segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

CASO DILERMANDO: Racismo ou abuso de autoridade?

Coube de no penúltimo dia do ano, ainda enlevados pelo clima de congraçamento, solidariedade e festejos natalinos, o ano de 2013 ter fechado para os natalenses e para a sociedade potiguar em geral com a impressionante cena, explorada à exaustão nas redes sociais, de pura baixaria e violência, mostrando numa refinada padaria de Natal, o desembargador Dilermando Mota batendo boca numa ácida discussão com um popular, no último domingo, dia 29 de dezembro. O motivo da confusão seria, segundo relatam diversos blogs e mensagens de What's App, um desentendimento entre o citado magistrado e um garçom do estabelecimento, o que rendeu a intervenção de um terceiro senhor, retratado no vídeo, que inconformado, segundo dizem, com o tratamento humilhante a que estava sendo submetido o garçom, decidiu questionar o juiz, vindo a bater boca com ele, numa cena feia que virou caso de polícia. Segundo anunciam os meios de comunicação, quatro viaturas da Polícia Militar foram chamadas pelo desembargador para prender o garçom e seu novo desafeto por crime de desacato, e, segundo também o que relatam as fontes jornalísticas, a ocorrência não foi adiante porque os próprios populares, consumidores da padaria, que se encontravam no local, não deixaram que a polícia levasse os dois infelizes alvos da fúria do eminente magistrado.

O desembargador Dilermando já conta mais de vinte anos na magistratura potiguar. É um homem negro, de 61 anos, e por sua condição de afrodescendente foi o primeiro e um dos poucos juízes da cor negra a ingressar na magistratura do Rio Grande do Norte e o primeiro negro a ocupar a vaga de desembargador, no Tribunal de Justiça do Estado. Em 2014 ele deverá assumir a condição de presidente do Tribunal Regional Eleitoral, assumindo a responsabilidade do processo de eleições do próximo ano. Somente em função desse histórico, o currículo do desembargador já seria motivo suficiente de orgulho para o Movimento Negro no Brasil, pois, assim como Joaquim Barbosa, atua presidente do Supremo Tribunal Federal, Dilermando foi mais dos jovens negros, de origem humilde, que ao conseguir concluir o ensino universitário, conseguiu, por seus próprios méritos, galgar espaços ocupando um importante cargo na magistratura brasileira, ostentando com orgulho sua condição de juiz de direito.

O que ocorre é que, de forma precipitada, os meios de comunicação já elegeram um algoz, creditando todo um ódio e preconceito de classe a um afrodescendente por assumir uma posição de autoridade, num grau infinitamente superior ao de um trabalhador subalterno. Reacendendo um curioso conflito de classes, os meios de comunicação que, sabidamente representam os interesses de uma classe dominante, agora se apiedam de um simples trabalhador urbano (o garçom envolvido na controvérsia), e condenam a conduta do juiz Dilermando, como sendo um exemplo cabal de um capítulo do célebre livro do antropólogo Roberto da Matta (Carnavais, Malandros e Heróis). Assim, para muitos, o caso de Dilermando e do humilhado garçom reproduzem de forma lapidar a  frase do livro de da Matta: "Você sabe com quem está falando?".

Desembargador Dilermando.Celebridade instantânea nas redes sociais.
Entretanto, não obstante a ação midiática, é preciso acalmar os ânimos, e analisar sob um prisma mais racional, à luz do direito, da sociologia e da psicologia social, o que realmente pode ter acontecido na padaria Mercatto, e elucubrar as origens ou ao menos os motivos de tanta celeuma e tanta baixaria, numa cena muito mais trágica do que cômica. Não obstante o histórico de diatribes do citado desembargador, até agora ninguém comentou nas redes sociais como se deu o início da discussão entre ele o garçom, antes de outro desafeto vir a iniciar um acalorado bate-boca com Dilermando. Não se ouviu a outra parte, o outro lado da história; ou seja, não houve contraditório. Algumas pessoas narram que o desembargador exigiu que o garçom o olhasse nos olhos, e ameaçou prendê-lo por desacato por estar tratando com uma autoridade. O que precedeu isso? Será que foi apenas porque um indefeso e inofensivo garçom equivocou-se por levar gelo ao magistrado num copo de plástico? Ou haveria mais razões para ser praticado tanto desatino? É bem verdade que algumas pessoas que vem de camadas mais desfavorecidas da população, quando conseguem alcançar um cargo de destaque, seja no poder público ou no ambiente empresarial, tendem a se portar como indivíduos mais garbosos e orgulhosos, chegando a se tornar prepotentes, em alguns casos, mas nada que fuja da normalidade, ao ponto de chamar a atenção de outras pessoas. Será que não haveria aí também uma reunião de conflitos psicológicos, traumas ou experiências de preconceito, que levaram o desembargador, na sua condição de negro e não de magistrado, a ter ido longe demais?

