terça-feira, 20 de janeiro de 2015

EXECUÇÃO DE BRASILEIRO NA INDONÉSIA: Não teve jeito, fuzilaram o "Curumim"!

Condenado a morte na Indonésia.(retirado de veja.abril.com)
Marco Archer Moreira era um criminoso. Disso não há dúvidas. Condenado a pena de morte na Indonésia por tráfico de drogas, o brasileiro e carioca Moreira era um conhecido traficante das autoridades de Jacarta. Ele começou a praticar seus crimes ainda no início dos anos 1980; ou seja, há mais de 30 anos. Conhecido pelo apelido de "Curumim"(talvez pelo tempo que gostava de permanecer acampado ou escondido em lugares com selva, como a Amazônia, o Peru ou a própria Indonésia), Marco Moreira trabalhava oficialmente como instrutor de voo livre, mas sua especialidade era traficar drogas (principalmente cocaína), escondida em tubos de asa delta. Ele chegava a se vangloriar por nunca ter sido apanhado durante anos, fazendo a rota Lima, Rio de Janeiro, Amsterdã e Jacarta, até ter sido preso nesta última localidade, em 2003, aos 41 anos, quando foi descoberto no aeroporto quando trazia escondido em um de seus aparelhos de voo, mais de 13 quilos de cocaína. Foi a maior apreensão de drogas da história da polícia indonésia, até então. Naquele momento, a casa definitivamente caiu!!

Mas Marco Archer Moreira também era um ser humano, como muitos dos que cometem erros, praticam crimes, e, por isso, pagam por isso. Criminosos pagam suas penas de diferentes formas. Uns fogem, outros cumprem a pena e se redimem, e outros, simplesmente não conseguem se recuperar. Nesse último caso, nunca saberemos se o traficante brasileiro, preso e condenado na Indonésia, poderia ter demonstrado que aproveitou a oportunidade de se recuperar após cumprir dez anos de pena, enclausurado num presídio asiático. Nesse último final de semana, nas primeiras horas da madrugada de domingo (15 horas e 30 minutos da tarde de sábado, no horário de Brasília), Marco Archer Moreira foi o primeiro brasileiro a ser executado por pena de morte no exterior. Diante de um pelotão de fuzilamento, contando com 12 agentes do destacamento de polícia da Indonésia, Moreira sucumbiu às balas que ceifaram com sua vida e a de mais cinco prisioneiros estrangeiros, condenados pelo mesmo crime.


Com seu advogado, Archer abatido,não havia mais o que fazer.
Moreira nutria a esperança, durante uma década, até o dia em que uma comissão do sistema penitenciário indonésio lhe informou dias antes da triste verdade, que um dia seria posto em liberdade e de que não seria morto. Sua crença, na inaplicabilidade da pena de morte no seu caso, envolveu certa ingenuidade, aliada a experiência de acreditar nas brechas do corrupto sistema judicial indonésio, como também nos apelos do governo brasileiro e de outras entidades de defesa dos direitos humanos. O problema é que ele não contava com o posicionamento do atual presidente da Indonésia, Joko Winodo, recentemente eleito com a promessa de utilizar a mão pesada do Estado para combater narcotraficantes, numa belicista política de guerra às drogas, ao defender a pena de morte. Apegado a um compromisso de campanha que o diferenciava de seus antecessores, considerados lenientes com a criminalidade que assolava o país, o presidente indonésio recusou todos os pedidos das autoridades diplomáticas brasileiras, e do próprio pedido de clemência da presidente brasileira, Dilma Rousseuf, de não executar por fuzilamento o condenado brasileiro. A violência devastadora da pena capital venceu sobre a racionalidade!!

O esquadrão da polícia indonésia serviu como pelotão de fuzilamento.
Existem vários motivos, do ponto de vista jurídico e da política criminal internacional para justificar porque Moreira fracassou no seu pedido de comutação de pena, e porque, afinal na Indonésia ele encontrou seu fim com  a aplicação da pena capital. O argumento mais formal possível é de que o devido processo legal foi obedecido; ou seja, todos os trâmites de recursos permitidos conforme o ordenamento jurídico da Indonésia foram cumpridos e as normas invocadas. Por mais que se recrimine a posição das autoridades asiáticas, a lei penal foi cumprida, por mais dura que fosse, e seu caráter eminentemente preventivo esteve presente o tempo todo, mesmo antes do julgamento e condenação de Marco Archer. Afinal, quando praticou o delito, transportando drogas para Jacarta, o traficante brasileiro já sabia que a legislação do país era dura, e por conta disso o preço da droga era mais valorizado, porque os bandidos que traficam drogas para lá, sabem que os lucros são maiores quando não são apanhados. Por sua própria conta e risco, Marco Archer Moreira cavou seu destino, segundo a lei indonésia, e disso ele não poderia escapar. Prevaleceu a eficácia do Direito positivo.

