quarta-feira, 2 de outubro de 2013

VIOLÊNCIA DE ESTADO:Na barbarização das UPPs somos todos Amarildos

Amarildo Souza:mistério ou crime?
Saiu essa semana a conclusão do inquérito policial, conduzido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro acerca do caso do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido há mais de três mês, após ter sido detido e escoltado por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, no Rio de Janeiro, no dia 14 de julho. Suspeito de envolvimento no tráfico de drogas, Amarildo sumiu, e durante todo esse período, representantes da PM do Rio alegaram que Amarildo teria sido liberado pelos policiais que o escoltaram, logo após sua abordagem, e que, supostamente, ele teria sido vítima de traficantes, por queima de arquivo, já que seria comum tal prática entre a bandidagem, para evitar colaboração de seus integrantes com a polícia. Um argumento previsível e uma história tantas vezes vista na crônica policial do país, se não fosse mentira.


A última imagem de Amarildo vivo, saindo num carro da UPP.
Dias após o desaparecimento de Amarildo, reportagem da TV Globo demonstrou o início da farsa montada por integrantes da PM, quando foi revelado ao público sinais de GPS da viatura utilizada para escoltar Amarildo. O trajeto levou mais de duas horas, passando por diversos locais da cidade do Rio de Janeiro até parar em outra base da Polícia Militar. Em nenhum momento há registro da saída de Amarildo da companhia dos policiais, apenas de sua visível entrada na viatura com eles, logo que foi detido na entrada de um bar e levado para uma suposta averiguação que nunca existiu. Como consta nas imagens de uma câmera de vigilância, reproduzidas a exaustão na mídia nacional nos últimos dias, Amarildo nunca mais foi visto depois que entrou na viatura dos policiais da UPP, que deveriam ser os mesmos responsáveis por sua segurança e incolumidade física, como assegura a Constituição. Se Amarildo não estava mais com os policiais quando sumiu, ficou a pergunta, onde está Amarildo?

O relatório feito pelo delegado Rivaldo Barbosa, da Divisão de Homicídios, foi elucidativo, ao mesmo tempo que chocante: Amarildo teria sido assassinado pelos mesmos policiais que o conduziam e que alegavam que o tinham liberado. Acusados de homicídio, os PMs que participaram da diligência também são acusados de ocultação de cadáver. Dentre os responsáveis, foi indiciado o comandante da UPP da Rocinha, o agora substituído major do BOPE Edson Santos, além de ter sido pedida a prisão preventiva de todos os indiciados, levando-se em conta elementos colhidos na investigação que indicam que, por mais de uma vez, o outrora comandante da UPP da Rocinha tentou coagir ou subornar testemunhas e familiares do pedreiro, ouvidas durante a investigação. Encaminhado pela Justiça ao Ministério Público, o caso agora aguarda a definição do Ministério Público.

É, certamente, um duro golpe contra as UPPS,  cerne da atual política criminal do governo carioca, especialmente na propaganda do governador Sérgio Cabral acerca da relevância social e papel integrador dessas unidades policiais no cotidiano de violência e criminalidade no Rio de Janeiro. Em tintas corajosas e ousadas, o delegado da polícia judiciária carioca, responsável pelo caso, chega a dizer no seu relatório, em tom trágico, que a Unidade de Polícia Pacificadora, no caso de Amarildo, não contribuiu para pacificar sua vida, mas sim para destrui-la. É triste ver que uma iniciativa que pareceu, num primeiro momento, ser alvissareira na história do sistema criminal carioca, terminar assim, na reprodução das velhas fórmulas autoritárias já conhecidas do cotidiano da ação policial no Brasil. Nossa herança autoritária ainda nos persegue, a manutenção da subcultura da violência, da arbitrariedade e da simbiose entre o que é lícito e que é criminoso, ainda está presente no universo da polícia brasileira, especialmente no que diz a PM do Rio de Janeiro. Não é do dia para a noite que iniciativas inovadoras, como a tentativa de "pacificação" pelas armas (quanto paradoxo) de áreas ocupadas pela marginalidade do narcotráfico, produzirão efeitos a longo prazo na melhoria da qualidade de vida e segurança das comunidades periféricas dos grandes centros urbanos, enquanto as polícias não operarem uma efetiva transformação no seu modo de agir e pensar a sociedade.

Não um foi um Dia dos Pais perfeito para a família de Amarildo.
Tudo leva a crer (a não ser que uma grande reviravolta surja no caso e Amarildo apareça) que o pedreiro foi eliminado da mesma forma que a polícia elimina os indesejáveis na velha máquina de extermínio que se tornou o Estado brasileiro: morto e enterrado como indigente. Na vala comum onde jazem os cadáveres insepultos da impunidade, vemos essa prática se repetir desde a ditadura, quando nossos presos políticos desapareciam, e descobríamos estupefatos que mesmo décadas depois, com toda a verdade sendo revelada, os culpados não eram responsabilizados por conta da equivocada interpretação sobre uma certa Lei de Anistia, e familiares chorosos permaneciam com a indignação perene, de não ter como dar um enterro digno aos seus entes queridos. A realidade de Amarildo é a realidade dos países onde ainda predominam regimes de exceção. O quão aterrador é descobrir que no Brasil, após vinte e cinco anos de uma Constituição cidadã, ainda estamos à mercê da lógica de um Estado-policial, onde pessoas (assim como foi, outrora, na Argentina e no Chile) continuam desaparecendo, por conta da atuação estúpida de agentes de Estado.

Só me resta perguntar dentro dessa máquina assassina, trituradora de pobres, até que ponto ainda vamos estar fabricando nossos Amarildos, a rechear a crônica policial e nos chocar no noticiário nacional, na banalização de uma prática que, para a polícia brasileira, ainda parece tão corriqueira. Afinal, no discurso punitivo dos imbecis de plantão: função da polícia é simplesmente "eliminar ou dar sumiço em vagabundo!". Minha dignidade e consciência ainda me fazem corar de vergonha!