Levanta-se nesse ponto o célebre bordão do "negro da alma branca". Talvez o desembargador Dilermando tenha se portado indevidamente, esquecendo sua origem e condição de cor e agindo como o branco da casa grande e não mais como o negro da senzala, tratando seus semelhantes como se eles fossem os negros. É possível, mas não conclusivo. Ele também pode ter assumido a condição de um "juiz Hermes", acometido de "juizite", como se lê nas obras do célebre jusfilósofo norte-americano, Ronald Dworkin; mas ele não estava na condição de julgador quando foi supostamente mal educado com um garçom de padaria. De qualquer forma, a impressão que permaneceu foi a de que alguém agiu abusivamente dentro de um local de acesso público, mesmo que as relações de dominação, exploração e humilhação de classe sejam tão cotidianas, que ninguém se refere à chamada "violência simbólica", descrita nas obras do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que é muito mais invisível e nociva, pois é vivida todos os dias nas relações que superiores mantém com seus subordinados, por questões econômicas e profissionais, que ninguém as observa. Talvez, o mal de Dilermando foi ter exposto uma característica tão comum e tão dantesca da sociedade, que fez derrubar a cortina de hipocrisia que ronda suas relações internas. Na era do "politicamente correto", patrões esculhambam com seus garçons dentro da cozinha de seus estabelecimentos ou no final do mês, na hora humilhante em que é pago um risível salário, e não na fila de uma padaria de luxo onde somente encontram-se pessoas supostamente educadas. Nesse sentido, Dilermando pecou muito mais por falta de decoro do que pela produção de uma humilhação ao seu semelhante.

Agora, se fosse o caso de racismo, e o desembargador por conta de sua cor considerasse que estava sendo menosprezado em função da tez de sua pele, ou que algum tipo de acesso ou fornecimento de serviço lhe estava sendo negado em virtude disso; ele deveria ter invocado muito menos sua condição de autoridade e muito mais de cidadão, citando o art. 8º da Lei 7.716 de 1989, que prevê pena de um a três anos de reclusão para quem impede o acesso ou recusa atendimento em restaurantes, bares, confeitarias ou lugares semelhantes, a alguém por conta de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Nesse caso, como o desembargador teria conhecimento jurídico suficiente para saber disso, creio que o procedimento correto seria, de fato, chamar o gerente para comunicar o fato, chamando a polícia se fosse constatado crime, com a realização de uma prisão em flagrante delito e não  o caso de ficar batendo boca ou mesmo querer agredir algum funcionário responsável pela prática de discriminação racial. Pelo que foi visto nas redes sociais, a emoção e o nervosismo tiraram o foco do aspecto racional.

No tocante à religiosidade, merece aqui neste espaço também uma análise. Pode-se ver na cena de vídeo ou mediante o que foi comentado, que na sua discussão com o homem enraivecido, suposto herói do garçom humilhado, o desembargador Dilermando sustenta sua condição de crente; ou seja, não estava ali somente um homem da cor negra, autoridade da magistratura e professor de ensino superior, mas também um homem cristão, evangélico. Foi na condição de cristão que Dilermando respondeu posteriormente a representantes da mídia, quando foi entrevistado sobre o assunto, e também nessa condição que ele contra-atacou o popular que o estava desafiando aos gritos, dizendo que aquele estava "endemoniado" ou que este teria feito "pacto com Satanás". Equívocos teológicos a parte, entendi que naquele momento o nobre desembargador valeu-se apenas de um dos múltiplos argumentos que poderia utilizar para afastar nervosamente seu interlocutor, já que os ânimos já estavam se acirrando. Não vejo ali nenhum componente que me leve a crer que, em algum momento, a fé de alguém foi motivo para discórdia, a ponto de se iniciar um bate-boca dos mais feios, com direito a horríveis palavrões dentro de uma padaria. Afinal, homens de Deus costumar dar a outra face; e parece que não foi o caso na controvérsia que envolveu o desembargador Dilermando.

Nas questões legais aí é que podemos estabelecer uma análise mais objetiva, levando em conta os tipos penais que foram destacados, mediante comentários nas redes sociais e nos demais meios de comunicação. Falou-se inicialmente no delito de desacato, descrito no artigo 334 do Código Penal Brasileiro, dentre os crimes praticados por particular contra a Administração Pública, e que teria sido cometido pelo garçom e pelo seu defensor na celeuma da padaria, segundo o argumento do desembargador envolvido na refrega. O desacato, em quaisquer de suas formas, visto que é um crime plurisubsistente, tem que ter como circunstância elementar, para ser configurado, a condição da vítima de ser funcionário público, no exercício de sua função pública ou em razão desta. Ora, parece-me que não foi o caso, uma vez que o nobre desembargador encontrava-se na padaria na condição de consumidor e não de magistrado, num final de semana, em plena manhã de domingo. E, ao menos que se prove que ele se encontrava na condição de juiz de plantão, ou estava envolvido em algum café de manhã patrocinado pelo Tribunal de Justiça, não há de se falar na existência de crime de desacato; mas sim em outros, que podem muito bem ser tipificados, tais como a injúria, uma vez que o vídeo reproduzido exibe a existência de muitos xingamentos, ou até mesmo ameaça, pela forma ameaçadora como os contendores se perfilavam em frente ao vídeo, sendo que um deles chegou a bater com uma cadeira, no prenúncio de uma possível agressão física futura, o que, felizmente, não ocorreu.

