sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

MOVIMENTOS SOCIAIS: Seriam os "rolezinhos" fator gerador de delitos, ou é mero racismo e preconceito de classe?

Após as manifestações populares de junho de 2013, falou-se ao final do ano passado que os movimentos sociais tinham esmorecido, o Movimento Passe Livre teria perdido sua força e mesmo as manifestações no Rio de Janeiro contra o governador Sérgio Cabral tinham deixado de ser manchete. Parecia que os Black Blocs tinham saído de cena. No momento em que não despertaram mais a atenção midiática, diversos movimentos populares que continuam acontecendo no Brasil deixaram de ser noticiados porque não geram mais lucro para as emissoras de TV, desaparecendo do noticiário. A impressão que se dava na opinião pública é que o mais do mesmo tinha retornado na tediosa rotina resignada do brasileiro e que o "gigante " tinha adormecido de novo.

Rolezinho no Shopping Interlagos(foto Joel Silva.Folhapress)
Entretanto, como os movimentos sociais são fluídos, como fluída é a modernidade líquida dos tempos globalizados atuais, como diz o sociólogo polonês Zigmunt Baumman, na verdade em sua fluidez os movimentos apresentaram novas formas de manifestação e novos atores, e tais manifestos surgiram nos templos de consumismo da modernidade capitalista, nos palácios de consumo onde as classes sociais mais abastadas procuram gastar seus recursos financeiros em troca de bens e conforto. Os shopping centers passaram a ser o novo teatro de operações de multidões de jovens, em sua maioria negros e pobres da periferia das grandes cidades, que de forma ordenada, através das redes sociais, não ocupam somente a praça pública, mas também as praças de alimentação de inúmeros shopping, em várias cidades do país.

Não demorou para que a reação repressiva do Estado tardasse a acontecer. Esses encontros de jovens, que acabam gerando confusão e medo dos mais ricos, fechando lojas e alertando legiões de seguranças para afugentar indesejáveis ocupantes desses templos de consumo, findaram por fazer com que certos governantes dessem declarações das mais esdrúxulas; uns condenando tais encontros de jovens, invocando a necessidade de manutenção da ordem dentro de estabelecimentos privados, mas abertos ao público; outros, minimizando sua importância a ponto de desprezá-los. Juristas posicionaram-se de maneiras variadas, cada um defendendo seu ponto de vista de acordo com o referencial mais ou menos positivista de cada um.

Mas afinal, do que se tratam os "rolezinhos". Na acepção popular, "rolé" é uma gíria adotada pela juventude da periferia, frequentadora de bailes funk, que designa simplesmente o ato de passear; ou seja, "dar uma volta", perambulando por lugares com alta movimentação de pessoas. Assim, rolés podem ser dados em parques, praças, praias e até em lugares fechados, como shopping centers. Por que então tanta preocupação das autoridades com condutas que parecem, aparentemente, ser tão corriqueiras? Talvez a resposta esteja no significado político que tais comportamentos passaram a ter.

Encontros cotidianos de jovens em lugares como shopping centers ou lojas de conveniência são acontecimentos banais no cotidiano das sociedades urbanas, e não tem nenhum significado político ou relevância jurídica. Há pelo menos vinte anos, na década de noventa do século passado, quando o Natal Shopping foi inaugurado na cidade de Natal, por exemplo, como o primeiro dos grandes shopping centers que a cidade viria a ter depois, era comum ver na recém instalada e luxuosa praça da alimentação, o encontro de jovens de formação universitária ou secundarista, vestidos com roupas despojadas, mas de grife, formando uma pequena comunidade de rockeiros e skatistas com seus bonézinhos, que saíam do cursinho ou da faculdade, e iam direto para o shopping center. Tais encontros chegaram até a ser tema de reportagem nos meios de comunicação, tamanha a pitoresca cena de ver um gueto urbano de jovens, que todos os dias, vestidos do mesmo jeito, frequentavam a praça da alimentação. Até aí não havia problema algum com a polícia ou com os seguranças do estabelecimento, e não se falava de violação da ordem. O problema é que, duas décadas depois, o Brasil globalizado, com uma Constituição amadurecida e um Estado democrático forte, que colocou, em sequência, um sociólogo, um operário e uma ex-guerrilheira na presidência, parece não ter escapado das armadilhas sociais próprias de uma sociedade de classes.