Após a execução,o corpo é levado para um crematório.
Entretanto, eu iria mais além, e teria mais a acrescentar, no caso da condenação do brasileiro. Como, já dizia o filósofo do direito Ronald Dworkin, as decisões jurídicas (normativas) derivam de decisões políticas. Foi o rumo da política e não o direito que norteou a decisão das autoridades indonésias, o que culminou com a morte de Moreira. Em nome do populismo penal, em que soluções repressivas penais são propostas para solucionar problemas políticos, o presidente indonésio reforçou o batido discurso da guerra às drogas com a defesa abnegada da pena de morte e fuzilamento de traficantes, para justificar o descalabro administrativo do Estado e sua ineficácia para solucionar graves problemas sociais, como a questão da drogadição, o desemprego (que leva muitos dos habitantes locais a trabalhar no tráfico), e o mercado negro estabelecido através do turismo (que envolve drogas, jogo e prostituição), num país de população majoritariamente muçulmana. Pode-se dizer que o drama brasileiro reflete o drama do choque de civilizações diante de uma realidade mundial globalizada e capitalista, onde o continente asiático é conhecido mais como um mercado, para a difusão de bens de consumo lícitos e ilícitos (como as drogas), do que um espaço de diálogo multicultural. 

Talvez a ausência do multiculturalismo na falta de difusão de uma filosofia humanista (e de base fortemente cristã), baseada no perdão e na redenção, na tese da recuperação de criminosos, tenha contribuido também fortemente para o trágico desfecho, que resultou no fuzilamento do brasileiro. Sabe-se que o Direito moderno, de base racionalista, nascido do Iluminismo, pregava a humanização das penas, tendo como um de seus principais representantes, a figura de Cesare Beccaria, um dos mais ferrenhos críticos da pena de morte do século XVIII. Entretanto, mesmo existindo há mais de dois séculos teóricos e modelos penais que rejeitam uma visão unicamente retributiva da pena, e acreditam na reinserção social de apenados por meio de teorias como a prevenção especial (positiva e negativa), nos continentes asiático e africano, a pena de morte ainda aparece como uma espécie de panaceia dos problemas criminais.

Nesse sentido, vale a pena dar uma olhada na interessante obra, A MORTE COMO PENA: ensaio sobre a violência legal, escrita por Italo Mereu (editora Cia. das Letras). No livro, Mereu procura explicar como, mesmo após o advento do Iluminismo e a superação da visão eminentemente religiosa do fenômeno jurídico,  e a pregação racionalista da humanização das penas, a morte ainda continuou servindo como ferramenta de um controle legal punitivo. Trabalhando alguns conceitos como o de "assassinato judicial", Mereu demonstra como o anúncio da morte como consequência funesta do descumprimento da norma penal, ainda serve de inspiração para muitos legisladores nos dias de hoje; como se tal expediente fosse suficiente para intimidar criminosos e evitar delitos.

LIVRO: A morte como pena. interessante reflexão teórica.
Antes de morrer, em suas últimas imagens, Marco Archer Moreira apresentava uma figura bem distante daquele moço bem apessoado e sorridente, que tinha sido preso numa ilha, tentando escapar, apenas duas semanas após uma fuga espetacular do aeroporto de Jacarta, ao ser descoberto com drogas. Com menos cabelos, abatido,  desdentado (por falta de atendimento, Moreira perdeu todos os dentes na prisão), e envelhecido, Marco deve ter encarado seus algozes, antes de lhe ser colocado um capuz no rosto, munido apenas da única certeza: "agora, acabou"!. Sem pais vivos e sem deixar mulher ou filhos, o que sobrou do criminoso brasileiro após sua execução foram apenas suas cinzas, levadas para o Brasil por uma tia chorosa, que sabia que somente um milagre evitaria a morte do sobrinho. Esse milagre, infelizmente para ela, não veio. 


