quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

CULTURA POLICIAL: A Polícia da Casa Grande & Senzala

Recentemente tomei conhecimento pelos jornais de um triste fato envolvendo um delegado de polícia e um advogado cadeirante em São José dos Campos/SP. O fato publicado, noticiado nacionalmente pela grande impresa, e, especialmente em meios de comunicação como o Jornal do Brasil e A Tarde, relatou que o advogado cadeirante Anatole Macedo reclamou, quando o delegado de polícia Damasio Marino estacionou seu carro numa vaga para deficientes. O episódio foi o suficiente para uma sucessão de xingamentos que culminou na agressão física sofrida pelo deficiente físico, por conta de alguém que é pago pelos cofres públicos para servir e proteger. Como delegado de polícia, profissional do direito, professor universitário e cidadão, fico indignado com o que ocorreu e independente das justificativas que ainda serão apresentadas (afinal, nossa Constituição invoca como princípio basilar a presunção da inocência), creio que algo de muito errado aconteceu com a autoridade policial (se é que se pode chamar de autoridade), diante de fatos escabrosos como esse. Não sou juiz e não estou aqui para condenar injustamente a conduta do delegado ou do cadeirante, sem ouvir o outro lado da versão; mas ao menos uma coisa eu posso constatar: o delegado Marino agiu mal. No acirramento de ânimos e entre dos indivíduos com a "cabeça quente", o que pude constatar é que o delegado assumiu a agressão que cometeu, apesar de ter negado ter dado coronhadas em Anatole Macedo, como esse comunicou à imprensa, pois, segundo frase do próprio delegado, estampada no Jornal do Brasil do dia 20 de janeiro: " apenas dei dois tapas na cara dele".

Ora, um delegado de polícia sair por aí dando tapas e bofetões não é bem atribuição da polícia judiciária e nem está prevista em lugar nenhum, na Lei Orgânica das Polícias. É verdade que os policiais são autorizados ao emprego do uso da força (como bem mencionei em artigo anterior, publicado neste blog), mas nem por isso podem sair por aí, achando-se os donos da verdade, "metendo o sarrafo" em quem quer que entendam, considerando erroneamente que são os donos do pedaço. A fanfarronice, truculência e valentia exagerada de alguns agentes do Estado é lugar comum na nossa crônica social; mas nem por isso deixa de ser prática altamente criticável e passível de punição. Vivemos num regime democrático, institucionalmente estabilizado através de normas constitucionais, que asseguram o Estado de direito, e não podemos simplesmente agir como moleques num jardim de infãncia ou num reformatório, fazendo da autotutela nosso expediente, e achando que podemos tudo, por conta de uma farda, uma insígnia ou uma carteira policial. Não é à toa que as ONGs e os movimentos de Direitos Humanos se insurgem, matando de raiva certos integrantes das corporações policiais, que acham que aqueles que defendem uma atividade policial respeitosa, educada, mantenedora dos direitos humanos e atenta à dignidade das pessoas, na verdade querem atrapalhar o trabalho da polícia, assumindo a defesa ingênua de bandidos e vagabundos. Não é dessa forma que penso a polícia!