Pode acontecer até mesmo um crime de abuso de autoridade, previsto no art. 4º da Lei 4898/65, quando diz que também se configura o abuso de autoridade: "o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal".  Entretanto, para isso acontecer seria necessário comprovar que a honra do referido garçom foi efetivamente comprometida mediante alguma condição humilhante a que fosse submetido por ação do mencionado magistrado. Segundo o art.3º da citada lei, na alínea "j", o abuso de autoridade também pode acontecer quando ocorre algum atentando "aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional", como diz a lei. Para isso, teria que ficar comprovado que o desembargador Dilermando impediu o garçom de exercer o seu trabalho, impossibilitando-o, por exemplo, de servir outras mesas, sob ameaça de prendê-lo por desacato se ele não lhe desse atenção, o que pode ser facilmente observado por advogados, com a apresentação de prova testemunhal.

De qualquer forma, percebe-se que, ao menos, uns dos agentes públicos envolvidos no episódio não fizeram a sua parte: a Polícia Militar. Se quatro viaturas da PM, como foi dito, estiveram no local, atendendo rapidamente e com uma riqueza de efetivo algo que nem sempre é vislumbrado no cotidiano da atividade policial em Natal, deveriam os prestativos homens da lei terem levado as partes envolvidas até a delegacia de polícia mais próxima, mesmo que isso não envolvesse prisão. O crime de desacato, por força no disposto no art.69 da Lei 8.099/96, no que tange aos Juizados Especiais Criminais, diz que os crimes puníveis com até dois anos de privação de liberdade serão encaminhados ao Juizado mediante termo circunstanciado, o que impede em síntese, a realização de uma prisão em flagrante. Todos os envolvidos no episódio deveriam ter sido levados a uma delegacia de plantão, onde uma serena autoridade policial teria o preparo técnico e a sabedoria de lidar com o problema, ouvindo todos aqueles presentes ao fato; e lavrando, se fosse o caso, o competente termo circunstanciado. Não foi o que ocorreu na ação dos policiais militares chamados para atender o chamado do desembargador, numa clara seletividade típica dos aparelhos de Estado quando se trata de relações de classe. Numa luxuosa padaria de classe média, localizada em um dos bairros nobres da capital potiguar, e com uma centena de comensais de classes sociais mais abastadas, não conviria levar ditos "cidadãos de bem" ao ambiente insalubre de uma delegacia, não se valendo a PM da força para levar a uma unidade policial o desembargador, o garçom do caso e o popular que discutiu raivosamente com o magistrado, nas cenas divulgadas em redes sociais.

Resumindo, é pena que no final do ano, com o antecipar dos fogos de artifício, o brilho da festa de Reveillon tenha sido um pouco prejudicado pela baixaria, fofoca ou cenas de um reality show de segunda categoria, onde a cultura do espalhafato transforma por um dia pessoas em celebridades. Pois foi como celebridade desse mundo da baixeza e da falta de vergonha que o desembargador Dilermando Mota acabou envolvido, ao invés de ter sido relembrado como celebridade do mundo jurídico. Que pena!Ao menos senão por legalidade, por uma questão de boa educação e de bom senso, tristes cenas como as que foram vistas no domingo poderiam ter sido evitadas.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

VIOLÊNCIA DE ESTADO:Na barbarização das UPPs somos todos Amarildos

Amarildo Souza:mistério ou crime?
Saiu essa semana a conclusão do inquérito policial, conduzido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro acerca do caso do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido há mais de três mês, após ter sido detido e escoltado por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, no Rio de Janeiro, no dia 14 de julho. Suspeito de envolvimento no tráfico de drogas, Amarildo sumiu, e durante todo esse período, representantes da PM do Rio alegaram que Amarildo teria sido liberado pelos policiais que o escoltaram, logo após sua abordagem, e que, supostamente, ele teria sido vítima de traficantes, por queima de arquivo, já que seria comum tal prática entre a bandidagem, para evitar colaboração de seus integrantes com a polícia. Um argumento previsível e uma história tantas vezes vista na crônica policial do país, se não fosse mentira.


A última imagem de Amarildo vivo, saindo num carro da UPP.
Dias após o desaparecimento de Amarildo, reportagem da TV Globo demonstrou o início da farsa montada por integrantes da PM, quando foi revelado ao público sinais de GPS da viatura utilizada para escoltar Amarildo. O trajeto levou mais de duas horas, passando por diversos locais da cidade do Rio de Janeiro até parar em outra base da Polícia Militar. Em nenhum momento há registro da saída de Amarildo da companhia dos policiais, apenas de sua visível entrada na viatura com eles, logo que foi detido na entrada de um bar e levado para uma suposta averiguação que nunca existiu. Como consta nas imagens de uma câmera de vigilância, reproduzidas a exaustão na mídia nacional nos últimos dias, Amarildo nunca mais foi visto depois que entrou na viatura dos policiais da UPP, que deveriam ser os mesmos responsáveis por sua segurança e incolumidade física, como assegura a Constituição. Se Amarildo não estava mais com os policiais quando sumiu, ficou a pergunta, onde está Amarildo?