O verdadeiro significado político dos "rolezinhos" não está na sua prática, mas sim na repressão estabelecida a esses movimentos. Agora não são mais jovens de classe média alta, curtidores de rock e vestidos com a camiseta de sua banda, recém-saídos da faculdade ou do colégio particular, egressos de suas bem localizadas casas, que ocupam o shopping center, em busca de encontrar sua rapaziada do skate ou para frequentar lojas de discos e eventos de histórias em quadrinhos ou  de RPG. Os jovens que são reprimidos pela polícia na entrada dos shoppings, e lá são proibidos de entrar, são em sua maioria garotos negros de periferia, com baixo poder aquisitivo e sem condições de comprar boa parte das mercadorias e serviços que são prestados nos shoppings. Eles, muitas vezes, entram nesses lugares propositadamente mal vestidos, com a única intenção de chocar os transeuntes mais abastados, como uma forma de reverter a violência simbólica que sofrem, e que foi tão bem definida na obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Os jovens de 2014 que aterrorizam os proprietários de shoppings, são jovens que se organizam pelas redes sociais na internet, combinam de se encontrar em grande número, muitas vezes com o único objetivo de chocar os outros, numa forma de protesto, uma vez que se trata majoritariamente de um grupo maciço de jovens negros de periferia, ocupando um espaço habitualmente frequentado por jovens brancos, de melhor poder aquisitivo.

Como explicar tamanha repressão? No Shopping Itaquera, em São Paulo, onde começaram essas manifestações, chegou-se a reunir seis mil participantes, e todos sofreram forte repressão policial por parte da Polícia Militar. Alegou-se o medo dos consumidores habituais do estabelecimento, que se sentiram amedrontados com a presença de tantos jovens amontoados, mal vestidos e supostamente mal encarados, que poderiam sugerir que o shopping seria vítima de algum "arrastão" de bandidos ou conduta semelhante. Entretanto, em todos os lugares que presenciaram essas manifestações, com exceção de casos isolados, de desentendimentos de jovens com a PM e sua imediata detenção sob acusação de desacato ou resistência, nas delegacias de São Paulo pouco ou nenhum procedimento foi instaurado por acusação de roubo, furto ou qualquer outro crime contra o patrimônio ou contra a pessoa dentro do shopping, por conta dos "rolezinhos".

Para alguns juristas, a concessão de liminares que os proprietários de shoppings obtiveram em algumas cidades, nos últimos dias, visa proteger o direito de ir e vir e o direito de propriedade. Entretanto, no mesmo ambiente jurídico, é possível escutar vozes dissonantes, como do professor da Universidade de Brasília, Alexandre Bernardino, que considera que a repressão aos "rolezinhos" é "claramente uma manifestação de preconceito em relação a um determinado grupamento social que se caracteriza por pobreza e por negritude". A ministra da Igualdade Racial, Luiza Barros, também condenou a repressão aos "rolezinhos", dizendo que os jovens que participaram desses eventos são vítimas de discriminação racial. Os defensores das práticas repressivas, por sua vez, alegam que a proibição dos encontros desses jovens de periferia nos shopping centers, visa prevenir delitos; uma vez que nessas aglomerações é comum encontrar indivíduos mal intencionados, que só querem provocar tumulto, e se aproveitam da multidão para praticar delitos, como depredações e pequenos furtos. Mas como prevenir proibindo antes, sem nem ter a certeza de que delitos realmente acontecerão?A emergência de um direito penal de periculosidade baseado apenas em estereótipos, no lugar de um de culpabilidade, baseado na responsabilidade penal por um delito praticado e não cogitado, a meu ver não parece ser a decisão mais acertada a ser proposta por meio de um entendimento jurídico. Peca também por ser questionável, a tese da validade jurídica do perigo abstrato no lugar do perigo concreto, afirmando que é lícito, penalmente falando, prevenir a entrada desses jovens pobres nos estabelecimentos, pois assim a intervenção penal antecede uma efetiva situação de perigo, onde já se sabe que uma lesão a um determinado bem jurídico (no caso, o patrimônio) vai realmente acontecer. Enfim, diversas teses podem ser aplicadas no caso dos participantes dos "rolezinhos", levando a se desenvolver no direito argumentações das mais reaçonárias até as mais progressistas.

