sábado, 10 de abril de 2021

O DIA EM QUE O MENINO HENRY PAROU DE CHORAR

O DIA EM QUE O MENINO HENRY PAROU DE CHORAR

Tenho um filho pequeno que faz aniversário no dia 10 de abril. Este ano, ele completa 6 anos de idade. Recordo que, horas antes de ter de viajar a trabalho para assumir um plantão policial, eu o visitei na casa da mãe dele, e o pouco tempo que ele tinha na ocasião comigo, ele não queria presentes e nem que eu o levasse para passear de carro, ou comer guloseimas e sorvetes. Ele me chamou para jogar pebolim (em algumas regiões chamado também de “totó”), aquele tradicional jogo de mesa, com bonecos operados por varetas num tabuleiro de madeira, com uma bola, com as cores de um time, simulando um campo de futebol. Na era dos computadores, internet e jogos eletrônicos, meu garoto preferiu chamar o pai para brincar num dos jogos da minha infância. Imaginei-me vendo a mim mesmo, brincando naquela idade, junto com meu pai, homem ocupado na época dele, também obrigado muitas vezes a viajar (no caso, de navio) a trabalho, mas que reservava um tempinho para brincar com o filho. Imaginei todos os pais, muito antes de um mês de agosto, celebrado universalmente como o dia deles, exercendo seu prodigioso papel de pai, que envolve muito amor, mas também responsabilidade e muita, mas muita paciência. Imaginei, também, o pai do menino Henry Borel.

O engenheiro Leniel Borel, imerso na tragédia, tornou-se mais um pai que, certamente, já está lamentando muito o fato de não ter podido aproveitar mais horas com o filho, também uma criança como o meu filho, e que, brutalmente (agora se sabe, pois todas as provas indicam), foi assassinado pelo padrasto, o namorado da mãe de Henry, o vereador Doutor Jairinho, do partido SOLIDARIEDADE, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Preso temporariamente esta semana, Jairinho foi levado à prisão juntamente com Monique Medeiros, ex-mulher de Leniel e mãe de Henry, acusada de ser coautora no crime, e, no mínimo, conivente com os maus tratos, agressões e torturas praticados  contra o menino Henry, que só tinha 4 anos.  Ambos foram indiciados em inquérito por homicídio duplamente qualificado,com emprego de tortura a uma criança e o fundamento de sua prisão deu-se pelo argumento de que estavam atrapalhando as investigações, tentando eliminar provas e coagindo testemunhas, como, por exemplo, a mudança de depoimento da babá da criança, levada a ser investigada por falso testemunho, face a diversidade de versões sobre as agressões praticadas pelo padrasto ao menino. Para se ter uma ideia, no momento em que foram abordados por policiais, os acusados arremessaram seus telefones pela janela, recuperados e apreendidos pela Polícia do Rio de Janeiro. 

Valendo-se de sua influência como vereador, Doutor Jairinho quis apressar a retirada do corpo de Henry do Instituto Médico Legal, a fim de que não fossem realizados mais exames periciais e tentou mudar a delegacia onde estava sendo investigado o fato.  Revelações recentes divulgadas pela polícia, que resultaram na prisão do casal, são, estarrecedoras, e revelam que Monique, por sua vez, já sabia há tempos das agressões do companheiro a seu filho, por denúncias feitas pela babá do garoto, em mensagens recuperadas pela polícia, onde relatava que o menino reclamava frequentemente de dores na pernas e na cabeça, todas as vezes após se encontrar no quarto com o padrasto. Quando ingressou no hospital, no dia 8 de março deste ano, levado pelo casal agora acusado, Henry já não respirava, e ao morrer, verificou-se em sua necrópsia que o menino apresentava diversas lesões, resultantes de agressão por meio contundente, como equimoses, lacerações no fígado e hemorragia interna. Tudo leva a crer que o garoto foi submetido a uma sessão de torturas pelo seu padrasto, com o conhecimento da mãe. Pergunta-se, então, na rotina hoje tão comum no Brasil, de jovens casais separados com filhos, que encontram novos relacionamentos: como admitir um pai ou uma mãe, que arruma um novo namorado ou namorada, que sua nova companhia seja tão agressiva com seu próprio filho, a ponto de matá-lo? Como não se colocar no lugar do pai de Henry, eu, que também sou pai de uma criança quase da mesma idade, que, ao tomar conhecimento de um fato delituoso tão terrível, não consegue conjugar outros sentimentos quais não sejam os de revolta e muita, mas muita tristeza?

Temos que nos deparar de um ano prá cá com a tristeza de uma pandemia, que, lamentavelmente no Brasil, já matou mais de 300 mil brasileiros, muitos deles nossos conhecidos ou entes queridos, mas, ciclicamente, na crônica criminal, há tempos nos deparamos, também, com a tristeza de casos rumorosos, de crimes hediondos que ingressarão, para sempre, no imaginário popular, através do seu registro histórico e da extensa literatura que geram, por terem repercutido tanto. O caso, envolvendo o menino Henry, tem profundas semelhanças com outro, que também abalou o Brasil, há mais de dez anos. Em 2008 (coincidentemente, também um mês de março), morreu, após ser arremessada da janela de um apartamento, no edifício London, em São Paulo, a menina Isabella Nardoni, então com 5 anos de idade. Os acusados do crime foram seu próprio pai e a madrasta, condenados na Justiça brasileira há mais de vinte anos de prisão. O caso, envolvendo Alexandre Nardoni e sua mulher, Anna Jatobá, poderia se equivaler ao de Jairo Souza Santos Júnior e Monique Medeiros. Ambos eram de classe média, viviam num grande centro urbano no sudeste do país (os Nardoni, em São Paulo, Jairinho e Monique, no Rio de Janeiro), e, da dupla de agressores homicidas, um exercia a função de madrasta ou padrasto, e fora quem perpetrou as agressões iniciais e mais profundas. Há, entretanto, um destaque especial, uma peculiaridade que pode ser vista no caso recente, envolvendo o menino Henry, uma vez que aquele que é acusado de ser seu principal assassino, é também um político profissional, o vereador eleito mais bem votado pelo seu partido na capital fluminense (na época o PSC-Partido Social Cristão), e o herdeiro de um legado político-miliciano que há décadas é estudado por cientistas políticos, antropólogos e criminólogos do Brasil e do mundo.