O relatório feito pelo delegado Rivaldo Barbosa, da Divisão de Homicídios, foi elucidativo, ao mesmo tempo que chocante: Amarildo teria sido assassinado pelos mesmos policiais que o conduziam e que alegavam que o tinham liberado. Acusados de homicídio, os PMs que participaram da diligência também são acusados de ocultação de cadáver. Dentre os responsáveis, foi indiciado o comandante da UPP da Rocinha, o agora substituído major do BOPE Edson Santos, além de ter sido pedida a prisão preventiva de todos os indiciados, levando-se em conta elementos colhidos na investigação que indicam que, por mais de uma vez, o outrora comandante da UPP da Rocinha tentou coagir ou subornar testemunhas e familiares do pedreiro, ouvidas durante a investigação. Encaminhado pela Justiça ao Ministério Público, o caso agora aguarda a definição do Ministério Público.

É, certamente, um duro golpe contra as UPPS,  cerne da atual política criminal do governo carioca, especialmente na propaganda do governador Sérgio Cabral acerca da relevância social e papel integrador dessas unidades policiais no cotidiano de violência e criminalidade no Rio de Janeiro. Em tintas corajosas e ousadas, o delegado da polícia judiciária carioca, responsável pelo caso, chega a dizer no seu relatório, em tom trágico, que a Unidade de Polícia Pacificadora, no caso de Amarildo, não contribuiu para pacificar sua vida, mas sim para destrui-la. É triste ver que uma iniciativa que pareceu, num primeiro momento, ser alvissareira na história do sistema criminal carioca, terminar assim, na reprodução das velhas fórmulas autoritárias já conhecidas do cotidiano da ação policial no Brasil. Nossa herança autoritária ainda nos persegue, a manutenção da subcultura da violência, da arbitrariedade e da simbiose entre o que é lícito e que é criminoso, ainda está presente no universo da polícia brasileira, especialmente no que diz a PM do Rio de Janeiro. Não é do dia para a noite que iniciativas inovadoras, como a tentativa de "pacificação" pelas armas (quanto paradoxo) de áreas ocupadas pela marginalidade do narcotráfico, produzirão efeitos a longo prazo na melhoria da qualidade de vida e segurança das comunidades periféricas dos grandes centros urbanos, enquanto as polícias não operarem uma efetiva transformação no seu modo de agir e pensar a sociedade.

Não um foi um Dia dos Pais perfeito para a família de Amarildo.
Tudo leva a crer (a não ser que uma grande reviravolta surja no caso e Amarildo apareça) que o pedreiro foi eliminado da mesma forma que a polícia elimina os indesejáveis na velha máquina de extermínio que se tornou o Estado brasileiro: morto e enterrado como indigente. Na vala comum onde jazem os cadáveres insepultos da impunidade, vemos essa prática se repetir desde a ditadura, quando nossos presos políticos desapareciam, e descobríamos estupefatos que mesmo décadas depois, com toda a verdade sendo revelada, os culpados não eram responsabilizados por conta da equivocada interpretação sobre uma certa Lei de Anistia, e familiares chorosos permaneciam com a indignação perene, de não ter como dar um enterro digno aos seus entes queridos. A realidade de Amarildo é a realidade dos países onde ainda predominam regimes de exceção. O quão aterrador é descobrir que no Brasil, após vinte e cinco anos de uma Constituição cidadã, ainda estamos à mercê da lógica de um Estado-policial, onde pessoas (assim como foi, outrora, na Argentina e no Chile) continuam desaparecendo, por conta da atuação estúpida de agentes de Estado.

Só me resta perguntar dentro dessa máquina assassina, trituradora de pobres, até que ponto ainda vamos estar fabricando nossos Amarildos, a rechear a crônica policial e nos chocar no noticiário nacional, na banalização de uma prática que, para a polícia brasileira, ainda parece tão corriqueira. Afinal, no discurso punitivo dos imbecis de plantão: função da polícia é simplesmente "eliminar ou dar sumiço em vagabundo!". Minha dignidade e consciência ainda me fazem corar de vergonha!

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

CASO MARCELO PESSEGHINI: Matou a família e foi para a escola.

Crimes envolvendo o ambiente familiar, com muito sangue face a chacina de uma família inteira, e, mais, a descoberta de que a autoria do crime pesa sobre um pré-adolescente, terminou por conferir um roteiro cinematográfico e sobrenatural para o caso de Marcelo Pesseghini. Esta semana saiu um laudo da perícia criminal, confirmando que em 5 de agosto deste ano, o garoto de 13 anos assassinou o pai, o sargento da PM paulista, Luis Pesseghini, sua mãe, Andreia, também policial, a tia-avó e a avó do menino, além de ter se suicidado  com uma pistola  calibre .44,  encontrada em uma de suas mãos no local do crime, na Vila Brazilândia, zona norte de São Paulo, capital. Nas semanas que antecederam o resultado da perícia, vizinhos e pessoas próximas às vítimas foram entrevistadas, muito se questionou sobre uma suposta violação do local do crime pela própria polícia, e até vigorou uma versão que contestasse a absurda tese da investigação de que um jovem branco, bonito, de classe média, e bem cuidado pelos pais, poderia ter matado toda a família, pois isso era apenas um argumento para abafar uma matança ordenada por bandidos, integrantes do crime organizado. Entretanto, no diligente trabalho realizado pela polícia civil de São Paulo, face a repercussão do caso, parece que não há dúvidas de que Marcelo realmente surtou, e matou seus pais e avós.

