
O vídeo, disponibilizado no youtube e divulgado à exaustão pelos meios de comunicação, ocorreu no 25º Distrito Policial de Parelheiros, zona sul de São Paulo, e mostra bem o nível de despreparo, falta de qualificação profissional, ignorância quanto a aspectos básicos da lei, direitos constitucionais e até mesmo......medo. Isso mesmo, medo, porque na careta assustada do jovem delegado, visto no vídeo, que conduziu a operação, tudo se tratava de cumprir as ordens (a qualquer custo) do delegado divisionário ao qual estavam subordinados os policiais. Cenas de vexame explícito, muito mais para a polícia do que para a pobre mulher, que mesmo acusada (e se for o caso, condenada) por corrupção, tinha a obrigação sim, de responder a um processo criminal e ser responsabilizada penalmente, uma vez comprovada sua autoria num crime; mas nunca, repito, nunca, aviltada na condição humilhante a que se submeteu, tendo por algozes os próprios colegas.

Na abordagem da escrivã, suspeita de corrupção e com suposto dinheiro ou documentos comprometedores escondidos em suas vestes, percebe-se no vídeo que os delegados que estavam presentes na delegacia, ficam se perguntando se o ato de revistar a suspeita, tirando suas roupas, é legal ou não. Escuta-se na gravação que a escrivã questiona a conduta policial e alega constrangimento ilegal ter que se submeter aquele tipo de revista, negando-se a tirar a roupa. Nesse momento, um dos delegados diz que, podia sim, fazê-la tirar a roupa, citando o artigo 244 do Código de Processo Penal; mas o que diz o Código?
O CPP estabelece textualmente no seu artigo 244 que: A busca pessoal indenpenderá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso da busca e apreensão.
Ora, é lógico que a aplicação de qualquer artigo do Código de Processo Penal, ou de qualquer outra norma do ordenamento jurídico, deve ser vista em consonância com os princípios constitucionais. A lei determina a busca pessoal, mas a Constituição assegura o direito à intimidade e veda tratamento degradante. Portanto, ao analisar ambos os dispostivos (norma processual-penal e norma constitucional) é evidente que a Constituição predomina como vetor de orientação na aplicação da norma infraconstitucional, devendo o agente público que a aplica levar em conta tudo o que dispõe expressamente a regra constitucional. No caso da escrivã, ou de qualquer outra pessoa que venha a ser submetida a uma revista por agentes policiais, a busca de documentos e armas escondidos no traje dessa pessoa pode ser feita, desde que não se exponha a pessoa suspeita a tamanho constrangimento que comprometa sua dignidade (e, portanto, afronte norma constitucional). É uma questão de hermenêutica, do ponto de vista técnico, e uma questão de bom senso, do ponto de vista prático. Sob que pressões estavam sujeitos os policiais da Corregedoria, no momento em que procederam com a abordagem na escrivã em conduta suspeita? Será que a necessidade de filmar tudo, para que depois tal filmagem fosse mostrada aos superiores hierárquicos, não seria uma determinante na condtua dos policiais, porque queriam mostrar serviço, pegando a suspeita com a boca (no caso as calças) na botija? Tal fato permanece um mistério ou sepultado em alguma gaveta, pois a própria Corregedoria isentou de responsabilidade seus policiais.

Ora, pergunto do nível de formação formulada nas academias de polícia, em especial na ACADEPOL de São Paulo, que eu conheci e é tida como uma das melhores do país, quando a praxe cotidiana do trabalho policial parece que em nada se assemelha ao que é estudado pelos concursandos nos cursos de formação feitos pela academia. Em sua tese que acabou transformada em livro, o sociólogo Guaracy Mingardi, em Tiras, Gansos e Trutas, mostra bem o cotidiano da polícia judiciária, no mais populoso estado federado do país e numa das mais metrópoles do mundo, informando que a velha visão do "tira" ainda está presente na realização da atividade policial em São Paulo, e, nesse sentido, o trato com a marginalidade deve ser feito num pé de igualdade do que se faz nos filmes policiais, doa a quem doer, mesmo que ao arrepio de preceitos constitucionais. Preceito constitucional? Constituição? Pra que isso? Parece que para alguns membros da Polícia Civil de São Paulo, a Constituição de 1988 só veio mesmo para atrapalhar o serviço da prestativa polícia paulista (afinal, delegados não podem mais expedir mandados de busca e apreensão), e, conforme os dizeres da distinta corregedora de polícia, entrevistada pela imprensa, após a divulgação das imagens da escrivã transtornada, falar mal pelos jornais da atuação dos valorosos policiais da Corregedoria de Polícia, é um desserviço à atividade policial.


Eis que a atual Ministra dos Direitos Humanos, a gaúcha Maria do Rosário, teceu pesadas críticas contra a atuação da polícia civil, no caso da prisão da escrivã em São Paulo, e o atual secretário de segurança paulista, apressou-se em afastar os policiais envolvidos, inclusive os delegados responsáveis pela delegacia distrital e pela unidade da corregedoria presentes no fato, respectivamente. Na verdade, muito ou pouco adiantará a punição desses policiais, se a Polícia de São Paulo não se libertar das amarras que a deixam tão autoritária e criticada, quando deveria ser a mais elogiada, tendo em vista a responsabilidade de seus mais de 10 mil policiais no combate ao crime, na metrópole paulista, e seu histórico de organização, como uma das políciais mais antigas e mais emblemáticas do modelo de policiamento brasileiro. Se Felinto Müller, Sergio Paranhos Fleury e outros representantes da velha polícia da história, são hoje representantes do passado, no estágio atual de desenvolvimento da polícia brasileira, devem entrar novos, atuantes e honrados delegados e agentes policiais na corporação, radicalmente compromissados com os ideiais legalistas e constitucionais que embasam a atividade da polícia no Brasil, como também nas sociedades modernas do mundo. Chega de palhaçada! Chega de abusos! Chega da atuação irritantemente comprometedora e antiprofissional de despreparados policiais. Acorda Brasil! Acorda Polícia de São Paulo!