Acredito que o jovem de periferia tem sim, o seu direito a entrar onde quer que seja, uma vez sendo o estabelecimento comercial de acesso ao público. É ele um cidadão, assim como um consumidor, mesmo que não venha a comprar nada, ou mesmo que vá até um desses templos de consumo apenas para se manifestar ou encontrar amigos. Numa democracia, é comum jovens se manifestarem, cabendo a polícia tão somente garantir a ordem, evitando excessos e proporcionando segurança não apenas para os consumidores das lojas, mas também para os próprios jovens manifestantes, permitindo a eles que exerçam um direito, de estar em qualquer lugar e fazer o que bem entendem, que não seja proibido pela lei. Afinal, qual é a lei que proíbe a entrada de jovens negros ou pardos, bem ou mal vestidos, que num anacrônico ideal lombrosiano, tem cara de marginais?

O que choca nos rolezinhos é a sociedade ter uma classe média branca e consumista que se sente confrontada com a imagem de jovens negros, de uma classe social mais baixa, invadindo um lugar que consideram supostamente seu. Não tenho dúvida de que, como todo movimento de massa propagado pelas redes sociais, os rolezinhos tendem a acabar, perdendo a graça após uns meses, arrumando os jovens outras formas de se manifestar. Que assim seja! O que não pode é transformar tais episódios em casos de polícia, tão somente como pretexto para acobertar o racismo e o preconceito de classe tão embutidos no imaginário de parte da população brasileira. Deixa a molecada dar o seu rolé, meu amigo!!

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

SISTEMA PRISIONAL: Na barbárie do Presídio de Pedrinhas, em termos de direitos do preso, o Brasil é um Maranhão!

"O horror, o horror!". Essa célebre frase empregada por Marlon Brando ao interpretar o personagem do Coronel Kurtz no filme de guerra, Apocalipse Now, poderia muito ser empregada a quem quer que tivesse um mínimo de sensibilidade e estômago fraco, ao ver o vídeo apresentado por detentos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, mostrando em uma rebelião três presos mortos, com as cabeças decepadas. Como se isso não fosse suficiente, na dantesca cena de observar num pátio ensanguentado um cenário de morte e destruição, cheio de corpos esfaqueados e sem cabeça, viu-se fora dos muros da prisão, mas sob a ordem de prisioneiros, outro fato escabroso envolvendo o caos do sistema penal brasileiro. Na semana passada, na capital maranhense, São Luís, um ônibus foi queimado, e dentro dele, ardeu em chamas a menina Ana Clara Souza, de 6 anos de idade. A ordem para atear fogo no ônibus partiu  de membros do "Bonde dos 40", uma das facções criminosas que domina os presídios do Maranhão, e dela também partiu o ataque aos presos cujas cabeças ficaram dependuradas sobre seus corpos, na banalização de uma barbárie real que supera, em muito, os filmes de terror.

Historicamente, o Brasil trata de forma desumana os seus presos. Foi somente na reforma penal da década de oitenta do século passado, num clima de abertura política, com o surgimento da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), que o país passou a se comprometer formalmente com normas internacionais sobre direitos do preso, que já vigoravam no mundo há pelo menos três décadas, desde a aprovação das Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, aprovadas no 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado em Genebra, no ano de 1955. Entretanto, mesmo com os avanços legislativos, prevaleceu sempre a visão de que o preso, caso se encontrasse nessa situação, estava assim por que merecia, numa velha e conservadora visão retributiva, anterior mesmo ao positivismo, de considerar o infrator como um pecador, um indivíduo mal, que escolheu o crime por livre arbítrio e, portanto, deveria pagar da pior forma pelo que fez, vivendo o inferno já aqui na terra, largado em uma cela, apodrecendo no sistema prisional.

Morte e destruição no Maranhão.(jornale.com.br)
Foi com base nessa concepção, aliada a uma profunda desigualdade social, fruto de uma aguda divisão de classes na organização da sociedade brasileira, que os presídios brasileiros foram criados e desenvolvidos, encarcerando um contingente maciço de indivíduos marginalizados, pertencentes em sua maioria aos setores menos favorecidos e mais explorados ou excluídos economicamente da sociedade. A letra da música já é conhecida, para quem tem o mínimo conhecimento de sociologia ou história do Brasil. Mas, o que ainda choca é que, após 25 anos da promulgação de uma Constituição que ainda pretende  ser a mais avançada de todas as Constituições nacionais, num Estado Democrático de Direito com uma presidente que já foi presa política, nós testemunhamos que nada ou pouco mudou na medonha realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros. A realidade do Maranhão, mostrada exaustivamente pelos meios de comunicação na última semana, é apenas um capítulo da epopeia de terror pelo que passam diariamente milhares de encarcerados, centenas de agentes prisionais, uma multidão inteira de familiares de presos, além de juízes, promotores e defensores públicos vinculados à execução penal, que no seu ofício tem que lidar com algumas das mais desumanas violações de normas protetoras do indivíduo e da dignidade humana.