Diferente de Alexandre Nardoni, que tinha uma representatividade social muito mais modesta, à sombra do protagonismo do pai, advogado bem sucedido, Jairinho, formado em medicina, mas que nunca exerceu a profissão, é filho de um ex-deputado estadual, Coronel Jairo (como o nome diz, oficial reformado da Polícia Militar, e que sempre arregimentou votos no segmento policial). Eleito com o título de um médico de araque, o parlamentar  está no quinto mandato consecutivo na Câmara Municipal, fez sua base eleitoral na região de Bangu, e, acostumado com o poder, chegou a fazer parte da base de apoio do então prefeito Marcelo Crivella, e, claro, auxiliou no projeto político e na eleição do presidente Bolsonaro, bem como na ascensão de seus filhos, em particular no pedido de votos ao senador Flávio e a atuação conjunta na Câmara, com seu colega de Legislativo municipal, o vereador Carlos Bolsonaro. O pai de Jairinho, investigado pelo Ministério Público Federal por desvios na ALERJ, nos tempos de deputado, tem forte apoio das milícias e, certamente, legou ao filho seu capital político. O acusado de ser o assassino do menino Henry Borel, é, portanto, um homem acostumado a utilizar do poder, tendo passado pela presidência de várias comissões no parlamento local, e tendo forte ligação com outros políticos. Sua atual companheira, mãe de Henry, tinha sido presenteada com a nomeação em um cargo comissionado na Assembleia Legislativa, e, pelas investigações policiais, tudo indica que o conforto material e a prosperidade econômica, trazidos pelo relacionamento com um vereador experiente, tivessem levado Monique a deixar seu próprio filho ser agredido e morto por um monstro psicopata.

Segundo o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), apesar de ter alcançado avanços na redução da mortalidade infantil por doenças, nas últimas décadas, o Brasil ainda registra números terrivelmente elevados de homicídios de crianças e adolescentes. Para se ter uma ideia, entre 1996 a 2017, 191 mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência homicida no Brasil. Isso significa dizer que, assim como Henry, muitas crianças, mais jovens ou com mais idade que meu filho, não chegarão à idade adulta, pois suas vidas foram ceifadas precocemente por adultos, que as deviam proteger. A violência criminosa que sofrem esses meninos e meninas é subproduto de outra violência: a simbólica. E essa forma de violência mais sutil, associada a contornos macabros associados a um caso concreto, envolvendo um algoz, com traços de personalidade bem característicos de uma psicopatia, parecem ser alguns indicadores explicativos, à luz das ciências humanas, ao que aconteceu ao pobre menino Henry Borel.

Segundo o filósofo francês, Pierre Bourdieu, autor de diversas obras clássicas no século XX, dentre elas, “O poder simbólico”, ele dizia em suas aulas na universidade, que os indivíduos, organizados socialmente em interações sociais definidas como “campos”, possuíam uma série de atributos (capital), que dependia da função que cada um exercia num aspecto diferenciado de cada campo. Assim, no campo financeiro possuíam algumas pessoas um maior capital econômico, decorrente da renda ou da quantidade de riquezas que possuía. No campo social, os indivíduos tinham seu capital correspondente, relacionado às suas redes de amizade e convívio, bem como no campo cultural o capital de cada um decorreria de sua qualidade educacional, da formação intelectual, da quantidade de diplomas, livros lidos e produções teóricas que tivesse. Por fim, como numa reunião ou acúmulo dos capitais, citados anteriormente, adquiridos ao longo de uma vida, o capital simbólico se constituiria na reunião de atributos relacionados à honra, prestígio e reconhecimento social de uma pessoa. Neste último tipo ou modalidade de capital é que as diferenças de poder poderiam ser mais notadas e evidenciadas, pois é por meio do capital simbólico que indivíduos tentam influenciar outros indivíduos e instituições.

A violência simbólica, por conseguinte, é uma resultante da inadequação de um determinado capital  a um determinado campo, pela falta de equivalência do atributo que eu ou outra pessoa diz ter ou quer exercer, diante do reconhecimento que lhe é dado ou não por um segmento, setor (ou campo) da sociedade. Na busca irrefletida de prestígio, status social e reconhecimento, diante dessa violência, alguns homens ou mulheres acabaram por perverter seus “habitus”, outro conceito utilizado pelo célebre professor do Collège de France, que significa uma série de disposições incorporadas, tendências  que se desenvolvem tanto no âmbito de classes sociais, nações, etnias, como religiões e profissões, e que produzem comportamentos distintos, práticas (modos de ser, pensar e agir) adequadas ao capital que cada um detém ou busca.No caso de Monique Medeiros, suas práticas de mãe, socialmente cultivadas com a maternidade e a criação do pequeno Henry, parecem ter sucumbido ao habitus da mulher de político, que, para fugir da violência simbolizada pelo desemprego, desamparo ou falta de melhor condição social, topou um relacionamento amoroso com um homem de prestígio, mas altamente perturbado, sob o pretexto de poder pagar um colégio caro para o filho.

Traduzindo do sociologuês, para o leitor e a leitora, no caso dos acusados do assassinato do garoto Henry, parece ser evidente que tipos como o vereador Doutor Jairinho, por mais de uma década ostentaram a combinação perfeita do exercício do poder, conforme o emprego de um capital econômico e social, bem como de um capital simbólico, a fim de controlar pessoas e instituições para satisfazer seus próprios interesses, patologicamente narcisistas. Jairinho reunia o voto poderoso dos apoiadores das milícias no Rio de Janeiro, numa aliança que envolve o poder hipnotizante do dinheiro e o poder intimidatório das armas. Acusado por outras ex-namoradas de agressão, o parlamentar que agora caiu em desgraça entre seus pares, ameaçado de cassação do mandato, sempre conseguiu escapar, anteriormente, valendo-se do prestígio eleitoral, do poder do dinheiro em silenciar testemunhas, bem como da ameaça propriamente dita, a fim de intimidar quem quisesse acusá-lo. Soma-se a isso sua capacidade de se relacionar com diversas instituições, nomeando aliados e parentes para cargos, como fez com a mãe de Henry, ela mesmo nomeada em uma função pública com boa remuneração, e, tudo indica pelas investigações realizadas, seduzida pelo fascínio do poder nas mãos de um novo e influente namorado. Ao sofrer de uma vitimização simbolizada pela frustração da ascensão social tardia, e diante das dificuldades econômicas de um primeiro relacionamento, donde resultou um filho, parece ter restado a jovem e bonita Monique, a possibilidade de subir na vida, através da relação com o companheiro vereador, mesmo que com o sacrifício da segurança e mesmo da vida do próprio filho. Não podia se esperar, entretanto, que face à personalidade sociopática, de alguém disposto a agredir e eliminar qualquer um que lhe incomodasse, ao entrar em seu caminho, uma série de trocas simbólicas entre um casal levaria ao assassinato de uma criança.