Família Pesseghini antes da tragédia:retirado de ogirassol.com.br
O parricídio é conhecido desde a Roma Antiga, punido como uma das infrações mais graves, uma vez que seu nome vem de um crime cometido contra o pater familias, a autoridade suprema da vida familiar; ou seja, um crime de morte praticado por um filho contra seu próprio pai. Uma de suas primeiras descrições literárias obtemos na obra Édipo Rei, de Sófocles, na conhecida tragédia grega em que o personagem Édipo mata seu próprio pai, Laio, antes de se envolver afetivamente com sua mãe, Jocasta, desconhecendo inicialmente manter tais laços de parentesco. Até mesmo na Bíblia há referências a uma tentativa de parricídio quando Absalão, um dos filhos do rei Davi, invade Jerusalém para derrubar seu pai do trono, estando disposto, inclusive, a matá-lo, obrigando o monarca a fugir. Enfim, um filho matar os próprios pais contrariaria até mesmo uma lei da natureza, e sempre que surgem fatos assim envolvendo famílias urbanas, de classe média, tais fatos parecem ainda mais chocantes.

Muitos, perguntam-se acerca do que move as condutas humanas, principalmente as mais bárbaras, e disso o Direito Penal e a Criminologia não deixam também de investigar. É a partir desta última que vemos como uma combinação de fatores e não apenas um contribuem para elucidar o trágico caso da família Pesseghini. Seria o garoto Marcelo simplesmente um louco? Seria vingança? Sofreria ele de algum tipo de desordem ou teria sido vítima de abuso ou violência doméstica, para assassinar seus próprio familiares. Na verdade, ao buscar explicações sociológicas para uma tragédia assustadora como essa, só nos leva a estabelecer críticas às influências sociais, na gênese de fenômenos criminais, que podemos perceber em nações industrializadas e desenvolvidas como os Estados Unidos, onde são frequentes os casos de homicídios e chacinas envolvendo familiares, turbinados pela cultura armamentista, no uso indiscriminado de armas de fogo.

A cena do crime divulgada à exaustão pela mídia.
Sabe-se pelas investigações que Marcelo, filho de policiais militares, foi incentivado por eles a utilizar armas. O garoto sabia, portanto, manejar com armas de fogo, assim como era recorrente em jovens da sua idade, a diversão dos jogos de videogame, muitos deles com simulação de tiros, como os da série Call of Duty, e jogados por milhares de adolescentes em milhares de lares e lan-houses pelo país. A mãe de Marcelo também o havia ensinado a dirigir, e isso explica como, segundo relato da investigação policial, ele teria seguido sozinho para a escola, após ter matado os pais e as tias, dirigindo o carro dos pais. Segundo o laudo que reproduziu a cena do crime, Marcelo foi encontrado morto com a arma empregada no crime em uma das mãos, e apesar de não haver prova conclusiva de resíduos de chumbo pelo disparo da arma em suas mãos, há material genético e pedaços de cabelo suficientes para dizer que foi ele quem disparou contra os pais. Tudo indica que o pai foi morto dormindo, ainda na cama, e a mãe, ao ouvir o disparo, dirigiu-se apressada até o quarto, quando, ao se ajoelhar vendo o marido morto, foi também alvejada na cabeça por trás, pelo próprio filho, que depois foi até o quarto das avós e lá encerrou a chacina, matando-as de forma semelhante ao que fez com seus genitores. Depois de ter cometido a chacina, dormido e ido para o colégio, tudo leva a crer que quando o jovem retornou e viu a cena do crime, num sinal de arrependimento e desespero, atirou contra a própria cabeça, encerrando um sangrento e macabro ciclo criminal. É absolutamente terrível, mas previsível, segundo as Ciências Criminais.

É muito triste e naturalmente revoltante para familiares e amigos da família Pesseghini sequer cogitar que um garoto de 13 anos tenha cometido tamanha atrocidade, matando sua família inteira. Prevalecem, nesse caso, teorias conspiratórias de que tudo não passasse de uma chacina, face a condição de policiais militares dos pais do adolescente, além das ações comuns do crime organizado na capital paulista, vitimando principalmente policiais. Entretanto, o trabalho da polícia científica parece ser eficiente, e dos 35 exames realizados e 9 laudos apresentados, não resta dúvida, ao menos para os peritos, que foi Marcelo o autor da chacina que paralisou de horror toda uma metrópole. Além do depoimento de colegas de colégio de Marcelo, que afirmaram de forma unânime que mais de uma vez Marcelo falava em matar os pais, segundo laudo assinado pelo renomado psiquiatra forense Guido Palomba, o garoto tinha uma forma de encelopatia contraída após um problema de saúde quando ainda pequeno, que o fez desenvolver um transtorno psiquátrico. Segundo Palomba, Marcelo não dissociava a realidade da ficção, e como era vidrado em jogos violentos de video game, associados a profissão dos pais, ele pode ter desenvolvido um delírio, que veio a se desenvolver de forma trágica, quando então decidiu matar os pais, como quem mata personagens de um jogo eletrônico. Parece absurdo? Até certo ponto, mas absurdos também são nossos estereótipos.

