segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

CASO DILERMANDO: Racismo ou abuso de autoridade?

Coube de no penúltimo dia do ano, ainda enlevados pelo clima de congraçamento, solidariedade e festejos natalinos, o ano de 2013 ter fechado para os natalenses e para a sociedade potiguar em geral com a impressionante cena, explorada à exaustão nas redes sociais, de pura baixaria e violência, mostrando numa refinada padaria de Natal, o desembargador Dilermando Mota batendo boca numa ácida discussão com um popular, no último domingo, dia 29 de dezembro. O motivo da confusão seria, segundo relatam diversos blogs e mensagens de What's App, um desentendimento entre o citado magistrado e um garçom do estabelecimento, o que rendeu a intervenção de um terceiro senhor, retratado no vídeo, que inconformado, segundo dizem, com o tratamento humilhante a que estava sendo submetido o garçom, decidiu questionar o juiz, vindo a bater boca com ele, numa cena feia que virou caso de polícia. Segundo anunciam os meios de comunicação, quatro viaturas da Polícia Militar foram chamadas pelo desembargador para prender o garçom e seu novo desafeto por crime de desacato, e, segundo também o que relatam as fontes jornalísticas, a ocorrência não foi adiante porque os próprios populares, consumidores da padaria, que se encontravam no local, não deixaram que a polícia levasse os dois infelizes alvos da fúria do eminente magistrado.

O desembargador Dilermando já conta mais de vinte anos na magistratura potiguar. É um homem negro, de 61 anos, e por sua condição de afrodescendente foi o primeiro e um dos poucos juízes da cor negra a ingressar na magistratura do Rio Grande do Norte e o primeiro negro a ocupar a vaga de desembargador, no Tribunal de Justiça do Estado. Em 2014 ele deverá assumir a condição de presidente do Tribunal Regional Eleitoral, assumindo a responsabilidade do processo de eleições do próximo ano. Somente em função desse histórico, o currículo do desembargador já seria motivo suficiente de orgulho para o Movimento Negro no Brasil, pois, assim como Joaquim Barbosa, atua presidente do Supremo Tribunal Federal, Dilermando foi mais dos jovens negros, de origem humilde, que ao conseguir concluir o ensino universitário, conseguiu, por seus próprios méritos, galgar espaços ocupando um importante cargo na magistratura brasileira, ostentando com orgulho sua condição de juiz de direito.

O que ocorre é que, de forma precipitada, os meios de comunicação já elegeram um algoz, creditando todo um ódio e preconceito de classe a um afrodescendente por assumir uma posição de autoridade, num grau infinitamente superior ao de um trabalhador subalterno. Reacendendo um curioso conflito de classes, os meios de comunicação que, sabidamente representam os interesses de uma classe dominante, agora se apiedam de um simples trabalhador urbano (o garçom envolvido na controvérsia), e condenam a conduta do juiz Dilermando, como sendo um exemplo cabal de um capítulo do célebre livro do antropólogo Roberto da Matta (Carnavais, Malandros e Heróis). Assim, para muitos, o caso de Dilermando e do humilhado garçom reproduzem de forma lapidar a  frase do livro de da Matta: "Você sabe com quem está falando?".

Desembargador Dilermando.Celebridade instantânea nas redes sociais.
Entretanto, não obstante a ação midiática, é preciso acalmar os ânimos, e analisar sob um prisma mais racional, à luz do direito, da sociologia e da psicologia social, o que realmente pode ter acontecido na padaria Mercatto, e elucubrar as origens ou ao menos os motivos de tanta celeuma e tanta baixaria, numa cena muito mais trágica do que cômica. Não obstante o histórico de diatribes do citado desembargador, até agora ninguém comentou nas redes sociais como se deu o início da discussão entre ele o garçom, antes de outro desafeto vir a iniciar um acalorado bate-boca com Dilermando. Não se ouviu a outra parte, o outro lado da história; ou seja, não houve contraditório. Algumas pessoas narram que o desembargador exigiu que o garçom o olhasse nos olhos, e ameaçou prendê-lo por desacato por estar tratando com uma autoridade. O que precedeu isso? Será que foi apenas porque um indefeso e inofensivo garçom equivocou-se por levar gelo ao magistrado num copo de plástico? Ou haveria mais razões para ser praticado tanto desatino? É bem verdade que algumas pessoas que vem de camadas mais desfavorecidas da população, quando conseguem alcançar um cargo de destaque, seja no poder público ou no ambiente empresarial, tendem a se portar como indivíduos mais garbosos e orgulhosos, chegando a se tornar prepotentes, em alguns casos, mas nada que fuja da normalidade, ao ponto de chamar a atenção de outras pessoas. Será que não haveria aí também uma reunião de conflitos psicológicos, traumas ou experiências de preconceito, que levaram o desembargador, na sua condição de negro e não de magistrado, a ter ido longe demais?