Em Pedrinhas são 173 mortes desde 2007 (noticias.uol.com.br)
O Maranhão é emblemático acerca disso porque há décadas o estado é governado por uma oligarquia. A família do senador José Sarney, representada pela filha deste e governadora, Roseana, teve mais do que desvelado pelos meios de comunicação o seu descaso para com o sistema carcerário em sua região. Nas despesas do governo maranhense, nos últimos anos, pôde-se ver o quanto de menos o governo investiu em melhorias no sistema carcerário e o quanto de mais investiu no bem estar do próprio governante, através de valores empregados na compra em licitações de itens considerados supérfluos, tais como (pasmem) lagostas e whisky para o banquete cotidiano do Palácio dos Leões, sede do governo maranhense . Num estado da federação com um dos piores IDHs (índice de desenvolvimento humano) do país, e uma população ribeirinha vivendo em palafitas, agora o Maranhão ostentou mais uma cifra negra de sua economia e governo em frangalhos, demonstrando porque o seu sistema carcerário é um emblema da vergonha nacional. Enquanto o clã Sarney, por meio de seus governantes, esbalda-se com lautas refeições à base de lagostas e camarões, 5.517 indivíduos presos comem um alimento rejeitado até por cães, num lugar cujos presídios só podem abrigar, no máximo, 3.124 pessoas.

Falar de presos não dá voto. Ao lecionar a disciplina de Execuções Penais para estudantes de direito nas faculdades, eu costumo afirmar isso para meus alunos, assim como afirmou o juiz Douglas de Belo Martins, responsável pelo relatório encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça, revelando a deplorável condição dos presídios maranhenses, em especial da caótica situação de Pedrinhas. A partir desse texto, encaminhado ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, no final de dezembro do ano passado, e divulgado à imprensa, podemos presenciar qual é a rotina de horror por que passam todos aqueles vinculados ao sistema prisional do Maranhão. É um relato claro da total ausência do Estado, da ignorância ou falta de atenção e respeito dos governantes com a situação das unidades prisionais, em lugares cuja estrutura dos presídios está tão dilacerada que já se consegue ver celas sem grades, práticas de torturas e assassinatos, além de crimes sexuais.

A imagem é forte, mas a dor na consciência é pior ainda.
Num cenário com agentes penitenciários terceirizados a uma empresa privada, sem que o o poder público faça concursos para atrair pessoal, com salários nada convidativos próximos ao salário mínimo e sujeitos a todo tipo de corrupção, não é de se surpreender porque os presídios maranhenses estão numa situação tão calamitosa. Por conta da influência das facções criminosas contidas dentro dos presídios, cujos líderes e integrantes caminham livremente em seu interior sem celas,  perambulando impunes por dentro destas unidades prisionais, é possível conceber que em tais locais entra de tudo: telefones celulares, bebidas, drogas, armas, dinheiro e prostituição. Há também casos pavorosos de estupros coletivos, uma vez que a estrutura dos presídios maranhenses é tão desorganizada, que não é regulada a visita íntima, prevista como um direito do preso, conforme o art. 41, inciso X da Lei de Execução Penal. Nesses casos, como ninguém é de ninguém e os presos às vezes tem relações sexuais com suas companheiras sem sequer possuir uma cortina, não é raro que líderes de facções criminosas exijam de seus subordinados que entreguem suas mulheres para servir às sevícias sexuais dos presos mais poderosos, sob pena de serem exterminados, por estrangulamento, golpes de barra de ferro ou por facadas. As regras das principais facções, "Bonde dos Quarenta" e "Primeiro Comando do Maranhão",  também preveem que o preso novato, ao entrar no estabelecimento, tenha que obrigatoriamente escolher a qual facção pertence ou servirá, sob pena de ser massacrado e ter sua cabeça exposta como troféu, tal como aconteceu com um dos presos vistos na horrível foto abaixo, um mero ladrão de pneus, que jogado no inferno de Pedrinhas, ao não aceitar fazer parte de um grupo criminoso, acabou sendo morto com requintes de crueldade.