Fico imaginando o choro e o soluço contido do menino Henry, após ser surrado dentro de um quarto por seu padrasto, sem ter como se defender ou quem o defendesse. Fico a  imaginar, outrossim, o choro de uma criança agredida, que, em sua tenra idade, não consegue compreender sequer porque está sendo agredida. Imagino milhares como ele, aqui mesmo no Brasil, em situação semelhante, e não tenho como não me recordar da imagem pueril de meu filho, uma criança contente, que quer apenas um minutinho que seja da companhia do pai para jogar pebolim, e que, provavelmente choraria, como se fosse agredido, se lhe fosse negado ao menos isso. Somente assim eu consigo digerir o silêncio que restou, quando em um hospital na Barra da Tijuca, um menino cruelmente torturado, finalmente parou de chorar, após passar por tanto sofrimento. Que o choro de um pai, que tomou o lugar do choro de um filho, transforme-se de pranto em sede de justiça, e que essa sede seja plenamente saciada com a condenação dos culpados.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

ESTUPRO CULPOSO OU MISOGINIA DOLOSA?

Mariana Borges Ferreira é uma bela jovem nascida em Minas Gerais e vivendo no sul do país, que trabalhava como modelo, promotora de eventos e alternava suas idas à praia e ao cinema com atuação destacada na internet, como blogueira e digital influencer nas redes sociais, como fazem milhares de jovens em tempos de cibercultura, principalmente agora, em plena pandemia. Conhecida nas redes como Mariana Ferrer, a garota, de 22 anos, valeu-se das redes e da mídia em geral para divulgar um caso de estupro que teria sofrido no ano de 2019, o que gerou uma ação penal, processada na 3ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis, em Santa Catarina, julgada em setembro deste ano.

Na denúncia, oferecida pelo Ministério Público, foi alegada a tese do estupro de vulnerável, uma vez que a vítima afirmara que no ano de 2018, em uma casa noturna na capital catarinense, o empresário André de Camargo Aranha, de 43 anos, teria mantido conjunção carnal com a vítima, sem que essa tivesse condições de oferecer resistência ao ato. Foi instaurado inquérito policial, cujas investigações deram ensejo a posterior processo criminal, e mediante a ampla defesa e contraditório foram fornecidas todas as provas, tanto pela acusação quanto pela defesa, resultando na absolvição do réu; inclusive mediante pedido formulado pelo próprio Ministério Público para que inocentasse André, em sede de alegações finais.

Por insuficiência de provas, André de Camargo Aranha foi judicialmente absolvido. O que chama atenção, no processo que julgou o suposto ato que vitimou Mariana Ferrer, não foi a tese seguida pelo juiz da ausência de materialidade ou in dubio pro reo, na ausência de certeza da responsabilidade penal do acusado (passível de recurso). O que restou em jogo foram princípios de dignidade humana, incoerência técnica na fundamentação de uma decisão judicial,  e, principalmente, falta de respeito das partes, do próprio juiz e dos procuradores, com a condição da mulher, vítima de violência.

Esta semana, o site The Intercept Brasil divulgou o vídeo da audiência judicial onde Mariana é ouvida, contando com a participação do promotor do caso e do advogado do réu, o criminalista Cláudio Gastão da Rosa Filho. Em cenas que revelam machismo explícito, falso moralismo e  beiram uma verdadeira tortura psicológica, o defensor de André de Camargo Aranha começa a escarnecer da vítima, numa audiência em videoconferência, exibindo fotos de Mariana nas redes sociais, tachando-as de "poses ginecológicas", insinuando que ela só queria fama e dinheiro, dizendo que o choro da vítima era dissimulado com "lágrimas de crocodilo",  além de afirmar que "jamais teria uma filha" do nível de Mariana. O que chama atenção é que, mesmo com os insistentes ataques do procurador do réu acusado de um delito sexual, dizimando totalmente a credibilidade moral da vítima, que, aos prantos, reclama que o tratamento humilhante que estava lhe sendo dado não era conferido nem a autores desses crimes hediondos, o juiz do processo nada fez para interromper os excessos do advogado Rosa Filho.

As cenas, consideradas lamentáveis pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, geraram uma verdadeira comoção nacional, com repercussão unânime como trending topics em praticamente todas as redes sociais mais utilizadas pelos brasileiros. Nos meios de comunicação foi noticiado que o Conselho Nacional de Justiça, por meio de sua Corregedoria, iria autorizar procedimento preliminar para apurar a conduta do juiz que conduziu o processo, mas, além da flagrante e visível humilhação porque passou Mariana nas tristes cenas vistas numa audiência, o que atemoriza mais a legalidade e o Estado democrático de Direito foi a fundamentação utilizada para absolver o réu.

A comentarista da rede de TV CNN, advogada e professora de Direito Gabriela Prioli, conhecida por suas posições firmes e altamente técnicas, manifestou-se nas redes sociais, polemizando, ao  comentar a sentença proferida pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal da comarca de Florianópolis. O motivo de Gabriela ter chocado seus seguidores foi por ter defendido a decisão judicial proferida, não obstante a repercussão do fato.  Afinal, há o respeito formal às normas técnicas, aos princípios que embasam a defesa e o devido processo legal e e até justificável à absolvição do réu, com base na insuficiência de provas, já que, ao menos para o juiz, autor da decisão, não haveria elementos suficientes para confirmar a vulnerabilidade da vítima no momento do ato sexual, confirmado por exame pericial. 