Levanta-se nesse ponto o célebre bordão do "negro da alma branca". Talvez o desembargador Dilermando tenha se portado indevidamente, esquecendo sua origem e condição de cor e agindo como o branco da casa grande e não mais como o negro da senzala, tratando seus semelhantes como se eles fossem os negros. É possível, mas não conclusivo. Ele também pode ter assumido a condição de um "juiz Hermes", acometido de "juizite", como se lê nas obras do célebre jusfilósofo norte-americano, Ronald Dworkin; mas ele não estava na condição de julgador quando foi supostamente mal educado com um garçom de padaria. De qualquer forma, a impressão que permaneceu foi a de que alguém agiu abusivamente dentro de um local de acesso público, mesmo que as relações de dominação, exploração e humilhação de classe sejam tão cotidianas, que ninguém se refere à chamada "violência simbólica", descrita nas obras do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que é muito mais invisível e nociva, pois é vivida todos os dias nas relações que superiores mantém com seus subordinados, por questões econômicas e profissionais, que ninguém as observa. Talvez, o mal de Dilermando foi ter exposto uma característica tão comum e tão dantesca da sociedade, que fez derrubar a cortina de hipocrisia que ronda suas relações internas. Na era do "politicamente correto", patrões esculhambam com seus garçons dentro da cozinha de seus estabelecimentos ou no final do mês, na hora humilhante em que é pago um risível salário, e não na fila de uma padaria de luxo onde somente encontram-se pessoas supostamente educadas. Nesse sentido, Dilermando pecou muito mais por falta de decoro do que pela produção de uma humilhação ao seu semelhante.

Agora, se fosse o caso de racismo, e o desembargador por conta de sua cor considerasse que estava sendo menosprezado em função da tez de sua pele, ou que algum tipo de acesso ou fornecimento de serviço lhe estava sendo negado em virtude disso; ele deveria ter invocado muito menos sua condição de autoridade e muito mais de cidadão, citando o art. 8º da Lei 7.716 de 1989, que prevê pena de um a três anos de reclusão para quem impede o acesso ou recusa atendimento em restaurantes, bares, confeitarias ou lugares semelhantes, a alguém por conta de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Nesse caso, como o desembargador teria conhecimento jurídico suficiente para saber disso, creio que o procedimento correto seria, de fato, chamar o gerente para comunicar o fato, chamando a polícia se fosse constatado crime, com a realização de uma prisão em flagrante delito e não  o caso de ficar batendo boca ou mesmo querer agredir algum funcionário responsável pela prática de discriminação racial. Pelo que foi visto nas redes sociais, a emoção e o nervosismo tiraram o foco do aspecto racional.

No tocante à religiosidade, merece aqui neste espaço também uma análise. Pode-se ver na cena de vídeo ou mediante o que foi comentado, que na sua discussão com o homem enraivecido, suposto herói do garçom humilhado, o desembargador Dilermando sustenta sua condição de crente; ou seja, não estava ali somente um homem da cor negra, autoridade da magistratura e professor de ensino superior, mas também um homem cristão, evangélico. Foi na condição de cristão que Dilermando respondeu posteriormente a representantes da mídia, quando foi entrevistado sobre o assunto, e também nessa condição que ele contra-atacou o popular que o estava desafiando aos gritos, dizendo que aquele estava "endemoniado" ou que este teria feito "pacto com Satanás". Equívocos teológicos a parte, entendi que naquele momento o nobre desembargador valeu-se apenas de um dos múltiplos argumentos que poderia utilizar para afastar nervosamente seu interlocutor, já que os ânimos já estavam se acirrando. Não vejo ali nenhum componente que me leve a crer que, em algum momento, a fé de alguém foi motivo para discórdia, a ponto de se iniciar um bate-boca dos mais feios, com direito a horríveis palavrões dentro de uma padaria. Afinal, homens de Deus costumar dar a outra face; e parece que não foi o caso na controvérsia que envolveu o desembargador Dilermando.