Sobra responsabilidade também para o governo federal, apesar de não ser o gestor direto do sistema prisional desenvolvido nos estados da federação. O governo petista de Dilma Rousseuf assume um ônus político, ao ser o responsável indireto pela desastrosa gestão política do problema prisional no Maranhão, uma vez que a governadora Roseana Sarney é do PMDB, partido do vice-presidente, Michel Temer, e é ela apoiada localmente pelo partido da presidente. Além disso, o governo federal pouco fez nos últimos anos para denunciar, ou ao menos intervir no Maranhão, diante de uma situação que não é nova, e já informada antes, por inúmeras vezes, por órgãos de defesa dos direitos humanos; membros do Conselho Penitenciário, do Conselho Nacional de Justiça, além de comunicados da Vara de Execução Penal.

Resultado da gestão prisional no Maranhão: 3 cabeças decepadas.
Por falar em direitos humanos, enquanto a sociedade brasileira considerar que falar de direitos humanos para presidiários é defender, na verdade, mordomia para bandidos, viveremos uma situação de barbárie cada vez pior, cultivando um ovo da serpente, que depois eclodirá com uma explosão de  criminalidade cada vez maior; uma vez que o crime organizado no Brasil mantém-se internamente através da organização de bandidos nos presídios. O exemplo clássico da criação do PCC (Primeiro Comando da Capital) na década de noventa do século passado, deveria servir de lição para nossos governantes, o que não acontece. O PCC foi uma criação genuína do Estado brasileiro, no momento em que o governo paulista, por meio de sua administração penitenciária, isentou-se de tratar da organização dos presídios, deixando-os sob o controle de presidiários, organizados em torno de uma coletividade com nome e sigla oficial, para que gerenciasse o problema dos estupros e mortes nas celas, com a promessa de receberem telefones, bebida e mulheres. Em síntese, é o Estado brasileiro que gera o problema de seus presídios, seja pela falta de ingerência, pois não é prioridade do governo tal intervenção (é bem melhor investir em saúde e educação, do que investir em presídios, dizem os administradores); seja  porque aparece como mais barato manter milhares de presos empilhados em celas diminutas, mantendo tão somente uma alimentação precária; do que investir em presídios e gastar dinheiro público montando megaestruturas, onde o preso possa ser reaproveitado através do trabalho ou do ensino.

Diante do caos, explicar o que, governadora?
No Brasil, nem sequer utilizam-se as soluções da política criminal do Estado liberal, como o aproveitamento de presos nas unidades prisionais para o trabalho industrial, na formação de mão de obra capitalista, como ocorre nos sistemas auburnianos e filadelfianos de gestão criminal; onde o preso é explorado no estabelecimento prisional como se fosse o trabalhador de uma fábrica. Apenas em algumas experiências, em unidades prisionais de Minas Gerais e no Paraná, é possível ver o emprego laboral do preso dentro da prisão, como uma forma de controle que o explora financeiramente, mas estabelece também um controle eficaz de sua disciplina e vigor internos, cumprindo-se o que dispõe a legislação.

Enquanto o Estado não assumir para si, como prioridade, não apenas a segurança pública, através de policiais armados e viaturas nas ruas; mas também o sistema carcerário, com profissionais bem pagos, estruturas adequadas e tratamento humano para os presos, cumprindo-se os direitos e os deveres estatais de assistência previstos na Lei de Execução Penal, será muito difícil evitar que novas cabeças sejam cortadas nas prisões, e mais crianças sejam queimadas dentro de ônibus. A sociedade civil, mediante seus representantes, já cobra diuturnamente dos governos que façam a sua parte, assumindo a reforma dos presídios não apenas como temática eleitoral, mas também como compromisso público, para evitar que novas tragédias aconteçam. Infelizmente, o inferno de Pedrinhas é o inferno de todos nós, localizado nos lugares mais obscuros de nosso inconsciente, aquele onde reside a ignorância e a alienação, tolhendo-nos da capacidade de fazer diferente ao escolher nossos governantes. Isso pode custar muito caro no futuro, se não acordamos agora! Como diria Nelson Mandela, falecido recentemente, em célebres e sábias frases:

“Uma nação não pode ser julgada
pela maneira como trata seus
cidadãos mais ilustres e sim pelo
tratamento dado aos mais
marginalizados: seus presos”