Entretanto, o que merece estranheza e talvez uma saraivada de críticas, é o que, no jargão da hermenêutica jurídica, alguns juristas chamam de "metanorma", ou seja, de critérios subjetivos para aplicação de normas e princípios que já podem estar no subsconsciente do julgador antes mesmo que a norma seja aplicada ao caso concreto. Cita-se, por exemplo de metanormas: a boa fé, a equidade e aquilo que o juiz entende por "bons costumes". Aí é que, numa sociedade de cultura altamente patriarcal e marcada pela dominação masculina, que as polaridades quanto aplicação da justiça se invertem, um curto circuito normativo pode ser dado, com prejuízos que se estendem muito além de uma isolada cena de audiência, onde uma vítima é humilhada, talvez não por estar mentindo; mas por ser mulher, jovem e bonita.

A sentença do juiz Marcos acaba por se basear no entendimento da própria promotoria com o pedido de absolvição de Camargo Aranha, apesar de ter ficado demonstrado (e confessado pelo réu em duas versões diferentes) que houve o ato sexual, quando ao, ao analisar as provas apresentadas, muitas delas registradas em vídeo, no local do suposto fato, a vítima não denuncia nem nas suas vestes e nem na sua conduta, segundo o representante do Ministério Público: um "andar cambaleante", de alguém que tivesse sido dopada ou estivesse sem consciência suficiente para consentir ou não com a prática de um ato sexual  e oferecer resistência. A tese do "estupro culposo", que não consta expressamente nos autos, mas é lida implicitamente no processo, ocorre quando a promotoria acata a tese de que, não obstante restar comprovado que a vítima ingeriu bebida alcoólica na noite do crime, e poder ter sido dopada por alguma droga colocada em sua bebida, sem que tal substância aparecesse na perícia, o autor do fato teria cometido, na verdade, um "erro de tipo essencial", previsto no artigo 20 do Código Penal. Por essa figura jurídica, o erro acontece quando a pessoa, em tese, delinque, mas não sabe que está delinquindo, mas sim praticando conduta diversa. Nesse caso, estaria excluído o dolo (a vontade livre e consciente de praticar ou assumir o risco de uma determinada conduta), e só poderia responder o autor do fato pela culpa. Ora, se o crime de estupro é doloso, não poderia, portanto, seu suposto autor ser responsabilizado. É nesse sentido que é utilizada uma fundamentação infeliz, no momento em que, pelos depoimentos obtidos das testemunhas durante o processo, André não poderia saber que estava estuprando uma mulher por ela estar simplesmente bêbada e não dopada.

Portanto, apesar das provas no processo (cuja sentença publicada pode ser obtida facilmente pela internet), conduzirem para a absolvição do réu, por conta da insuficiência probatória que levasse a sua condenação, o que se questiona é a forma como a prova foi valorada no processo. Daí, mais uma vez, preponderam critérios subjetivos e até mesmo ideológicos. Apesar de citar em sua sentença a jurisprudência dominante, que afirma que a palavra da vítima muitas vezes é suficiente nos crimes sexuais, o magistrado Rudson Marcos valeu-se de seu direito a invocar o principio do livre convencimento motivado, para absolver o réu, com base na interpretação que ele teve do que seja uma vítima de estupro. É aqui que reside uma zona de penumbra, que pode escurecer a mente de qualquer julgador e talvez nunca seja um ponto pacífico no direito brasileiro. Como saber onde está a verdade? Nas palavras das mulheres ou no que se diz sobre elas?

Compreende-se como misoginia, em termos gerais, a aversão patológica pelo gênero feminino e suas raízes históricas e culturais remontam a Grécia Antiga. Traduz-se basicamente por comportamentos nocivos dos homens em relação às mulheres que podem partir da agressão simples, desprezo até mesmo ao simples esquecimento de sua existência. A misoginia difere do machismo e sexismo, porque, nestes casos, respectivamente, o machismo representa uma defesa de hierarquia de gêneros, onde é pregada a manutenção de uma desigualdade pelo culto à superioridade dos homens em relação às mulheres; enquanto que no sexismo a discriminação ocorre pela objetificação sexual, onde é reservado à mulher tão somente o papel de parceira sexual e reprodutora, convergindo todos os seus atos, formas de pensar e vestes para isso. Nesse sentido, não deixam de ser altamente sexistas as falas de promotores e juízes em diversos processos criminais de violência sexual, assemelhados aos de Mariana Ferrer, que, num certo padrão, adotam em seus escritos expressões que fundamentam alegações  e sentenças com base nas roupas, formas de falar e andar ou mesmo de se apresentar em público as mulheres. A conduta do advogado Rosa Filho, por exemplo, ao exibir em audiência, fotos sensuais de Mariana quando ela era modelo, é de um sexismo que beira tão somente a mais completa e bisonha baixaria. Seria ridículo, se não fosse trágico!

Não resta dúvidas de que, não obstante a atenção mínima aos preceitos legais no que tange ao in dubio pro reo, se ter como previsível a sentença que absolveu o empresário André de Camargo Aranha, isso não justifica o calvário de humilhações pelas quais passou a youtuber Mariana. O que se critica não é a decisão em si, mas os caminhos tortuosos que a levaram a ser questionada. Não apenas pela forma altamente terrível, desrespeitosa, intimidadora e francamente misógina conduta adotada pelo advogado do réu numa audiência em que humilhou a vítima; mas, principalmente, pela adoção de componentes culturais altamente machistas e misóginos que levaram um promotor e um juiz a reproduzir uma forma de conceber o direito que nada contribui para combater a injustiça de gênero e a discriminação contra as mulheres. Que o caso de Mariana Ferrer não seja apenas mais um e acenda a luz vermelha do debate necessário que tem que ser feito, a fim de que seja reformulada, entre os operadores do direito, uma visão ainda tão estreita do papel da mulher em nossa sociedade, e da necessária erradicação da anacrônica dominação masculina. Talvez, desta forma, processos judiciais sejam conduzidos com mais sabedoria e menos pessoas tenham seus direitos aviltados. Que os culpados sejam condenados, e, aqueles que não são, que provem sua inocência sem ter que se valer do expediente de subjugar o outro pela sua condição de gênero. Nesse sentido, lá da Grécia Antiga, a poetisa Safo, agradece!




sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

DIREITOS HUMANOS: será que após 70 anos, humanos sabem o que são direitos?

