francês procurou observar que as práticas de dominação de gênero estavam no centro de nossas economias simbólicas. Sobre o conceito de economia simbólica, Bordieu traça um panorama conceitual extraído inicialmente da teoria de Marx, paraa desenvolver um aparato teórico com voo próprio, utilizando termos originariamente empregados à economia política para traduzir relações socioindividuais.

Assim, Bourdieu trabalhou o conceito de campos e de capital simbólico para explicar as relações de poder e dominação em uma sociedade. Sobre campo pode-se entender uma reformulação do conceito original de classe social desenvolvido por Karl Marx, como um espaço onde não se dão apenas trocas econõmicas, mas sim trocas simbólicas, de acordo com a valorização que cada um dentro desse campo social dá à conduta do outro. Por meio das interações entre indivíduos pelo simbolismo da conduta que representam, constrói-se um capital simbólico, que implica em todo o resultado de um processo de formação e valorização de atributos que são dados a alguém dentro do campo social ou por si próprio,  à medida que vai desenvolvendo suas atividades dentre de um específico ambiente social. Junto ao conceito de campo une-se o de habitus, que consiste, na teoria de Bourdieu, numa "objetividade de práticas subjetivas"; ou seja, é todo conjunto de noções formadas dentro de um campo que antecedem à ação dos integrantes desse mesmo campo social. Tomo por exemplo a formação de um campo estruturado em relações familiares, onde a figura paterna desfruta de um capital simbólico próprio, e como habitus as normas ou conceitos da tradição sobre a paternidade, que são seguidos por todos dentro do ambiente familiar, e depositados na figura do pai, que passa a acumular um poder de dominação simbólica por meio da autoridade de pai de família.

Desta forma, na relação entre homens e mulheres, Bourdieu irá perceber que, historicamente, as representações sociais entre gêneros são diferenciadas, aparecendo sempre a mulher como sexo frágil ou como aquela a quem a tendência das trocas simbólicas é a de sujeitar ao homem. Essa situação de sujeição condiciona tanto homens quanto mulheres, a despeito da evolução histórica das sociedades, havendo ainda uma relação hierarquizada em que a mulher permanece numa posição secundária. Bordieu analisa o quanto instituições como a igreja, escola ou família terão um papel preponderante na manutenção dessa desigualdade, ao suscitar pela crença a inferioridade ou fragilidade feminina, e sua consequente dominação à figura masculina. Ora, na estrutura das relações sociais, formam-se habitus que são interiorizados como naturais, justificando a desigualdade, ao cúmulo de se chegar a situações em que a demonstração final da dominação se dá pelo gesto de submissão da mulher ao ato sexual. Nesse sentido, a lógica autoritária de um sistema de dominação masculina acaba por legitimar a conduta de diversos agressores e até mesmo estupradores; no momento em que mesmo se o poder masculino for questionado, o destino final da mulher será, na linguagem da alcova, " acompanhar seu homem até a cama".

O problema da formação desse habitus é o da formação de uma normatividade própria e autoritária dentro do campo social onde se dá a dominação, a ponto de um dos gêneros permanecer encurralado à disposição do outro, já que compete ao gênero masculino, face o capital simbólico desenvolvido, o de eterna proteção (leia-se subjugação) do gênero feminino. Qualquer violação a essa orientação normativa tende a ser bastante conflituosa, com resultados, até mesmo graves para àquelas sujeitas a esses esquemas de dominação. Bordieu recorda que a religião (especialmente as de matriz judaico-cristã) tende a cristalizar a ideia de um cosmos masculino, de um Deus masculino e não feminino, e se de qualquer forma a mulher venha a contrariar essa ordem imposta, isto pode implicarr não apenas num pequeno castigo, mas até mesmo na sua destruição.Daí poder se entender melhor até que ponto determinadas mulheres, como as que vimos aqui nos casos de homicídio relatados, pagam um preço caro, com a própria vida, por desafiar determinados esquemas de dominação.