A morte (e não a Justiça) venceu.(retirado de click.rbs.com)
Não se trata aqui, portanto, num gesto de piedade, de exortar a memória de um criminoso, e nem chamá-lo de herói. Muito pelo contrário. Marco Archer foi um criminoso e morreu como um, condenado a uma das penas mais brutais do planeta. É a brutalidade e a inocuidade da pena de morte que se é discutida neste artigo. Pode ser que muitos dos leitores deste blog possam estar pensando que o traficante brasileiro recebeu um fim merecido (afinal, traficantes prejudicam a vida e a saúde de outras pessoas), como pensou o polêmico deputado direitista Jair Bolsonaro (que chegou a enviar uma moção de congratulações ao governo indonésio por sua decisão de matar o brasileiro). Porém, pode ser também que alguns pensem que ninguém esta a salvo de erros, e que todos tem um potencial para delinquir, e cometer dos mais banais aos mais atrozes atos. Uma certeza, ao menos nós temos: seja um traficante, estuprador, homicida ou terrorista. Num Estado democrático de direito, todos tem o direito a um julgamento (e uma pena) justos. Fica para o leitor a valoração disso!!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

POLICIAMENTO EQUIVOCADO: 4 Razões para explicar a morte da jovem Haissa por PMs no Rio de janeiro: DESPREPARO, DESPREPARO, DESPREPARO E DESPREPARO!!!

No ano passado, há mais de cinco meses, no dia 2 de agosto, às 5 horas da manhã, durante uma ronda noturna realizada dentro de uma viatura policial, em Ninópolis, na Baixada Fluminense, os policiais militares Márcio José Watterlor Alves e Delviro Anderson Moreira Ferreira, lotados no 41º BPM de Irajá,  avistaram um veículo Hyunday em atitude suspeita, após abordarem outros dois veículos supostamente ocupados por bandidos. Diante da situação, os PMs Alves e Ferreiria decidiram seguir o referido veículo, e quando este não parou ao ver a viatura policial com a sirene ligada, e, ao contrário, acelerou a velocidade tentando despistar a viatura, os policiais não contaram conversa, e seguiram o carro suspeito a tiros, descarregando no veículo vários disparos de fuzil. A ação toda de abordagem não durou mais do que vinte segundos, mas foi o suficiente para produzir uma tragédia que o Brasil inteiro conheceu somente esta semana. Na ação policial, a jovem Haissa Vargas Motta, de apenas 22 anos,  foi alvejada nas costas, morrendo em seguida no hospital após ser socorrida pelos seus próprios algozes. Na ocasião, os PMs estarrecidos, autores do fato, descobriram, ao atender os prantos das amigas de Haissa, que alvejaram um veículo que só tinha em seu interior jovens inocentes que vinham de uma festa, e não bandidos.

Toda a ação dos policiais foi gravada por uma câmera de vídeo instalada na própria viatura (regra comum no policiamento carioca), e divulgada somente agora, em rede nacional nos telejornais. É possível ver no vídeo que os policiais ainda tentam justificar seu crime, após a ação desastrada que resultou na morte de uma pessoa, em que os mesmos reconhecem o erro cometido. O vídeo mostra que, já na entrada do hospital, mesmo reconhecendo que serão punidos, os policiais envolvidos ainda tentam responsabilizar as vítimas pelo ocorrido. Afinal, por que não pararam ao ver a viatura policial? Por que abriram o vidro da janela do carro? 

O flagrante do despreparo(retirado de veja.abril.com)
Tais perguntas nos fazem pensar o que se passa na cabeça de um policial num momento de tensão, em que ele tem que tomar decisões rápidas. Nos cursos das academias de polícia em que já participei, ministrando aulas,  é comum ver que policiais questionam o que fazer num momento em que tem abordar um veículo numa rua escura. Muitos deles dizem logo, de cara, que não querem dar oportunidade aos bandidos de alvejá-los. Por isso, por  "precaução", ao verem qualquer atitude suspeita que denote hostilidade, eles já reagem de imediato dando tiros. Um exemplo disso é o o simples gesto de abrir uma janela de um carro onde não se  vê o que há em seu interior. Para o policial desconfiado e amedrontado, dali podem sair tiros, num suposto caso que, para os advogados, seria de legítima defesa putativa: onde o autor do fato imagina que está simplesmente se defendendo de uma agressão, quando esta na verdade não existe, reagindo de forma precipitada, com uma violência desnecessária e desproporcional.