Na data de 10 de dezembro celebrou-se em 2018 os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um marco na história dos povos, certamente; mas será que nós, brasileiros, sabemos realmente a importância disso, ou será que a Declaração é apenas mais um documento histórico, que muita gente nunca ouviu falar ou simplesmente esqueceu disso em sala de aula?
Vou propor um teste: pergunte na rua, para ao menos umas dez pessoas, entre transeuntes populares, o que elas acham dos direitos humanos. Não será de admirar se a maioria dos entrevistados receber a palavra como um palavrão e tecer algum comentário irônico ou raivoso sobre o tema, identificando os direitos humanos como a defesa de criminosos, ou mesmo um estímulo à impunidade. Afinal de contas, durante décadas fomos bombardeados nos meios de comunicação, por meio daqueles programas policiais sensacionalistas, com uma propaganda negativa, que não se preocupava sequer em deturpar um conceito. Não se trata de distorcer um conceito, mas sim o de definir outro.
Para alguns incautos, não adianta explicar que os direitos humanos, na verdade, nada mais são do que direitos básicos, considerados universais, em que se tem como invioláveis e sagrados direitos tais como a vida, a liberdade, a dignidade e a repulsa a qualquer forma de tortura ou tratamento cruel e degradante.  Nem tente argumentar, dando uma pequena aula de história, informando que o holocausto dos judeus e a descoberta dos campos de concentração, construídos pelos nazistas, e revelados ao mundo, foram um dos principais incentivos ao surgimento da Declaração, bem como, é claro, com o nascimento das Nações Unidas, passou-se a entender os direitos humanos como direitos de toda a humanidade.
Direitos humanos, ONU, holocausto judeu, nazifascismo, tudo isso parece palavras distantes, que lembram mais um filme norte-americano de guerra ou um documentário da Netflix, do que algo que seja vivenciado no cotidiano de milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros, sujeitos à violência urbana. São as mesmas vítimas de tratamentos cruéis e degradantes, que apedrejam os direitos humanos, por entender que não se trata de um tema que lhes é caro. Os direitos humanos não seriam direitos,  mas sim pessoas. 
É isso mesmo! No conceito construído há décadas pelos meios de comunicação, e, agora, sobretudo em tempos de redes sociais com propagação das fake news, direitos humanos não são o conceito de determinados tipos de direitos, mas sim a senha para identificar pessoas. Pessoas essas que quase sempre estão num espectro político negativo, são associadas à Esquerda e demonizadas pela Direita. E como não poderia deixar de ser, se defendem direitos de bandidos, é porque estariam de alguma forma, associadas a bandidos. Com a redemocratização do país nos anos oitenta do século passado, tornou-se célebre a defesa dos direitos humanos de quem foi injustamente preso, torturado ou exilado nos tempos de governo militar, e a imensa maioria dessas pessoas estava associada a esquerda política. Nos tempos áureos do petismo, nos governos de Lula e Dilma, notabilizou-se a defesa dos direitos humanos, a criação de um ministério específico para o tema, e, enfim, a constituição de uma Comissão da Verdade, criada para apurar os crimes e abusos cometidos pela ditadura, o que incomodou muita gente, mesmo não tendo a comissão qualquer papel punitivo, que pudesse levar ao banco dos réus, os responsáveis pelas violações de direitos.
Fico  pasmo de saber que em poucos dias assumirá a presidência da república um político de extrema-direita, e com ele todo o falatório demagógico de um conservadorismo tosco, onde, naturalmente, a temática dos direitos humanos não teria espaço. Na verdade, na construção de um ministério com figuras tão polêmicas, chama atenção a futura titular da Pasta responsável pelos direitos humanos, que sequer trabalha o conceito histórico trazido acima, por conta de seu fanatismo ou fundamentalismo religioso. Talvez no discurso do governo que entra, direitos humanos só são reconhecidos como os direitos das vítimas da violência criminal, e não se reconhecem quaisquer direitos a seus algozes, pois, afinal, na lógica repressiva e desumanizante do Estado, bandidos não são sequer pessoas, e não teriam até direitos garantidos a animais. Pior ainda se tais criminosos são autores de crimes violentos ou contra o patrimônio, e se são das mais baixas classes sociais. Para quem não reconhece o outro como humano, nada significa setenta anos da vigência de um documento histórico.
Pode-se dizer que é um problema de desinformação. Eu diria que mais do que isso, trata-se de um problema de cultura. Por décadas passamos não só por regimes políticos autoritários (Estado Novo, ditadura militar), mas também por um longínquo período do desenvolvimento de uma cultura autoritária. A controvertida Lei da Anistia, que beneficiou não apenas os perseguidos pelo regime, acusados de práticas terroristas, mas principalmente tornou impunes torturadores, travestidos de agentes do Estado, parece ter aprofundado o fosso cultural que separa a civilidade da barbárie, a consciência de direitos da suprema ignorância sobre eles. Passou a ser normal defender a tortura e o extermínio de pessoas, em prol de um sentimento de segurança, de uma falsa realidade de ordem e  progresso.Ao invés de, na campanha eleitoral,  vermos candidatos segurando crianças em escolas, mostrando-lhes um lápis, a fim de que, num futuro próximo, aprendessem devidamente o que seriam os direitos humanos, o que nos apareceu foi um candidato vitorioso ensinando a uma criança como fazer o gesto de apontar uma arma. Na pauta moralista- armamentista do conservadorismo brasileiro e do fundamentalismo religioso, portanto, não há espaço para os direitos humanos. Há apenas os direitos dos chamados cidadãos de bem, e do outro lado o espaço daqueles que não tem direitos.
Espero que, talvez um dia, ao serem perguntados na escola, garotos como o meu filho possam responder rapidamente e saber de cór os termos da declaração de 1948, sem achar que direitos humanos são algo negativo, ensinado num programa de televisão no fim de tarde, ou não sejam apenas tema de algum seriado ou documentário da Netflix. É pagar pra ver!!

sábado, 1 de dezembro de 2018

MOVIMENTOS SOCIAIS: Policiais Antifascismo-Um Conceito

Parodiando o célebre manifesto de Marx e Engels, um fantasma ronda o Brasil: o fantasma do antifascismo! 

