segunda-feira, 18 de abril de 2011

TIROS EM REALENGO: Entre o bullying e o tráfico de armas, cadê o Michael Moore na Columbine brasileira??

Em 20 de abril de 1999, os estudantes norte-americanos, Eric Harris, de 18 anos, e Dylan  Klebold, de 17,  entraram armados na escola Columbine, na cidade de Jefferson, Colorado, nos Estados Unidos, e iniciaram um massacre que culminou com a morte de 13 pessoas, além de 21 feridos, até que ambos se mataram. Tudo  isso em frente às câmeras de vídeo da escola, que filmaram a ação dos assassinos. A tragédia repercutiu no mundo inteiro, e nos EUA passou a se questionar o uso ostensivo de armas e a legalização da venda desses artefatos para toda a sociedade. O triste acontecimento dos jovens atiradores na cidadezinha do Colorado, rendeu ao menos dois bons filmes, conhecidos mundialmente: um foi o documentário premiado com o Oscar, Tiros em Columbine, do cineasta e ativista de esquerda, Michael Morre; o outro foi o premiado longa-metragem Elephant, um drama de ficção, mas fielmente baseado nos acontecimentos em Columbine, filmado pelo cultuado diretor, Gus van Sant.

Os países do hemisfério norte são pródigos em registrar casos de atiradores em escolas. Um dos mais trágicos e recentes, com uma cifra enorme de mortos, aconteceu na instituição de ensino superior, Virginia Tech, no ano de 2007, onde o perturbado estudante sul-coreano, Cho-Seung-Hui, também entrou armado no campus da universidade e matou 33 pessoas, antes de por fim à própria vida. Foi o maior número até agora de pessoas mortas por atiradores alucinados, dentro de uma instituição de ensino, e parecia ser uma cifra macabra pertencente apenas aos países desenvolvidos. Ao menos até agora.

O Brasil, infelizmente, entrou na trágica cifra dos países abalados por atiradores em escolas. No último dia sete, do mesmo mês de abril, onde, numa horrível coincidência, os jovens Harris e Klebold cometeram crime semelhante, há mais de dez anos atrás, o jovem de 24 anos, Wellington Menezes de Oliveira, invadiu a escola  municipal Tasso da Silveira, bairro do Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde foi ex-aluno, e lá, sob o pretexto de que iria dar uma palestra, entrou em uma das salas, e munido de dois revólveres e muita munição, abriu fogo contra os alunos pré-adolescentes que se encontravam no local, matando ao todo doze pessoas, na sua maioria, meninas, que começavam a ingressar naquilo que chamamos de "flor da idade", além de enviar vários estudantes para o hospital. Durante a semana, exaustivamente na televisão, vimos os videos da escola, mostrando o exato momento em que o atirador entrou e começou a promover sua matança, até ser alvejado por um sargento da PM, e finalmente jazer morto nas escadarias da escola, após dar um tiro na própria cabeça.  De fato, para mim, ao acordar pela manhã e tomar meu café vendo pela TV este triste fato, parecia uma alucinação, uma cena de filme de terror ou uma piada de primeiro abril; mas se tratava de uma triste realidade. Do dia para a noite, o Rio de Janeiro virou o Colorado e a escola Tasso de Silveira, tornou-se Columbine.

Enquanto escrevo, diversos meios de comunicação, além de vários períódicos, continuam a noticiar a tragédia carioca, em mais um fato nefasto que assombra o cotidiano de violência da Cidade Maravilhosa. Agora, não é mais o narcotráfico, a violência policial, a força das enchentes ou o cataclisma dos desabamentos que assola as páginas da imprensa sensacionalista da metrópole fluminense, mas sim o gesto alucinado praticado por Wellington de Oliveira, que assim como muitos outros atiradores insanos que entram em escolas com sede de matar, veio a tirar a própria vida, sabendo que em sua empreitada assassina, ele não saíria vivo. Diversos pesquisadores, criminólogos, psicólogos e psiquiatras de plantão, apressaram-se para analisar as causas da tragédia e perquirir (através de videos deixados no computador do assassino) como funcionava a mente perturbada e doentia de assassinos como Wellington.

Nos jornais e revistas de todo país atribuí-se ao bullying, um anglicismo herdado da psicopedagogia nortem-americana, as razões para a conduta errática e desenfreada do atirador Wellington. O rapaz, sofrendo desde criança sérios problemas mentais, herdados de uma mãe esquizofrênica, e com graves problemas de socialização, era constantemente vítima de abusos, brincadeiras, piadas e zombarias de seus colegas de colégio, sendo ridicularizado e até jogado numa lata de lixo. No próprio vídeo divulgado na imprensa pela polícia carioca, aparece a imagem de um Wellington barbudo, às vezes fantasiado de radical islâmico, outras, vestido como os atiradores de escola que admirava e que acabou por imitar, como o coreano Sheung-Hui. É possível ver no vídeo, Wellington divulgando a carta onde, de forma confusa, expunha as razões de seu crime, e atribuía ao bullying sofrido nos tempos do colégio, os motivos para massacrar os jovens alunos da escola Tasso da Silveira. Estaria explicada a causa de um crime tão horrendo, que chocou o país e o mundo inteiro. Mas, criminologicamente falando, a coisa não é tão fácil assim.