Nas questões legais aí é que podemos estabelecer uma análise mais objetiva, levando em conta os tipos penais que foram destacados, mediante comentários nas redes sociais e nos demais meios de comunicação. Falou-se inicialmente no delito de desacato, descrito no artigo 334 do Código Penal Brasileiro, dentre os crimes praticados por particular contra a Administração Pública, e que teria sido cometido pelo garçom e pelo seu defensor na celeuma da padaria, segundo o argumento do desembargador envolvido na refrega. O desacato, em quaisquer de suas formas, visto que é um crime plurisubsistente, tem que ter como circunstância elementar, para ser configurado, a condição da vítima de ser funcionário público, no exercício de sua função pública ou em razão desta. Ora, parece-me que não foi o caso, uma vez que o nobre desembargador encontrava-se na padaria na condição de consumidor e não de magistrado, num final de semana, em plena manhã de domingo. E, ao menos que se prove que ele se encontrava na condição de juiz de plantão, ou estava envolvido em algum café de manhã patrocinado pelo Tribunal de Justiça, não há de se falar na existência de crime de desacato; mas sim em outros, que podem muito bem ser tipificados, tais como a injúria, uma vez que o vídeo reproduzido exibe a existência de muitos xingamentos, ou até mesmo ameaça, pela forma ameaçadora como os contendores se perfilavam em frente ao vídeo, sendo que um deles chegou a bater com uma cadeira, no prenúncio de uma possível agressão física futura, o que, felizmente, não ocorreu.

Pode acontecer até mesmo um crime de abuso de autoridade, previsto no art. 4º da Lei 4898/65, quando diz que também se configura o abuso de autoridade: "o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal".  Entretanto, para isso acontecer seria necessário comprovar que a honra do referido garçom foi efetivamente comprometida mediante alguma condição humilhante a que fosse submetido por ação do mencionado magistrado. Segundo o art.3º da citada lei, na alínea "j", o abuso de autoridade também pode acontecer quando ocorre algum atentando "aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional", como diz a lei. Para isso, teria que ficar comprovado que o desembargador Dilermando impediu o garçom de exercer o seu trabalho, impossibilitando-o, por exemplo, de servir outras mesas, sob ameaça de prendê-lo por desacato se ele não lhe desse atenção, o que pode ser facilmente observado por advogados, com a apresentação de prova testemunhal.

De qualquer forma, percebe-se que, ao menos, uns dos agentes públicos envolvidos no episódio não fizeram a sua parte: a Polícia Militar. Se quatro viaturas da PM, como foi dito, estiveram no local, atendendo rapidamente e com uma riqueza de efetivo algo que nem sempre é vislumbrado no cotidiano da atividade policial em Natal, deveriam os prestativos homens da lei terem levado as partes envolvidas até a delegacia de polícia mais próxima, mesmo que isso não envolvesse prisão. O crime de desacato, por força no disposto no art.69 da Lei 8.099/96, no que tange aos Juizados Especiais Criminais, diz que os crimes puníveis com até dois anos de privação de liberdade serão encaminhados ao Juizado mediante termo circunstanciado, o que impede em síntese, a realização de uma prisão em flagrante. Todos os envolvidos no episódio deveriam ter sido levados a uma delegacia de plantão, onde uma serena autoridade policial teria o preparo técnico e a sabedoria de lidar com o problema, ouvindo todos aqueles presentes ao fato; e lavrando, se fosse o caso, o competente termo circunstanciado. Não foi o que ocorreu na ação dos policiais militares chamados para atender o chamado do desembargador, numa clara seletividade típica dos aparelhos de Estado quando se trata de relações de classe. Numa luxuosa padaria de classe média, localizada em um dos bairros nobres da capital potiguar, e com uma centena de comensais de classes sociais mais abastadas, não conviria levar ditos "cidadãos de bem" ao ambiente insalubre de uma delegacia, não se valendo a PM da força para levar a uma unidade policial o desembargador, o garçom do caso e o popular que discutiu raivosamente com o magistrado, nas cenas divulgadas em redes sociais.

Resumindo, é pena que no final do ano, com o antecipar dos fogos de artifício, o brilho da festa de Reveillon tenha sido um pouco prejudicado pela baixaria, fofoca ou cenas de um reality show de segunda categoria, onde a cultura do espalhafato transforma por um dia pessoas em celebridades. Pois foi como celebridade desse mundo da baixeza e da falta de vergonha que o desembargador Dilermando Mota acabou envolvido, ao invés de ter sido relembrado como celebridade do mundo jurídico. Que pena!Ao menos senão por legalidade, por uma questão de boa educação e de bom senso, tristes cenas como as que foram vistas no domingo poderiam ter sido evitadas.