Se assim como na Europa do século XIX, onde o Papa, os radicais da França e o aparato policial da Alemanha voltavam-se contra os comunistas, parece que no Brasil do estado de exceção permanente, que saiu das urnas no dia 28 de outubro, o presidente eleito Bolsonaro, Magno Malta, Malafaia e todos os setores de uma extrema-direita conservadora, evangélica, fundamentalista e ruralista, além de um contingente policial altamente reacionário, unem-se numa aliança para conjurar o antifascismo. Mas o que seria o antifascismo e, principalmente, o que se dizer de um movimento antifascista dentro do ambiente policial?

O chamado Movimento Nacional Policiais Antifascismo é um fenômeno social típico da ressaca da crise da globalização desde 2008, no cenário mundial, e da pulverização do Estado social-liberal  iniciado timidamente na década de 1990, com o mandato presidencial tucano de Fernando Henrique Cardoso, e fortalecido na era do lulopetismo, nos tempos áureos dos governos de Lula e Dilma, na primeira década deste século, se for levado em conta o aspecto local. Seu marco inicial pode ser destacado a partir de 2013, com o surgimento do ciclo de protestos populares intitulado como "Jornadas de Junho", a massificação dos movimentos sociais em rede, a formação de uma estrutura orgânica de organizações de direita, integrada por jovens militantes, como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre-MBL, e como consequente reação a isso, a reorganização de movimentos nessa mesma faixa etária da juventude, identificados com causas progressistas, mais à esquerda política, como a Frente Povo sem Medo e a Mídia Ninja.

Dentre os diversos movimentos de jovens, estudantes e trabalhadores delineado no ciclo histórico de crise ética, social e política no país, destaca-se o movimento antifascista. Tal movimento espalhou-se por diversos segmentos já tradicionais de organização da classe trabalhadora brasileira, como sindicatos e organizações sociais; porém, ganhou maior revelo após a repulsa aos discursos e práticas dos movimentos de extrema-direita ter alcançado integrantes dos contingentes policiais. A partir daí é que o ativismo social nas Polícias destacou-se e mostrou um curioso traço da organização da luta política e social no Brasil: o surgimento de novos atores no debate sobre a resistência ao desmantelamento do Estado social e a defesa abnegada de direitos fundamentais.

Ora, mas polícia, historicamente, não foi feita no Brasil para reprimir? É justamente para operar com uma quebra de paradigmas, com a apresentação de um outro perfil de policial, progressista, e identificado com as  causas sociais, que surgiu o Policiais Antifascismo. Menos do que ter se desenvolvido por uma adesão ideológica, defendo a tese de que tal movimento social nas polícias é resultante do surgimento de "trabalhadores atípicos" (termo utilizado por Boaventura de Souza Santos), e por meio da organização de um novo sujeito histórico, não mais identificado com uma vanguarda, simbolizada por um partido, associação ou sindicato, mas sim por redes mobilizadas sob a forma de uma multidão (conceito caro à teoria política de Hardt e Negri). Diferentemente dos sindicatos de policiais civis ou associações de praças e oficiais na Polícia Militar, o Policiais Antifascismo é composto pelo mais variado contingente de operadores da segurança pública em atividade no país, englobando tanto policiais civis quanto militares, bombeiros, policiais federais, policiais rodoviários federais, guardas civis, e incluindo, outrossim, agentes penitenciários, compreendidos como uma espécie de polícia prisional. Fazem parte, tomam parte nas discussões e podem intervir nos processos decisórios tanto profissionais ativos quanto aposentados. Uma das características básicas desse movimento é comum a todo tipo de organizações difusas que surgiram com a crise global, como o Occupy Wall Street, e o EuroMayDay  é a sua horizontalidade, a importância das redes sociais e o funcionamento através de diversos coletivos independentes, sem um núcleo central, mas identificados por uma pauta comum. Desta forma, o Policiais Antifascismo tem uma estrutura diferente da burocratizada realidade dos sindicatos de servidores policiais, e suas instâncias de decisão independem de assembleias ou da regularização de seus atos por meio de atas, publicação de atos oficiais ou mesmo de registro de um CNPJ. Prevalece muito mais a personalidade política do que personalidade jurídica.

Mas bem distante de ser uma ficção jurídica, o Policiais Antifascismo é um ator real na busca e preservação de direitos, e na sua denúncia contra a ilegalidade e o arbítrio policial. Conforme as teorias do pluralismo jurídico, não corre dúvida de que um movimento social formado por agentes de Estado, que tem a incumbência de realizar uma atividade formalmente disciplinada em lei, demonstra a todo momento as consequências de suas ações para o mundo do Direito, uma vez que a defesa contínua de direitos fundamentais por um grupo, mesmo sem personalidade jurídica estabelecida, nos moldes tradicionais, revisita a política criminal brasileira como um todo, integra e articula blocos de formadores de opinião, desenvolve pela ativação do discurso toda uma racionalidade que estimula a prática legislativa, bem como exerce um papel fundamental de mobilizador da opinião pública. Sobre opinião pública, lendo Habermas, percebi que o recente fortalecimento da Nova Direita no Brasil deu-se pelo sucesso em articular as redes sociais, desafiando, e até mesmo menosprezando a difusão de informações pelos meios de comunicação tradicionais. Por meio da criação de pseudorealidades, principalmente através da propagação das chamadas fake news, o neofascismo se estabeleceu de vez no Brasil, principalmente no ambiente policial. Para fazer frente isso, somente a atuação, também em rede, de movimentos autênticos e jovens, como o Policiais Antifascismo.