Na cidade de Natal/RN, na zona norte da cidade, a comunidade de trabalhadores, sem-teto, mendigos, pé-rapados, indigentes e habitantes pobres que assolam os loteamentos, asssentamentos e favelas da região, entregues à própria sorte e à mercê do crack e da criminalidade, estão sujeitos à ação truculenta de certos policiais militares, que se valendo da velha política do "pé na porta", herdada das piores ditaduras, espancam mendigos e trabalhadores braçais no meio da rua, invadem residências, torturam supostos vadios para obter informações sobre delitos e confissões, agindo como xerifes, em detrimento de todo papel investigativo atribuído à polícia judiciária, intimidando a população e prejudicando totalmente às iniciativas de apoio da comunidade às formas modernas e eficazes de policiamento comunitário. São geralmente jovens oficiais, recém-saídos das academias de polícia, totalmente imbuídos de uma subcultura policial viciada, preconceituosa e alienada, de considerar todo e qualquer cidadão favelado como suspeito, e trabalham insistentemente a política de que pobre, preto e favelado tem que "ir pra porrada". Esses garotos, brincando de soldado, agem nas ruas imitando o Capitão Nascimento, da série Tropa de Elite.  Desde o incidente histórico de truculência policial, no caso de Rodney King, em Los Angeles, nos anos noventa, e no episódio criminoso da Favela Naval, em Diadema, envolvendo a morte do conferente Mário Josino, e a prisão do policial militar Otávio Gambra (o Rambo), o Estado brasileiro modificou sua legislação, para combater os maus policiais, responsáveis por atos de abuso e arbitrariedade. Porém, diante da subcultura policial que ainda vivemos hoje no Brasil, em muitos lugares, a polícia ainda age como no tempo da escravidão. É a polícia da Casa Grande & Senzala, da obra de Gilberto Freyre.

Deparei-me e indignei-me com tais situações por diversas vezes, e sei que, ao contrário do coro dos descontentes, tais fatos não são regra em algumas regiões,  dentro da corporação policial, mas exceção; pois conheço muitos policiais militares dignos, trabalhadores honestos, servidores públicos respeitáveis, que são enfaticamente preocupados com a manutenção da legalidade e o respeito aos direitos humanos, e são muito preocupados com a reforma do aparato policial, participando de cursos, palestras, seminários, fazendo pós-graduações. Muitos deles, inclusive, são ou foram meus alunos nesses cursos, orientados por mim, como na grata oportunidade que tive como instrutor em cursos de formação pelo PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania), em que tive a oportunidade de debater, crescer profissionalmente e colher a experiência de centenas de homens e mulheres de farda, pais e mães de família preocupados em realizar um bom trabalho, destacados servidores que não se sentiam excluídos da comunidade, naquela falsa dicotomia de nós X eles, mas sim estavam na condição de realmente somar com a sociedade, num projeto diferenciado e democrático de segurança pública. Entretanto, a fábrica de moer carne e pensamentos, da vetusta estrutura administrativa do poder público, conduzida ideologicamente por interesses conservadores, nada interessados na modernização policial, ainda insiste em manter a nossa polícia na Idade da Pedra. Sem inovação, modernização e mudança de pensamentos não será possível revolucionar a polícia brasileira.

" A polícia militar é truculenta e a polícia civil é corrupta". Essa frase, retirada do jargão popular, na verdade foi mote para os estudos acadêmicos, consagrados na sociologia criminal brasileira, no célebre livro do teórico Roberto Kant de Lima, professor da Universidade Federal Fluminense, na sua tese de doutorado que se tornou livro, intitulado: A Polícia do Rio de Janeiro. Entretanto, longe da metrópole carioca, percebe-se que no Brasil profundo as deficiências do aparato policial, herdadas de uma subcultura policial imersa na violência, ainda estão presentes (infelizmente) na sociedade brasileira. Como nos bons manuais de sociologia, a subcultura é uma espécie de "cultura dentro da cultura", e nela podem se ver aspectos que fazem com que um indivíduo que ingressa numa corporação, enquanto está munido da farda, passa a esquecer tudo que recebeu quando foi formado enquanto cidadão, passando a agir como um autômato, um robôzinho a serviço dos interesses de classe, uma criatura ideologizada presa a uma redoma de concreto da mais pura alienação, da ignorância, da inexistência da alteridade, do desrespeito ao outro. Em seu frenesi punitivo, muitos policiais são soltos nas ruas como verdadeiros "capitães do mato", agora a procura não de escravos fugitivos, mas de pretos, pobres e largados nas ruas, casebres e calçadas, que mediante o sumiço de uma câmera fotográfica, um aparelho celular ou uma carteira de cédulas, podem ser espancados a qualquer momento, pois são os principais suspeitos.