Temos em nossa literatura criminal, forte influência da criminologia liberal ou das chamadas teorias funcionalistas ou do consenso, que procuram atribuir a existência do crime, por conta da existência do criminoso. É uma velha visão causal-naturalista, de causa e efeito, de caráter individualista, que restringe a caracteres individuais a explicação dos mais variados tipos de delitos. O problema do crime é o problema do criminoso, e assim, somam-se jargões psquiátricos e psicanalíticos para justificar o crime do Realengo, explicando o corredor de crianças mortas e mães em pânico, no hediondo cenário que se tornou os corredores da Tasso da Silveira, com uma simples palavra: loucura.

Não tenho dúvidas de que Wellington tinha um parafuso a menos. Esquizofrênico ou paranoico, talvez, mais principalmente, um louco, mas também um louco vítima de bullying na infância e que conseguiu se armar facilmente, num país onde o tráfico de armas prepondera de forma tão alucinante que é possível comprar, no mercado negro, uma arma de fogo pela internet, em até dois dias. Das inúmeras teorias que podemos aplicar ao caso em Realengo, tem-se a teoria da anomia de Durkheim, onde a conduta praticada pelo atirador assassino no colégio carioca, retrata bem o perfil assassino de determinados indivíduos, cujos parafusos da cabeça definitivamente soltam, diante da loucura da sociedade em que vivemos. Anomia pode ser traduzida como uma situação de ausência de adaptação do indivíduo ao meio coletivo que o circunda e funda sua identidade social, por conta da complexidade e da trama perversa de uma estrutura de expectativas e cobranças de ascensão social que são feitas aos indivíduos desde a tenra idade, a começar pelos colégios, onde predomina a ideologia da livre concorrência e o "cada um por si, Deus por todos". Algumas pessoas não conseguem se adaptar a essa situação, e diante de sua fragilidade emocional, acabam cometendo atitudes absurdas, como forma de demonstrar seu desacerto e a forma deturpada com que se relacionam com o mundo a seu redor.  Wellington de Oliveira era um tipo anômico, e de situações anômicas, temos como bem característica, a existência frequente de bullying nas escolas brasileiras.

Só vim a ter contato com a palavra "bullying" e vir a conhecê-la melhor como uma espécie de "tirania infantil dos colegas de escola", há poucos anos. Até então eu não sabia que a perseguição e stress que passei na minha infância e pré-adolescência, e que tantos outros passaram, receberia um nome tão pomposo e seria o tema do momento no século XXI. Na época em que eu era criança, não se falava dos males que as zombarias, brincadeiras de mau gosto e humilhações ocorridas no colégio, feitas por colegas de sala ou desafetos na instituição escolar, poderiam fazer na cabeça e na personalidade de mentes mais frágeis e que isso poderia desencadear um processo desastroso, funcionando como uma fábrica de futuros assassinos. Lembro-me quando tinha apenas 12 anos e fui estudar em Brasília, no Colégio Militar, e de como sofri sob os olhares maldosos e sádicos de outros meninos que não toleravam conviver com um colega negro, gordinho, tímido, meio desengonçado, perdido entre livros, gibis e álbuns de figurinhas, e que, ainda por cima, tinha óculos fundo de garrafa. Recordo-me de um aluno chamado Rogério, o valentão da companhia (como se chamavam as turmas do colégio), que, após ter me feito uma provocação, foi recebido com um xingamento, e em função disso, jurou me pegar de surra no final da aula. Promessa feita, promessa cumprida. No final da aula, eu já ansioso pra sair do colégio, pra evitar uma briga, e mediante um coro geral dos alunos da sala, de que iria rolar porrada no fim da aula, vi-me cercado e obrigado a sair da sala, mediante um corredor de meninos, como um boi se aproximando de um abate, e no final do corredor, lá estava Rogério, esboçando um sorriso maroto, com uma toalha amarrada em uma das mãos. Se a memória não me falha, lembro que fui agarrado por trás, covardemente, por dois comparsas do tal Rogério, e imobilizado, passei a só ver estrelas, entre um outro flashe de luz, diante da sucessões de socos e pontapés que recebi, antes de cair no chão com a roupa toda rasgada e suja de sangue, com lágrimas que me borravam os olhos não de tristeza ou de medo, mas de ódio, e muita, muita humilhação.