Alguns podem dizer que, se a tragédia ocorresse com uma família pobre e negra da periferia seria até comum; mas o que choca neste caso é que tal fato aterrador ocorreu numa família branca de classe média, onde ambos os parentes eram servidores armados do Estado, responsáveis por manter a ordem e garantir a segurança que, infelizmente, no casos deles, não conseguiram garantir a si próprios. Eu diria que os estereótipos não passam nem por questões de raça ou classe social, mas sim pela própria imagem que temos de nossos adolescentes.

A comovente manifestação de familiares das vítimas. Marcos Bezerra-Futura Press
Acreditamos, a partir de certos papéis sociais, que determinados perfis de pessoas são incapazes de cometer delitos, esquecendo-nos que qualquer ser humano tem um potencial criminógeno dentro de si. Evitamos praticar delitos por uma série de mecanismos de controle social e autocontrole, que partem desde o controle da sanidade pelo ego na tenra infância, através do controle familiar e da educação passada de pais para filhos, até a influência do superego, normatizando nossas expectativas morais a ponto de elas seguirem certos regramentos, passando cada um, na idade adulta, a conviver entre si dentro de um referencial jurídico (o chamado cumprimento das leis). É por isso que a psiquiatria diferencia entre os imputáveis e os inimputáveis, e daí vem toda uma polêmica discussão acerca da responsabilidade penal dos mais jovens em relação aos mais velhos, que culmina com absurdas pregações de redução da menoridade penal (que já nos reportamos em outra postagem deste blog), ao mesmo tempo que não conseguem ingressar na raiz do problema: o do quanto os nossos jovens precisam de acompanhamento e regulação. Talvez o erro da família Pesseghini (e quem sou eu para julgar) tenha sido subestimar demais uma cultura da violência, onde o uso de armas, ou mesmo a simples alusão ao fato de utilizá-las(como se dá em muitos jogos eletrônicos) pode comprometer a cabeça de muitos jovens que ainda não tem pleno discernimento. É bem verdade que é extremamente difícil e quase improvável que pré-adolescentes que passam o dia inteiro jogando em lan-houses, tornem-se maníacos assassinos em surtos delirantes; mas também não é improvável que tais jogos tem uma maléfica influência em cérebros mais fragilizados. A lição que fica na triste história da família Pesseghini,que comoveu o Brasil é de que infância, armas e cultura da violência não combinam bem, e que o acesso a elas por qualquer pessoa transforma-se no prenúncio de tragédias que não queremos ver mais.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS:Uma análise preliminar dos protestos e manifestações que ocorreram e estão acontecendo no Brasil, nas últimas semanas.

O Gigante acordou! Podem dizer uns. É apenas o retorno da barbárie! Podem dizer outros. Entretanto, tudo o que está acontecendo recentemente no Brasil, com uma onda maciça de protestos, passeatas e manifestações por todo o país, levando ao menos um milhão de pessoas às ruas, tem sua razão de ser. Em diversas capitais foi possível ver milhares de jovens com camisetas estampando bandas de rock ou mensagens revolucionárias, carregando faixas, bandeiras e cartazes, com os rostos pintados ou usando a máscara de Guy Fawkes, do filme "V, de Vingança!". Tais fatos não cabem numa única e reducionista análise político-antropológica, mas sim reacendem o debate sobre o papel dos movimentos sociais e o conceito de desobediência civil; além de levar a uma série de reflexões que podem levar a múltiplos caminhos e interpretações do que está acontecendo.

Em primeiro lugar, não se trata apenas de uma manifestação contra o governo. Como se apressam em falar os governistas de plantão, vinculados a um governo supostamente de esquerda, as cenas que todos nós, brasileiros e o resto do mundo, estamos vendo na televisão ou ao vivo, perto de nossas casas, no espaço público, trata-se apenas de um conluio da direita, de uma manifestação de partidários da oposição à presidente Dilma Roussef, que estão ganhando os holofotes, fazendo do povo massa de manobra, em pleno período de Copa das Confederações, um ano antes da eleição presidencial que se avizinha. É um bom argumento para um bom entendedor que se contenta com isso. Infelizmente, não concordo com ele. Acho por demais simplista e de um genuíno reducionismo considerar que os milhares de jovens que se encontram nas ruas protestando, sejam simplesmente estudantes egressos de uma classe média computadorizada e alienada, que se vale das redes sociais apenas para encher as ruas de vândalos e desocupados, produzindo baderna. Na verdade, quando se enxerga (como eu enxerguei ao participar de um desses protestos), que no meio da multidão encontram-se pessoas e discursos multifacetados, cada qual com seu fundamento e sua linha de razão, vê-se o quanto as passeatas e manifestações gigantescas que agora ocorrem no Brasil, desde o "Fora Collor" há vinte anos atrás, são carregadas de um ineditismo que não permite comparações. Se alguns não concordam, vejamos:

As manifestações dos últimos dias, que tinham um tema específico relacionado com a diminuição das tarifas de ônibus nas grandes cidades (em especial em São Paulo, onde foram verificados os primeiros protestos violentos), ampliaram seu leque de reivindicações, passando a ser conhecidas pelo slogan "Não é só pelos R$ 0,20!". Além do transporte, passou a fazer parte dos protestos cobranças populares acerca de melhoras na educação e na saúde, o combate à corrupção, o desvio de investimentos na Copa do Mundo de 2014, a aprovação na Comissão de Direitos Humanos do Parlamento de um projeto de lei que defende a "cura gay", atingindo toda a comunidade GLS, e, finalmente, críticas ao projeto de tramitação de emenda constitucional que suprime a investigação criminal do Ministério Público, conhecida como PEC 37 (que já foi objeto de artigo postado anteriormente neste blog). Diferentemente de outras grandes mobilizações de massa ocorridas no passado recente do país, desta vez não foram partidos políticos de esquerda e de oposição, ou sindicatos, centrais sindicais e movimentos organizados os responsáveis pela convocação de milhares de estudantes e trabalhadores, para as manifestações que paralisaram ruas e avenidas pelo país. Em relação à campanha "Diretas Já", nos anos oitenta e no "Fora Collor" da década de noventa do século passado, os movimentos dos últimos dias valeram-se pela primeira vez da tecnologia proporcionada pelas redes sociais, com a massificação da internet e do facebook, para chamar às  ruas um contingente que totalizou, segundo algumas avaliações, cerca de um milhão de pessoas.

Sobre as redes sociais, os protestos recentes merecem uma observação especial, pois muitos pesquisadores ainda analisam o seu impacto nos processos revolucionários de transformação social no mundo inteiro, não obstante alguns teóricos ainda acharem limitada sua influência. O que ocorreu no Brasil agora assemelha-se em parte às manifestações da Praça Tahir, no Egito, a pouco mais de um ano atrás, e a outras manifestações no Oriente Médio, onde aplicativos como o Twitter foram sobejamente utilizados na divulgação de protestos e na formação de redes de mobilização, que em certas localidades instalaram um verdadeiro clima de guerra civil, na série de eventos históricos conhecidos como "Primavera Árabe". No Brasil, assim como nesses lugares, a chegada da tecnologia, utilizada integralmente por um enorme contingente de jovens e estudantes das camadas médias e mesmo de camadas mais pauperizadas da população (face o uso de aparelhos celulares e smartphones), fez com que muitos desses jovens ocupassem as ruas, numa perspectiva de contestação do modelo de governo e mesmo da cultura tradicional vigente, exigindo transformações. O que se espanta é quanto tempo levou para que no Brasil também acontecessem essas mobilizações, tendo em vista que, em países vizinhos da América do Sul, como na Argentina e no Chile, já faz parte do cotidiano de seus cidadãos a ocorrência periódica de grandes protestos de rua e intensas mobilizações de massa, principalmente em regiões que, no seu passado passaram por ferozes ditaduras militares, para muitos mais autoritárias e sanguinárias do que a ditadura pela qual passou o Brasil. Nesses países, a atuação dos movimentos sociais já faz parte da agenda política frequente de seus governos, e no Brasil tais movimentos pareciam adormecidos desde a chegada  ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república. O que, no governo de sua sucessora,  Dilma Roussef, parece agora diferente.

Em relação aos movimentos sociais o que acontece hoje é a existência de um foquismo, com diversas pessoas amontoadas, com diversos interesses diferenciados, todas reunidas num espaço público para protestar, que não se diferencia do conceito utilizado pela professora  da UNICAMP, Maria da Glória Gohn, sobre os movimentos sociais. Na verdade, não há de se falar de um único movimento, mas de movimentos, que tem um elemento essencial que lhes é próprio, que é a defesa de uma temática específica e conjuntural, que afeta um grande contingente de pessoas. No caso das passagens de ônibus, essa configuração do movimento ficou clara, no momento em que o movimento Passe Livre deixou de ser o principal protagonista das manifestações, e diversos movimentos difusos passaram a se juntar, cobrando diferentes plataformas de reivindicações. O horizonte ideológico desses movimentos também chamou atenção. Tendo em vista que, nos últimos protestos, não era possível discernir se havia jovens somente de direita ou de extrema-esquerda, e sim uma verdadeira aversão a partidos políticos, traduzindo-se em gestos violentos da multidão ante militantes que apareciam com a bandeira de algum partido. Para alguns estudiosos, tal aversão significou apenas um alargamento da alienação dos manifestantes quanto à importantes questões políticas (ao menos da política tradicional, que se dá pela disputa democrática de posicionamentos entre partidos), assim como numa imprecisão quanto à definição do que se queria, realmente, reivindicar.