Enquanto isso, os verdadeiros defensores da polícia, aqueles interessados em sofisticar o aparato, no sentido de ter uma corporação policial coesa, apta, bem treinada e culturalmente parceira da sociedade, vivem uma luta esgarniçada contra atrasadas estruturas, invocando o novo como pregadores no deserto, enquanto suas unidades policiais deficientes encontram-se inoperantes, numa desfavorável e desproporcional luta contra o narcotráfico, o crime organizado, as redes de prostituição, as guerras entre gangues juvenis, os homicídios incalculáveis que mancham de sangue as calçadas e as páginas dos jornais. Entre os valentões de farda e os humildes patrulheiros no estilo "guarda Belo" do modelo de policiamento comunitário norte-americano e canadense, prefiro ficar com estes últimos; pois são para mim bem mais consentâneos com a realidade do Estado Democrático de Direito que vivo hoje. Quanto aqueles que erram, como o equivocado delegado Marino, prefiro que as areias do esquecimento sepultem o velho modelo de polícia anacrônico, caquético e esclerosado que se fundam esses policiais, para se acharem os donos da rua e de vagas de estacionamento. Polícia de qualidade para mim parece um sonho, mas polícia ruim me ataca nos piores pesadelos!

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

QUESTÕES CONSTITUCIONAIS: A Portaria nº 4226/2011 do Ministério da Justiça que disciplina o uso da força pelas polícias-Questões Controvertidas

No dia 1º de janeiro de 2011, foi publicada no Diário Oficial a Portaria Interministerial nº 2246, de 30 de dezembro de 2010,  que disciplina o emprego da força pelos efetivos policiais de todo o país, particularmente no que tange ao uso de armas. Antes mesmo de entrar em vigor, senti a mosca corporativa querendo zumbir nos ouvidos de alguns colegas, e não demorei para ver algumas manifestações (aparentemente equivocadas) de contrariedade ao conteúdo das disposições normativas da Portaria. Afinal, polícia não gosta de ser policiada.

O motivo da polêmica é o disciplinamento do uso de armas de fogo por policiais, no exercício de suas funções. Ora, ao contrário da pregação do "bandido bom, bandido morto", muito utilizada no governo tucano de Marcelo Alencar no Rio de Janeiro dos anos noventa, instaurando a malfadada "gratificação faroeste"( onde os policiais eram estimulados a sair dando tiros pelas ruas, em confronto com bandidos, a título de receber uma gratificação por isso), a nova política do Ministério da Justiça é reduzir ao máximo o emprego da força policial, com uso de armas de fogo, no sentido de evitar perdas civis. Nada mais salutar e consentâneo com um Estado Democrático de Direito, desde que essa política de uso da força fosse acompanhada de um melhor preparo, treinamento e condições de armamento dos policiais.

Em primeiro lugar, o texto da Portaria não é baseado na ideologia maluca de um inimigo da polícia, de integrantes do crime organizado interessados no desmantelamento da função policial e nem de intelectualóides de gabinete, que nunca deram um tiro na vida, ou vivem de criticar em mesa de barzinhos universitários a atividade policial brasileira. Não! Na verdade o texto foi construído pelo outrora secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, com o apoio do Ministro da Justiça do governo Lula, Luiz Paulo Barreto, tendo por referência a Resolução das Nações Unidas, nº 34/169, de 17 de dezembro de 1979, onde constam os Princípios Básicos sobre Uso de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei; bem como utilizando as resoluções do Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime, realizado em Havana, Cuba, em 1999, contando com a presença de policiais do mundo inteiro. Portanto, além de não ser recente, as orientações agora adotadas pelo Ministério da Justiça, quanto ao uso da força empregado por policiais, também foi objeto de propostas levantadas pelos representantes das corporações policiais de todo o planeta.