Fico pensando, quase trinta anos depois, como esse episódio pode ter ocorrido de forma semelhante com tantas e várias pessoas, homens ou mulheres, que quando crianças, já foram autores, partícipes ou vítimas dessa conduta infantil tão peculiar que é o bullying, e de como isso, por mais que seja alertado pelos especialistas como maléfico na vida estudantil, pode fazer parte do ritual de passagem de todo adolescente.

Acredito que o bullying sempre existiu, em diferentes épocas e em diferenciadas sociedades, independente de cultura ou nacionalidade, seja a partir de jovens, filhos de lares violentos ou desajustados, até chegar a garotos metidos a valentões, filhos de pais pacatos, ordeiros e cumpridores de seus devedores. O que há de errado, então? Entendo que o fato de alguns moleques e gurias nas escolas se portarem como fascínoras, e outros se sujeitarem, como vítimas submissas, a uma relação de poder pautada pela violência, relembra-me um pouco as passagens do livro Demian, do escritor alemão Herman Hesse, onde o protagonista, Emil Sinclair, na infância, em seu colégio, era vítima das investidas do fanfarrão Karl Fromer, que o aterrorizava constantemente; até entrar em cena o amigo de Sinclair, Demian, dando toda uma nova conotação e um novo rumo para a história do personagem. No Colégio Militar, eu não tinha um amigo como Demian, mas sempre era bom para os garotos menores ou mais fracos, ter um irmão mais velho estudando na instituição; ou, ao menos ser "peixe" de algum aluno mais graduado. Eu não tinha nenhuma das duas coisas. E para um garoto cujo pai vivia trabalhando e não podia vir ao meu socorro, eu poderia até me tornar um homem frustrado, traumatizado pelas agressões na escola, quem sabe poderia até me tornar um futuro atirador de colégio, um criminoso paranoico que despeja todo seu ressentimento quando chega à idade adulta, vingando-se, como Wellington fez,  nas crianças mais fracas, principalmente meninas. Mas não me tornei um monstro, como muita vítima de bullying também não é.

Acredito que o bullying sempre irá existir, pois se trata de um fenômeno social típico de uma sociedade dividida em gerações: entre os mais jovens, que aprendem a se socializar das mais diversas formas; e entre os adultos que repassam aos mais novos essas formas de socialização, sejam elas as melhores ou piores possíveis. Vivemos numa sociedade capitalista, onde é dada a ênfase ao lucro e à produtividade, onde a livre iniciativa e livre concorrência imperam, e onde, numa seleção natural darwiniana, aprendemos que somente os mais fortes sobrevivem. Essa é a lógica do bullying, assim como são várias outras que fundam o individualismo como uma luta primitiva do homem contra o próprio homem, e onde as crianças reproduzem nas escolas essa mesma lógica primitivista, encontrada num estado natural de luta de uns contra os outros, tão descrito na obra de filósofos do contrato social como Hobbes e Rousseau. Em termos de política criminal de caráter não-penal, acho louváveis as iniciativas educacionais de caráter preventivo, visando inibir a violência nas escolas, pregando o quanto o bullying pode ser nocivo e prejudicial ao convívio social e à formação de jovens adolescentes; mas isto não impedirá as zombarias dentro ou fora da escola, a competividade, a intolerância infantil, o abuso, o descaso e o desrespeito que jovens pré-adolescentes mantem entre si, no seu habitat etário, uma vez que faz parte desse processo a existência de conflitos infantis, onde nenhuma das partes tem razão, e onde o garoto australiano, Casey Heynes, acaba por reagir e dar um sova nos seus desafetos do colégio, após ser chamado de gordo idiota durante bastante tempo (num vídeo que ganhou o estrelato no youtube). O bullying não pode ser extinto, mas pode ser controlado, dentro de instituições de caráter panóptico como é a instituição escolar;  mas o tráfico de armas é que não tem sido. E esse, a meu ver, é um dos problemas mais graves que resultou na tragédia de Realengo. Mas, acerca disso, não temos aqui no Brasil um Michael Moore pra nos ajudar, e dizer o quanto é maléfico e revestido de impunidade, o tráfico ilícito de armas em nosso país.

Após a chacina dos estudantes de Realengo, no Congresso Nacional sobraram iniciativas demagógicas, tentando reviver o clima de realização de um referendo sobre a venda de armas, num assunto que já foi votado pela sociedade brasileira, na votação acerca da reforma do Estatuto do Desarmamento, em 2005. A novidade é que velhas figuras da política nacional, como o senador José Sarney, tentam vender a ideia de que agora, com a comoção da opinição pública acerca do episódio da escola Tasso da Silveira, a sociedade brasileira encontra-se tão comovida, que irá banir de vez o comércio lícito de armas em nosso país, como se isso fosse a solução para os problemas da criminalidade violenta, principalmente em atentados produzidos por indivíduos loucos, como Wellington de Oliveira. Ledo engano!