O pranto do atleta no tribunal, após o crime.
Tanto Pistoris quanto Gleyson tinham seu capital simbólico para ostentar e talvez tentar empregá-lo para exercer alguma forma de dominação contra suas vítimas. Oscar Pistorius era um atleta consagrado, uma celebridade em seu país, além de rapaz de origem rica, de família bem abastada, que com suas próteses de titânio no lugar pernas, conseguia superar de forma magnifica a deficiência física de ter nascido sem os membros inferiores, tornando-se um dos mais famosos velocistas do mundo. Todos os indícios apontam para a tese de homicidio qualificado, onde a resistência da vítima foi totalmente reduzida ou anulada, com certa dose de premeditação, apesar do atleta sul-africano insistir na sua defesa, dizendo que tudo não passou de um erro fatal, ao confundir sua mulher com um assaltante. Ao confirmar que dormia com uma arma embaixo de seu travesseiro, Pistorius não deixou de incorporar o capital do macho protetor, que, destituído de pernas reais, apoiava-se numa muleta muito mais perigosa, capaz de efetuar disparos e projetar balas que acabaram perfurando e matando o belo corpo loiro e jovial de Reeva Steenkamp. Ainda é cedo para dizer se Oscar Pistorius ficará na cadeia, preso provisoriamente sob a acusação de um homicídio que pode lhe dar a prisão perpétua; mas sabe-se que, desde já, o ex-atleta falhou no seu papel de dominação, ou o exerceu de forma extrema demais; caso se comprove que a motivação do delito deu-se por conta de um briga, e que, mais uma vez, um suposto crime passional possa ser elucidado. Caso isso aconteça, está mais do que provado que a dominção do homem sobre a mulher não é apenas nociva socialmente, mas também pode se comprovar o mais homicida meio de exterminar a vida de mulheres que, simplesmente, não querem se tornar propriedade de seus companheiros.

Gleyson:assassino confesso da advogada morta.
Gleyson Galvão, por sua vez, era um simples policial, um homem comum, mas um agente armado da lei,que com seu uniforme simbolizava todo o aparato repressivo do Estado. Sob o signo da autoridade que, sob a farda, exige exercer sua representação social do macho, no habitus definido por Bordieu, não restou muito à pobre advogada Vanessa senão tentar reproduzir a lógica natural da dominação, ao ser "raptada" (segundo alguns) ou"convidada" a ir ao motel junto com seu algoz, segundo a versão de outros testemunhos no inquérito que apura sua morte. No momento, entretanto, que a jovem advogada rebelou-se, atingida na sua condição de gênero dominado, restou-lhe a cruel punição masculina, por meio da morte, numa sentença inesperada e não anunciada, que acabou tirando-lhe os poucos anos de vida.

Enquanto isso, as respectivas vítimas desses assassinos confessos driblavam a dominação dentro do mesmo campo social que compartilhavam com seus companheiros. Jovens, belas e bem sucedidas profissionalmente, estas mulheres rivalizavam com seus ex-companheiros, ganhando uma autonomia ameaçadora em relação à dominação deles, questionando seu lugar de sujeição. Antes de sua morte, a advogada Vanessa foi até o munícipio de Santo Antonio para encerrar as atividades de um escritório de advocacia que mantinha na região, segundo testemunhas, exatamente por conta das perseguições de seu  ex-namorado, que vivia e trabalhava na região. Se o "homem era a norma", como apregoava a teoria de Bourdieu, a conduta da mulher infratora que não segue seu homem poderia ser punida até mesmo com a morte, como fez com Vanessa o seu carrasco; alguém que de protetor passou a figura de supremo repressor, aplicador de sua pena fatal.


Agora, aguarda-se a definição da Justiça, com os dois principais suspeitos de dois crimes bárbaros presos, até ulterior determinação judicial. Somo-me à família de Vanessa, orando a Deus por sua família e que lhes dê o devido conforto, consolo e acolhimento, dainte de fato tão triste e desesperador. Que as famílias das vítimas, de Vanessa Ricarda ou de Reeva Steenkamp sejam saciadas, ao menos, num sentimento: o de JUSTIÇA. QUE A JUSTIÇA SEJA FEITA!