Intriga-me, nesse sentido, o repúdio de alguns policiais brasileiros (civis ou militares) sobre a exequibilidade da Portaria 4226. Questionam os argutos homens da lei quanto à Portaria, que a aplicação em sua totalidade, de todas as recomendações destinadas ao uso da força pela polícia brasileira, resultaria no engessamento da atividade policial, na ocorrência de mais baixas, envolvendo a morte de policiais em serviço, e na geração de um verdadeiro clima de terror, mediante o sentimento de insegurança coletiva, uma vez que a sociedade estaria à mercê dos bandidos e da violência, devido a uma polícia inerte, obrigada a não empregar armas de fogo em serviço, sob o risco do policial acabar preso e processado. Bueno! Façamos então uma análise dos dispositivos da Portaria, que geraram uma certa tensão:
Vejamos, primeiro,  o que diz o ítem 3 do anexo da Portaria, nas diretrizes elencadas para o uso da força e armas de fogo pelos membros da segurança pública:
"3. Os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave."

Para aqueles que ainda são vinculados à antiga e anacrônica visão policial de: nós X os outros, tal dispositivo que veda o disparo de arma de fogo por policiais, a não ser nos casos legalmente previstos, soa como um ataque à função policial. Grande bravata! Na verdade, desde que o Estado Moderno foi fundado, é função da lei limitar a ação estatal, e uma dessas limitações é justamente a vedação do emprego da força estatal, exceto nos casos previstos em Lei. Ora, a lei estabelece exatamente que os agentes públicos armados devem agir na função de segurança, que consiste na legítima defesa de terceiros, seja contra perigo iminente ou lesão grave. É óbvio que um indivíduo que está sendo flagrantemente assaltado por bandidos armados numa parada de ônibus, no momento em que surge uma viatura policial, este terá a devida proteção do Estado com emprego de armas pelos policiais, no sentido de proteger a incolumidade física dessa vítima ou sua vida, e a lei não diz nada em contrário disso. O que os defensores do movimento da lei e da ordem querem fazer crer, é que o uso da arma de fogo, somente nos casos de legítima defesa, vedaria outras atividades policiais que necessitam do uso de tal artefato, o que é errôneo afirmar. Em nenhum momento da Portaria, diz-se que o policial estará obrigado a tão somente empregar sua arma no caso de legítima defesa de si ou de outrem, como se isso impedisse outras formas de emprego de armas contra pessoas. É tão somente necessário ter conhecimento dos demais dispositivos da portaria.
"4. Não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros."
Ora, no item acima, é natural que os policiais já sejam treinados para atuar em conjunto em operações policiais, montando barreiras e equipes de policiais com treinamento em defesa pessoal, hábeis a imobilizar criminosos em fuga que não estejam armados, ou que não estejam no momento da captura no uso de nenhuma dessas armas. Como princípio constitucional básico da proporcionalidade, há de prevalecer a proibição do excesso, em que um agente fortemente armado, com sua arma em punho, já apontada para um criminoso em fuga, implica na necessária reação proporcional ao fato desse bandido também apontar ou não sua arma em direção ao referido policial. O agente público não pode abusar de sua prerrogativa funcional no uso da arma, simplesmente atirando em quem avista pela frente ou que foge de sua perseguição, valendo-se apenas de tiros no sentido de deter o fugitivo. Nos programas de televisão mesmo, podemos ver como atua a polícia norte-americana nos documentários que passam todos os dias acerca da ação policial, em perseguições de carro cinematográficas, captadas pelas cãmeras de TV, que demonstram bem que o emprego da arma de fogo só é legitimado em última instância, e o criminoso fugitivo tem todas as oportunidades de se render, no momento em que para de se locomover, mediante a ordem policial, coloca as mãos ao alto ou sobre a cabeça e oferece sua rendição, entregando-se às autoridades, sem que seja necessário disparar um único tiro. Evitar disparos de fogo contra pessoas em fuga não significa dizer que os policiais ficarão parados, deixando o criminoso fugir, ou que ficam incapacitados de apontarem suas armas, no uso de sua prerrogativa, como lhes autoriza o poder de polícia. O que a lei deseja coibir é o abuso, e, no caso de bandido desarmado ou que não reagiu com disparos à ação policial, é proibir o homicídio praticado por policiais em serviço, sob a roupagem do estrito cumprimento do dever legal.