Em 2005, votei pelo "não" no referendo, sendo altamente criticado por minha posição nessa discussão, acusado de ser a favor das armas e promover a violência. Na verdade, tanto naquela época, como digo agora, acredito que a discussão da supressão da venda de armas seja tão inócua como foi no passado, pois o problema não é proibir o comércio legal de armas de fogo,  mas sim o comércio ilegal, promovido ao custo da corrupção de setores armados da sociedade, como as polícias e o exército, e o extenso tráfico de armas que acontece nas áreas de fronteira, por onde entra a maior parte das armas ilegais apreendidas, utilizadas na prática de delitos. Um proprietário honesto de uma arma de fogo, que tem sua posse legalizada, não saí por aí entregando sua arma ou vendendo-a ilicitamente a estranhos, até porque ele sabe que, com os rigorossímos critérios que existem hoje para se ter uma posse de arma legalizada no país, com a extensão de cadastros e registros envolvidos em seu nome, seria impossível para ele ter uma arma de sua propriedade envolvida num delito, sem que fosse ele responsabilizado. Proibir o comércio legalizado de armas no país, sob a alegação de diminuir a violência pelo uso de armas de fogo, é o mesmo que atacar os altíssimos índices de acidentes e mortes no trânsito, com a proibição da venda de carros.

Sem querer fazer coro com os reaçonários de plantão, acho que determinados setores da esquerda brasileira foram seriamente conquistados por uma concepção equivocada, maniqueísta e demagógica, de que a solução para a violência é alcançada através de medidas proibitivas. As piores ditaduras, assim como o nazifascismo na Europa do século passado, utilizaram o argumento do desarmamento para desarmar uma população inteira, até que os efetivos armados do Estado pudessem tomar o poder. Não se viu até hoje, nenhuma luta popular ou processo revolucionário resistir na sua fase crítica de enfrentamento com o poder, sem que se valesse do uso legítimo de armas. É doído pra mim falar acerca da crítica à proibição do comércio de armas, tendo em vista que, apesar de ter porte, abomino armas de fogo e tenho pouquíssimo contato com esses artefatos, apesar de poder utilizá-los. Sei da enorme responsabilidade que tem os agentes de Estado, assim como daqueles que portam legalmente armas, hoje em dia no nosso país; mas também sei que medidas efetivas de combate à violência, passarão a existir a partir do efetivo combate à corrupção policial, mola propulsora do tráfico ilícito de armas de fogo, que existe hoje em nosso país. Defendo um controle mais rigoroso das fronteiras, com o aproveitamento do exército, em parceria e integração com a Polícia Federal, e defendo, sobretudo, uma fiscalização constante de todos os colecionadores, clubes de caça e indivíduos que recebam porte legal de arma, nos termos conferidos pela lei. Agora, não consigo ainda me prender ao argumento simplório de que, proibindo-se a venda de armas, estará resolvido o problema dos crimes violentos no Brasil.

Solidarizo-me com o pranto das mães das 12 crianças mortas no Rio de Janeiro, assim como compartilho da alegria dos pais dos alunos feridos, que, ao menos puderam rever seus filhos vivos, ao saírem do hospital, após passarem por um inconcebível pesadelo. Minha reação diante da conduta de Wellington de Oliveira é uma mistura de revolta e tristeza. Mas não posso ficar calado diante de afirmações estapafúrdias e fora de contexto, querendo justificar tragédia tão injustificável, tão somente baseados em argumentos simplórios, que estamos cansados de ouvir. Não sei se dá pra evitar novas Columbines; mas sei, sim, que podemos inibir o surgimento de novas Realengos, desde que a polícia e as demais instituições estatais façam o seu trabalho. Faço minha homenagem aqui às famílias dos pobres jovens, vítimas inocentes de uma mente insana, numa sociedade anômica, mais insana ainda. Enquanto isso, um corpo de um atirador demente jaz morto numa das gavetas do IML carioca, sem ter um único parente para vir reclamá-lo, indicando que será enterrado como indigente. Que triste fim, e que triste história de vida teve, esse tal de Wellington Oliveira. Que pena ter entrado para a história de nossa literatura criminal, de uma forma tão triste e desesperadora. Que seu corpo seja esquecido no fundo da terra, mas que episódios que o levaram a isso, jamais saíam de nossa memória, como parte de nosso duro aprendizado, assim como é duro ter que aprender que, pelo menos uma vez na vida, todos terão uma história de bullying pra contar em sua biografia! Michael Moore, por essa você não esperava!