Os movimentos sociais de linha progressista são, como seus congêneres na direita política, integrados por jovens trabalhadores mal aproveitados no estágio final de crise da globalização. No caso das polícias, nota-se, no caso brasileiro, que a cada ano, um contingente maior de homens e mulheres com diploma universitário, acaba ingressando nos concursos nas carreiras policiais, principalmente na Polícia Militar e na Polícia Civil. A estratégia corporativista das entidades de classe como sindicatos e associações de policiais, na busca da valorização profissional (e consequente aumento da remuneração), por meio da exigência legal do nível superior, acabou atraindo milhares de profissionais que simplesmente não encontraram emprego em suas áreas de origem, na formação educacional, e que corriam o risco de permanecer desempregados ou integrar o precariado de uma massa laboral informe, sujeito a vínculos frágeis de relações de trabalho. Nesse sentido, o aspecto vocacional passou longe, a opção pela carreira policial passou a ser mais uma necessidade de sobrevivência, do que um destino profissional. Nesse sentido, do ponto de vista antropológico ocorreram dois processos de socialização distintos, e quase antagônicos: a) a integração total ao modelo ideológico da velha polícia, com a absorção de todos os vícios e cacoetes da atividade repressiva, desenvolvendo um conhecimento todo voltado a um repetitivo ensinamento tático e operacional, na lógica da "polícia boa é a que prende bandidos"; b) ou a repulsa a um modelo considerado anacrônico, e a busca de integração com indivíduos ou grupos, com pensamento mais voltado para a defesa do Estado de direito, em busca de maior instrução no que tange a aspectos tecnológicos e científicos do trabalho policial, com uso mínimo ou diferenciado da força por não ser considerado como critério último de eficácia, pautada no lema de que "polícia boa é a que investiga direito".

As peculiaridades da função policial servem, portanto, como um indicador útil para se desvendar o que pensam e o que querem os policiais antifascistas. Menos do que uma polícia permissiva ou "protetora de bandidos", como argumentam seus opositores, uma Polícia Antifascista revela-se, na verdade, uma imensa redundância ética, ao menos no que diz respeito a manutenção de um Estado democrático de direito. Ser antifascista num molde constitucional que rejeita a arbitrariedade, e consagra direitos fundamentais, deveria ser mais do que a regra, mas o verdadeiro mantra de qualquer trabalho policial de qualidade. Ter uma atividade policial como função social, pautada no atendimento, principalmente de segmentos sociais mais atingidos e vulneráveis, como pobres, negros, mulheres, pessoas com orientações sexuais LGBT, e, principalmente, pelo respeito e defesa dos trabalhadores subalternos do meio urbano, identificados como semelhantes aos agentes de Estado (que também se vêem como trabalhadores), deveria ser a filosofia de vida do integrante de uma organização policial numa sociedade democrática, ao invés de se cultuar uma separação entre o cidadão do lado de fora, e o policial do lado  de dentro da corporação.

É nesse sentido que o movimento Policiais Antifascismo aparece como um importante ator social num regime político incerto, onde o estado de exceção parece ser uma regra oculta, por debaixo das cortinas de uma frágil democracia. Se o velho Brasil de 1964, das fardas, tanques, baionetas e generais de outrora, teima em ressurgir, como um exército de brancaleone ministerial, nomeado por um presidente que não tem o respaldo de 44,87% dos brasileiros, saber que existe um enorme contingente de operadores da segurança pública que também não compactua dos ideais e preconceitos do mandatário de extrema-direita, parece ser uma lufada de esperança para progressistas e democratas de diversos matizes ideológicos. Afinal de contas, onde encontrar resistência maior ao autoritarismo senão dentro de instituições que foram concebidas para serem autoritárias por natureza? Nesse sentido, o compromisso e a missão dos policiais antifascistas revela-se mais cívica do que nunca.


terça-feira, 24 de outubro de 2017

VIOLÊNCIA E JUVENTUDE: A tragédia de Goiânia nos faz repensar nossas políticas para os jovens, inclusive a política criminal

Não há um brasileiro ou brasileira em seu estado normal de consciência que não fique chocado ou banalize o que ocorreu na escola Goyases, em Goiânia, quando um adolescente de 14 anos (o nome não pode ser revelado por questões legais), munido de uma pistola, matou a tiros os jovens João Vítor Gomes e João Pedro Calembo, ambos de 13 anos, ferindo outros alunos, dentro de uma sala de aula. Parecia que, desde a tragédia de Realengo, há poucos anos atrás, onde também um jovem atirador entrou num colégio desferindo tiros e matando crianças, o Brasil não vivia sua bad trip de atiradores solitários em escolas, como ocorreu no célebre caso da escola em Columbine, nos Estados Unidos. Ledo engano!

A questão dos atiradores em instituições de ensino (colégios ou universidades) e dos "lobos solitários" que da noite para o dia surtam, e armados até os dentes, chacinam a tiros dezenas ou centenas de pessoas (como ocorreu com um aposentado em Las Vegas, EUA, no mês passado), é um dos problemas mais complexos da criminologia e da psicologia criminal. No caso em Goiânia já se cogita que a motivação do autor dos tiros deu-se por bullying. Mas como prevenir condutas terríveis que parecem ser tão imprevisíveis? Como a sociedade e o poder público podem estabelecer medidas ou políticas que impeçam tais infortúnios?

É importante salientar, até para os defensores da liberdade do uso de armas de fogo, que não pretendo satanizar a indústria armamentista; mas sim estabelecer uma crítica segura. É indubitável que fatos tristes como o que ocorreram na escola Goyases estão relacionados ao acesso a armas. No caso de Goiânia, foi amplamente noticiado que o atirador adolescente é filho de um oficial e de uma sargento da Polícia Militar, e a corporação policial a que pertencem os pais do autor do fato já afirmou, por meio de seu porta-voz, que irá instaurar uma sindicância para apurar como o jovem teve acesso a uma pistola calibre .40 (de alto poder destrutivo). Atingidos por tiros a curta distância, das cadeiras onde se encontravam na sala de aula, João Vítor e João Pedro não tiveram a menor chance e morreram na hora. Sucedeu-se a um clima de terror com mais disparos efetuados, e coube a uma heroica funcionária da escola a coragem e a destreza para desarmar o atirador, que agora cumpre medida de internação provisória, decretada pelo juiz da Vara da Infância e Juventude, a pedido do Ministério Público.

O acesso às armas é, sem dúvida, condição objetiva para que tais fatos (no caso de um adolescente, atos infracionais) aconteçam e  se tornem tão preocupantes. Sabe-se que o caso envolvendo o colégio em Goiânia não é isolado, levando-se em conta que, na periferia das grandes cidades, quase que diariamente jovens adolescentes e até mesmo crianças são vítimas fatais de disparos de armas de fogo, seja na violência entre gangues, seja por balas perdidas ou execuções sumárias, feitas por bandidos traficantes ou pela própria ação da polícia. É curioso notar que tais cifras não foram reveladas nas extensas reportagens que tomaram conta da mídia na última semana, acerca da tragédia da escola Goyases, mas, segundo relatório deste ano, do Atlas Nacional da Violência, quase metade das causas de mortes de jovens no Brasil, nos últimos cinco anos (47,8%) foi causada por homicídios face o emprego de armas de fogo. É um triste fato e uma triste realidade, que parece não ser dimensionada por ser tão comum à periferia, mas tão rara a nossa classe média "batedora de panelas", em clima de crise política e institucional.