"5. Não é legítimo o uso de armas de fogo contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, a não ser que o ato represente um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros."

O ítem 5 trata de uma das mais tristemente comuns ocorrências policiais, principalmente em solo brasileiro, tendo em vista a farta referência no noticiário, informando das ações desastrosas de policiais, revelando sua falta de treinamento, quando do uso de armas envolvendo veículos que desrespeitam bloqueios policiais. Ora, até para o mais simples observador, é plausível pensar que um veículo em via pública, que não apresente risco imediato de morte, lesão ou que tão somente fura o bloqueio, sem atender à ordem policial de parada, não pode ser crivado de balas por conta disso. É o auge da truculência e da falta de preparo profissional achar que os problemas de descumprimento da lei devam ser resolvidos na base do tiroteio. Entram na cifra de ações mal feitas da polícia a macabra estatística de pessoas mortas pela ação policial, devido a mal entendidos no momento da violação de barreiras policiais. No momento em que um veículo suspeito fura um bloqueio, o efetivo policial deve dispor de novas barreiras, e viaturas com policiais habilitados, prontos a deter o veículo, com a colocação de obstáculos nas rodovias que dificultem a locomoção ou proporcionem a parada do veículo. É um procedimento que não revela maior complexidade, não é oneroso ao Estado e diz respeito tão somente ao planejamento de uma boa ação policial, com total redução de riscos. Mas parece que os críticos dessas iniciativas não pensam da mesma forma!

"6. Os chamados "disparos de advertência" não são considerados prática aceitável, por não atenderem aos princípios elencados na Diretriz n.º 2 e em razão da imprevisibilidade de seus efeitos."

O problema do chamado "disparo de advertência" mencionado no ítem 6, diz respeito a falta de treinamento ou de bom senso de muitos policiais, que nas operações policiais ou atividades de rotina, por vezes se valem do apelo das armas para querer intimidar bandidos, produzindo uma verdadeira algazarra com tiros dados para o alto, a fim de medir forças em localidades ocupadas por bandidos. Além de ser contraproducente, uma vez que o ato em si não significa que dará eficácia à intervenção policial, o tiro de advertência pode produzir consequências lesivas, como no caso de danos colaterais provocadas por balas perdidas ou tiros a esmo praticados por policiais, que acabam por produzir danos à propriedade alheia, ou mesmo ceifar vidas.

"7. O ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada."

Atentem bem para o que diz o ítem acima: "não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada". Ora, percebe-se bem que o ato de um policial apontar uma arma para alguém não significa um ato proibido em si, mas sim que não é recomendado o seu uso frequente e proibido o seu abuso. O que a Portaria pretende dirimir é a ocorrência de atos policiais abusivos, muito comuns em favelas e bairros pobres de periferia, onde nas abordagens policiais meros suspeitos são intimidados por fuzis e canos de pistolas, tão somente para entregar os documentos ou se submeter à revistas. No caso de operações policiais específicas, no cumprimento de mandados ou em atos que é sabida a periculosidade dos abordados, não há de se falar em prática rotineira do ato de apontar armas, mas sim de prática especial, destinada a um tipo de ação policial onde o uso da arma é especialmente necessário. Com isso, repito, tenta-se evitar aquele tipo de ato do agente policial que é muito corriqueiro e atentatório contra o Estado de Direito: o abuso.


"8. Todo agente de segurança pública que, em razão da sua função, possa vir a se envolver em situações de uso da força, deverá portar no mínimo 2 (dois) instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção necessários à atuação específica, independentemente de portar ou não arma de fogo."