Não obstante a recente prisão preventiva dos policias autores do fato, denunciados pelo Ministério Público por homicídio doloso, a dor dos familiares de Haissa só pôde ser diminuída, mas não eliminada. Para uns, será apenas mais um número nas estatísticas oficiais, de vítimas mortas pela Polícia; para a família, um ente querido que se foi; e para os defensores e alguns colegas dos policiais, mais uma  vez, policiais, pais de família, pagam o pato pela "incompreensão" da sociedade, que não vê o dia de dia de tensão porque passam os integrantes da Polícia, em seu cotidiano violento de arriscar a vida em um ambiente urbano hostil, sem saber se ao final do expediente voltarão para casa. Quem está certo e quem está errado?

A jovem Haissa,morta por agentes do Estado.
O preparo da polícia brasileira não é o de policiamento, mas o de confronto. Assim como os exércitos são treinados para confrontar, em situações bélicas de risco, os policiais brasileiros, mormente os militares, recebem treinamento de guerra, para atuar nas ruas como se estivessem prontos a dar um tiro em alguém em qualquer momento. O policiamento de patrulhamento (ostensivo) exercido pela Polícia Militar, não exerce, portanto, seu caráter meramente preventivo, de intimidação pela presença dos agentes da ordem no espaço público e criação de uma sensação de segurança, mas sim segue uma lógica de enfrentamento, onde qualquer atitude suspeita é vista como uma atividade hostil, que suscita uma reação na base da rajada de balas. Como o Estado não consegue se impor em todas as áreas, permitindo que as lacunas dos vazios sociais sejam ocupados pelo crime, é até natural conceber que aqueles que deveriam promover a segurança, já entram nas ruas inseguros, porque não dizer apavorados, achando que a qualquer momento podem levar um tiro, e, portanto, numa situação dessas melhor atirar primeiro e perguntar depois!!

Foi exatamente isso que aconteceu há meses atrás com a desastrada atuação dos PMs cariocas, que resultou na perda da vida da jovem Haissa Motta. Se forem levadas em conta as declarações do recentemente empossado governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, não há nada de errado na formação do policial carioca, uma vez que o a preparação deles na Academia de Polícia, quando ingressam na corporação, tem o mesmo prazo de duração de outras polícias do mundo, entre seis a oito meses. O problema é que não se discute o prazo de duração do curso, mas sim o preparo que é dado ao policial durante sua realização. Ora, historicamente, não é de hoje que se fala do despreparo de nossas corporações e o assunto sempre vem à baila quando a polícia age de forma desastrada, como ocorreu no recente caso, envolvendo a pobre menina Haissa; mas o problema é que não se chegou ainda no país a uma política criminal de resolução dos problemas concentrados nas raízes desse despreparo. 

Os inconsoláveis pais de Haissa pedem Justiça e uma Polícia melhor.
Nossos policiais matam e matam muito, simplesmente porque foram criados numa subcultura de confronto, onde são treinados para serem matadores. Numa visão autoritária, e até mesmo fascista do aparato policial, pensa-se que a organização policial é feita para matar bandidos, antes que os bandidos matem o próximo ou até a própria polícia. É num estado de guerra que vivemos, como diria o filósofo italiano Antonio Negri, e é nesse estado de guerra contraditório a um estado de democracia, que temos uma Constituição que prega a existência de uma organização policial diametralmente oposta. Parece esquizofrênico falar de uma Polícia que mata a esmo cidadãos, porque exerce um policiamento na base de tiros, quando temos uma sociedade de hoje que prega a liberdade individual, o direito de ir e vir e o de fazer qualquer coisa se não for contrário ao que diz a lei. Como então podemos caminhar nas ruas sem correr o risco de ser confundidos com bandidos e levar um tiro de policiais? Como exercer essa liberdade, como viver nessa democracia? Ao amedrontar cidadãos toda vez que aparece uma viatura, a Polícia brasileira exerce, na verdade, uma função autoritária, que a equivale a efetivos policiais das piores ditaduras. O que fazer para resolver isso? Acredito que o problema não seja de sanidade, mas sim de maturidade de nossas instituições.