Pois o fato ocorrido em Goiânia deu-se num colégio particular, com meninos e meninas filhos de famílias de classe média baixa e alta, que amealham seus minguados recursos provenientes da atividade salarial para garantir uma melhor educação para seus filhos, face a precariedade do ensino público. Afirma-se que a escola Goyases era uma das referências da cidade de Goiânia em educação, e jamais nenhum de seus talentosos educadores iria suspeitar que um de seus alunos iria tomar uma atitude tão drástica e aterrorizante, de abater seus colegas de colégio a tiros, por conta de desavenças entre adolescentes. Parece raro, mas isso, na verdade, é uma realidade já comum e para alguns, até banalizadas em algumas instituições de ensino no país, principalmente após alguns meses atrás ter sido relatado pelos meios de comunicação casos recorrentes de agressões de professores por alunos, alguns, inclusive gerando lesões corporais e até mesmo tentativas de homicídio. Será que nossos estudantes estariam, portanto, tornando-se selvagens violentos?

Dentre as diversas teorias criminológicas, a teoria da subcultura delinquente de Cohen é apenas uma delas que tenta explicar fenômenos criminais associados à juventude. É claro que existem várias variáveis que devem ser aplicadas ao caso em Goiânia, mas não deixa de ser curioso que o fato criminoso envolvendo a morte de dois estudantes e a agressão a armada a mais uma dezena deles revela determinados traços de inaptidão a determinados rituais de iniciação da adolescência, dentre eles o de integração ou pertencimento a um grupo. Poderia ser aqui também exposta a teoria da anomia de Durkheim, no século XIX, ou a de Robert Merton, no século seguinte, ambas para explicar certo desacerto social ou inadequação de determinados perfis individuais a determinadas regras de convivência no meio social, mas é muito cedo para identificar tendências de comportamento, na análise do caso, uma vez que a identidade de agressor e suas motivações ainda não foram expostas abertamente à imprensa, além dos depoimentos colhidos dos pais dos mortos e agredidos e que chegaram ao conhecimento do público. Entretanto, políticas sociais para a prevenção de tais fatos podem, sim, ser debatidas num momento de tanta tensão e tristeza.

A Constituição Federal, em seu artigo 225, expõe de forma bem clara o dever do Estado, da família e da sociedade, a proteção da criança e do adolescente, assim estabelecendo:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (…)

Ora, não deixa de ser curioso (e até elogiável do ponto de vista cívico), perceber que até mesmo os pais dos adolescentes mortos, em suas declarações na imprensa,  não defenderam um punitivismo puro e simples para o autor do ato que vitimou a perda de seus entes queridos, defendendo, por exemplo, a redução da maioridade penal. Talvez por se tratar de um jovem da mesma classe social de seus filhos, o tempo inteiro o que se via nos meios de comunicação eram pais de alunos referindo-se às vítimas e agressor como "crianças", no lugar das expressões "bandidos" ou "delinquentes juvenis", tão comuns nos nossos meios de comunicação, que estimulando um populismo penal punitivo, desejam colocar na vala comum todos os autores de ilícitos penais, sejam eles adultos ou adolescentes. Na verdade, a meu ver, todo o discurso demagógico presente no parlamento brasileiro acerca da maioridade penal tem a ver com outra teoria criminológica: o labeling aproach ou etiquetamento, onde, determinados autores de ilícitos, dependendo de sua etnia, condição ou classe social, são rotulados ou etiquetados como os indesejáveis realmente merecedores das reprimendas legais, pois na seletividade de um sistema penal excludente,  são eles os destinatários específicos de uma sociedade de classes que naturalmente criminaliza os menos abastados. 

Nesse sentido, de certa forma causa-me espécie quando adolescentes plenamente incluídos socialmente, em ambientes familiares tipicamente "sadios", e em condições econômicas semelhantes, envolvidos em gravíssimo ato de repercussão penal, são tratados devidamente conforme o ditame constitucional, enquanto adolescentes da periferia recebem ou deveriam receber o mesmo tratamento que os adultos, ao menos conforme o vaticínio dos defensores da redução da maioridade penal. O que se revela diante de tamanha incongruência é a necessidade, mais uma vez (e parece o velho batuque do samba cantado tão repetidas vezes), da criação e do estímulo de políticas públicas de prevenção à violência e proteção da juventude, por meio de diversas ações sociais que vão desde o acompanhamento psicológico em escolas, combate ao bullying por meio da conscientização e inclusão de jovens em grupos temáticos de defesa de temas propositivos como meio ambiente, cultura, esporte, política estudantil, oferta de ensino profissionalizante e atividades recreativas. Também merece nota o apoio à escola pública, com erradicação do analfabetismo e combate à evasão escolar e inclusão digital, de forma progressiva, racional e comedida, com a formação tecnológica de redes sociais de apoio e colaboração mútua via internet. Eu também me arriscaria a citar a criação de grupos de aconselhamento, integrados não somente por educadores ou técnicos habilitados, mas também pelos próprios jovens que já passaram (e superaram) determinados traumas de adequação social, cujos relatos poderiam ser úteis aos demais.


Naturalmente, todos já foram adolescentes algum dia, e é sabido que tal fase é um período conturbado de descobertas, alterações hormonais e rituais de iniciação que definirão precipuamente o caráter e a personalidade de alguém, e não se pode esquecer disso. Porém, é tarefa dos educadores impedir que essa fase turbulenta transforme-se numa luta selvagem de uns contra todos, como se tudo retornasse a um estado de natureza, onde nossos jovens destruiriam-se a si próprios. Para isso, a atenção de pais, professores é fundamental, e o apelo às entidades públicas (em particular a polícia), deve consistir, realmente, na ultima ratio, torcendo-se para que eventos como ocorreram no colégio em Goiânia dificilmente repitam-se novamente.