Para uma polícia moderna: armamento moderno. Para uma polícia pré-histórica: o uso de pedras e tacapes no lugar da razão e da eficiência. É risível o argumento de alguns policiais, defensores do uso de armas, como uma extensão do corpo do agente público, dizendo que a arma de fogo é o único instrumento eficaz para uma boa ação policial. Creio que esse tipo de policial ainda está fixado nos velhos filmes dos anos setenta de Clint Eastwood, na época em que ele encarnava no cinema o perseguidor implacável Dirty Harry. O fascínio pelas armas de fogo não pode significar uma justificativa para o uso indiscriminado desses artefatos, se a polícia já pode dispor de outros meios para o emprego do uso da força. Em algumas capitais do país, já é possível o emprego de armas de choque, com riscos extremamente baixos de letalidade, que podem ser usadas em abordagens policiais e que são muito comuns no policiamento urbano, em diversas metrópoles do hemisfério norte e em algumas cidades do continente latino-americano. Nas feiras de segurança privada, todos os anos são expostos à venda mais e mais artefatos destinados ao uso da força pelos efetivos de segurança, além de equipamentos de proteção, que evitam o uso desmesurado de armas de fogo, quando no lugar delas podem ser usadas outras armas e equipamentos que reduzem os danos e propiciam uma eficaz ação policial. O problema, portanto, não é críticar a diretriz recomendada pela Portaria, mas sim reivindicar politicamente a prioridade governamental para a compra de novos equipamentos para as polícias.

"9. Os órgãos de segurança pública deverão editar atos normativos disciplinando o uso da força por seus agentes, definindo objetivamente:
a. os tipos de instrumentos e técnicas autorizadas;
b. as circunstâncias técnicas adequadas à sua utilização, ao ambiente/entorno e ao risco potencial a terceiros não envolvidos no evento;
c. o conteúdo e a carga horária mínima para habilitação e atualização periódica ao uso de cada tipo de instrumento;
d. a proibição de uso de armas de fogo e munições que provoquem lesões desnecessárias e risco injustificado; e
e. o controle sobre a guarda e utilização de armas e munições pelo agente de segurança pública."

Bravo!! A obrigação de expedir atos normativos disciplinando as diretrizes apontadas pelo Ministério da Justiça é mais do que óbvia, e nem deveria constar expressamente no texto da propria Portaria do Ministério. De qualquer forma, o ítem 9 explicita quais são as ações principais a serem desenvolidas para o fiel cumprimento da Portaria, não deixando margem de dúvida acerca de qual metodologia deve ser utilizada para a realização de uma atividade policial consentânea com o Estado de Direito. Como eu já disse, a implementação em nível nacional das diretrizes apontadas pelo Ministério da Justiça, ao invés de causar polêmica e animosidade, deve ser motivo de celebração e congratulação pelos bons préstimos que o governo federal deseja realizar para as polícias brasileiras. O objetivo é construir um aparato policial não apenas qualificado, bem estruturado e equipado, mas também hábil para o emprego do uso da força, dentro de uma filosofia de profissionalismo que deve pautar a atividade policial. Afinal, quando a sociedade legitima o controle sobre si própria e faculta ao Estado o poder de selecionar e recrutar profissionais, ela assim o faz na esperança de que zelosos e compententes agentes do Estado ocupem as ruas, preocupados com o bem comum, e não bandidos que infestem as ruas, pistoleiros usando distintivo, disfarçados de policiais. Toda forma de contenção do abuso é plenamente racional e natural a um regime constitucional que se queira democrático, e no novo marco institucional que vivemos no Brasil, nada mais legítimo do que referendar iniciativas que não visam coibir a função policial, mas sim contribuir para a sua modernização. Polícia eficaz não é só aquela que atira e prende, mas sim aquela que atua, soluciona o conflito e aplica a lei, sem necessariamente produzir um tiro sequer. Que bom que seja assim!