Creio que o caminho da desmilitarização do efetivo policial é apenas um dos trajetos a serem trilhados para uma melhor qualificação do policial no Brasil. A abolição da tática do confronto nas abordagens normais, assim como a efetivação do uso progressivo da força e a integração do setor de comunicações, com viaturas interligadas numa mesma área por sistema de rádio, onde barreiras possam ser facilmente montadas, sem a necessidade de que outra equipe de policiais efetive uma perseguição arriscada, onde seus integrantes se sintam obrigados a atirar, é apenas um pequeno rol de propostas que poderiam ser facilmente implementadas, se houvesse compreensão e vontade política. O fim da visão militar na atividade policial auxiliaria a diminuir a mortalidade de cidadãos no exercício da função repressiva estatal, quando policiais saíssem às ruas com a consciência de que estão atendendo pessoas, e não combatendo inimigos. Somente com o fim desse estado de guerra é que podemos salvar outras Haissas!!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

TERRORISMO: 7 DE JANEIRO DE 2015 FOI O 11 DE SETEMBRO DE 2001 DOS FRANCESES

A manchete que jornal algum gostaria de publicar.
7 de janeiro de 2015 já pode ser conhecido na história como o dia em que liberdade de expressão sofreu seu mais duro golpe na era contemporânea, desde a ascensão do nazifascismo no século XX. Para muitos, na França, o dia em que três enlouquecidos militantes extremistas islâmicos, encapuzados e armados de fuzis, invadiram em Paris a sede do Jornal  Charlie Hebdo, e fuzilaram a sangue frio 12 pessoas (dentre elas seus principais cartunistas), além de ferirem gravemente mais de uma dezena, significa o 11 de setembro dos jornalistas. Se uma década e meia antes, na citada data, a organização terrorista al-Qaeda, de Osama Bin Laden, visava ferir os Estados Unidos, atacando o governo norte-americano, ao atingir com dois aviões sequestrados as Torres Gêmeas em Nova York, além do prédio do Pentágono, em solo americano; em Paris, os três terroristas que, sozinhos, criaram em poucos minutos um mar de sangue, destruição e desgraça na França de hoje, queriam atingir diretamente a imprensa, principalmente a Imprensa Livre, formada por intelectuais, artistas e ativistas sociais que, além de defender a liberdade de expressão, exerciam de forma bem humorada uma crítica voraz à barbárie do extremismo islâmico fundamentalista, tão caro a um exército de assassinos, conhecido hoje na região da Síria e do Iraque como "Estado Islâmico".

Cena dantesca: a ação assassina dos terroristas em plena rua de Paris.
Por utilizarem as páginas do Charlie Hebdo (uma espécie de "Pasquim" parisiense, que fazia um jornalismo crítico, de forma cômica, valendo-se do humor de suas charges para ridicularizar os excessos dos militantes extremistas), como um libelo ou manifesto contra a irracionalidade e a bárbarie do fundamentalismo islâmico, adotando a postura arriscada e controversa de publicar charges ridicularizando o Profeta Maomé, além de piadas contra todo tipo de intolerância religiosa (seja ela cristã ou muçulmana), chargistas como Stephane Charbonnier (editor e criador do jornal), Georges Wolinski e Jean Cabu, e outros conhecidos por anos em toda a  Europa , acabaram por cavar a sua sentença de morte. Não é possível se esperar bom humor de militantes doutrinados, de olhar ensanguentado, que na sua cegueira fundamentalista vem todos como inimigos a serviço de um grande Satanás.
Entre mortos e feridos o sinal da barbárie.

O saldo da ação assassina dos terroristas que atacaram o jornal também incluiu dois policiais mortos, inclusive um com um tiro na cabeça, quando já estava ferido e dominado, no momento da fuga dos criminosos, que já foram identificados, caçados e mortos.

Com  o sangrento atentado ao jornal parisiense, não tardou para ressoar o eco da extrema-direita francesa, avessa aos imigrantes de origem árabe e africana, defendendo o retorno da pena de morte, além de uma série de medidas legislativas que do ponto de vista da teoria jurídica penal poderíamos definir como "Direito Penal do Inimigo". Essa teoria, desenvolvida há anos pelo grande jurista alemão Günther Jakobs, e bastante comentada após o episódio da queda das Torres Gêmeas no 11 de setembro, retoma a distinção kantiana estabelecida nos primórdios da Filosofia Política moderna, entre cidadão e inimigo. Para Jakobs, indivíduos que não respeitam o pacto social da mínima convivialidade (tais como os terroristas fundamentalistas da atualidade), praticando atos odiosos que atentam contra valores básicos da civilização ocidental, condensados numa ordem jurídica, não deveriam ser tratados como cidadãos, e sim como inimigos. O inimigo, na teoria normativo-funcionalista de Jakobs, não seria um mero infrator, pois existiriam cidadãos infratores e não-cidadãos também infratores; ou seja, o inimigo sequer seria uma pessoa e sim alguém que mereceria tratamento jurídico inferior. Chancelando a desigualdade de status social, o Direito Penal do Inimigo faria uma divisão entre pessoas (um indivíduo reconhecido em seus direitos por uma determinada ordem jurídica) e não pessoas (aqueles a quem sequer seriam reconhecidos direitos). Nesse sentido, tortura ou mesmo a eliminação física dos inimigos seria tolerável dentro de um determinado sistema de direito que, seletivamente, diferencia cidadãos de não cidadãos.

Algumas das vítimas:célebres chargistas franceses.
O perigo da ação dos extremistas islâmicos ao assassinar os jornalistas do Charles Hebdo não é apenas o perigo da expansão do terrorismo islâmico, fundado numa interpretação distorcida da religião muçulmana, mas também na expansão de uma xenofobia equivocada, preso a um islamofobismo de não reconhecimento do outro, principalmente se ele é árabe, lê o Corão e usa turbante. A França é conhecida como uma das nações mais globalizadas do planeta, e tive a oportunidade de conhecer em Paris a convivência pacífica entre milhões de pessoas num mesmo espaço urbano, das mais diferentes etnias, nacionalidades e idiomas. Seria uma pena ver jovens estudantes negros, asiáticos, latinos e escandinavos, deixarem de conviver e compartilhar um piquenique no belo e verde gramado dos campus das universidades francesas, junto com moças de véu na cabeça e rapazes de turbante, tão somente porque políticos de ambos os lados pregam uma separação obrigatória de povos que coexistem, por mero preconceito ou sectarismo, como aconteceu com os judeus séculos atrás e que acabou resultando numa guerra mundial.

Algumas das charges do semanário parisiense faziam rir pela crítica.
Para mim, terroristas não são inimigos do Estado, mas tão somente criminosos, que merecem o mesmo tratamento e rigor penal que outros deliquentes que praticam os chamados delitos comuns. Eles devem ser presos, julgados e condenados dentro de um Estado Democrático de Direito, perto da civilização e longe da barbárie, para que seja dado o exemplo de que nem todos os muçulmanos são fanáticos maníacos assassinos e nem todo cidadão europeu é anti-imigrante e fascista. Seja nas artes, nos cargos públicos ou no futebol, a França já demonstrou com jogadores fabulosos como Zidane ou Karim Benzema (ambos de ascendência árabe), que os imigrantes árabes (assim como os nordestinos em São Paulo, no Brasil), também são cidadãos franceses, porque fazem parte da construção da nação, ocupando escolas, universidades e postos de trabalho no serviço público ou privado.

O próprio policial que foi assassinado por um dos terroristas no ataque ao jornal, no dia 7,  era de origem árabe e muçulmano. Assim como uniu jacobinos e sans-cullotes na Revolução contra o Antigo Regime em 1789, o povo francês deve se unir agora contra o terrorismo, valendo-se mais ainda da tolerância, da convivência pela integração entre povos e promoção da inclusão social dos diferentes, no combate extremado aos extremismos, do que se valer da mera retaliação a um determinado povo ou segmento social. Com certeza, a memória dos chargistas mortos seria muito honrada se continuássemos a louvar a democracia e a liberdade de expressão, deixando que todos se manifestem, inclusive em suas discordâncias, sem que fuzis tenham que ser disparados no lugar disso. Afinal, piadas não deveriam matar!!!

Junto-me ao povo francês e a todos os defensores no mundo da liberdade de expressão e da democracia, para gritar a plenos pulmões:"HOJE, SOMOS TODOS CHARLES"!!!