Para alguns passou-se a impressão de que os protestos partiram de uma maioria de "rebeldes sem causa", e que, na verdade, tais movimentos não passavam de uma encenação dos movimentos contrários ao governo, e dos meios de comunicação, alienando uma juventude inculta, imatura e manipulável. Talvez esse seja o entendimento de estudiosos como o meu distinto amigo e colega da área jurídica, o juiz de Direito e professor Rosivaldo Toscano, pós-graduando em Direito na mesma universidade (a minha saudosa UNISINOS) onde concluí meu doutorado. Para Rosivaldo,  que assim como eu escreveu no seu blog sobre os últimos acontecimentos, os atuais protestos escondem o autoritarismo de uma juventude que não tem ideias plenas sobre a importância numa democracia do respeito às instituições e seus atores políticos, cumprindo-se as regras do jogo. Daí as denúncias de vandalismo e as ações violentas de alguns manifestantes, que culminaram com a invasão e depredação de prédios públicos, como nos incêndios e destruição provocados na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no prédio da Prefeitura de São Paulo e no Palácio Itamaraty, em Brasília. Em todos esses lugares pôde-se ver uma turba ensandecida de jovens, que pouco se diferenciava dos garotos que, horas antes, pacificamente se manifestavam pelas ruas com suas bandeiras e faixas, cantando o hino nacional e palavras de ordem. Afinal de contas, esses jovens estão errados?

A grande verdade é que se torna difícil para nós, que já não somos tão jovens, constatar que a juventude que hoje ocupa as ruas é radicalmente diferente da juventude de nossa época ou da época dos heróis rebeldes que nos antecederam. Os jovens que hoje pintam seus rostos, nas passeatas em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, Fortaleza, Recife e Natal, não são os mesmos "cara-pintadas" de minha geração e nem são os mesmos jovens adolescentes ou de vinte e poucos anos que lotaram as ruas num maio de 1968 na França, que integraram a guerrilha nos anos de chumbo, ou que integraram a "Passeata dos Cem Mil", capitaneada pela UNE, em plena ditadura militar, pós-1964. Os jovens de hoje não tem, em suas escolas, a mesma carga de leitura ou o mesmo interesse literário que jovens como eu tinham há vinte anos atrás, porque sequer manuseiam mais com papel, quanto mais com livros físicos. Vivemos a era dos livros digitais, dos textos digitalizados na internet, do fim da imprensa física com o fechamento de jornais com quase cem anos de existência e o predomínio da mídia virtual. Jovens hoje fazem seu dever de casa da escola em seus computadores e tablets, preparam seus textos em trabalhos da faculdade, baseados numa série de recursos de "copiar" e "colar" de sites e links, e não mais na leitura profunda de textos e mais textos impressos de literatura especializada, que produza reflexões profundas; até mesmo porque o tempo de refletir, numa sociedade globalizada e virtualizada que privilegia a velocidade, é muito curto, e por isso não é possível ao jovem de hoje em dia se reunir na célula ou base de um movimento ideologicamente formado, para discutir teses ou participar de debates em assembleias, em longas e extenuantes reuniões. 

Foi lapidar o que me disse meu querido amigo, o escritor, poeta e filósofo Pablo Capistrano, ao me encontrar  no meio de uma das passeatas, dentre suas impressões sobres os protestos, que o movimento Passe Livre potiguar (ou "Revolta do Busão" como é chamado em Natal) não tinha uma direção ou liderança clara, pois antes do horário marcado para o início das manifestações, havia uma plenária com mais de 500 pessoas discutindo o trajeto da passeata, quando seus integrantes foram pegos de surpresa com a informação de que mais de 10 mil pessoas já estavam ocupando as  ruas, na BR-101 em frente ao Shopping Via Direta, formando uma onda humana autônoma, sem direção, que fez com que os jovens que compunham a plenária desfizessem a reunião e corressem para o local em disparada, sob o risco de perder o controle da situação.

Na obra, O Homem Revoltado, o filósofo Albert Camus já previa em teoria a essência das manifestações que acontecem hoje no Brasil, analisando o nihilismo, e como os futuros movimentos de tendência anarco-punk, que na época em que ele viveu ainda não existiam, tiveram sua base e explicação nessa doutrina baseada na revolta pela revolta. A história da revolta do homem é explicada em tintas filosóficas, mas com uma grande aplicação prática ao que vimos recentemente nas manifestações públicas e protestos nas grandes cidades. Por exemplo, quando se vê que entre os manifestantes por passagens de ônibus mais baratas, não havia em muitos casos pessoas que usavam ônibus, mas sim proprietários de veículos solidários com os que usavam transporte público, vimos que, assim como Camus diz em sua obra, a revolta não nasce obrigatoriamente entres os oprimidos; pois aquele que se revolta pode não ser oprimido, mas ver alguém se sentindo oprimido e se revoltar também. Além disso, o texto de Camus tem relevância prática no que tange aos protestos violentos dos últimos dias. Segundo ele, a revolta não se fundamenta fora de si, mas sim em si mesma; ou seja, a violência no ato de alguns manifestantes, considerados vândalos pela mídia ( e por boa parte dos outros manifestantes), é justificável tão somente no âmbito da própria revolta, gerada por um movimento catalisador que conseguiu reunir, num mesmo espaço público, conformistas e revoltados.Como afirmou Camus:  “Para combater o mal, o revoltado, já que se julga inocente, renuncia ao bem e gera novamente o mal.” Se a revolta é compreendida como o exercício da violência como uma condição de sua própria existência, a revolta será obrigatoriamente violenta. Para Albert Camus o homem revoltado age primeiro para transformar, sem questionar se sua ação é legítima, para somente depois, verificar se o que foi feito ganha ou não legitimidade. É por isso que nessa linha de raciocínio é possível compreender (e não justificar), como é que, em todos esses movimentos que se iniciam normalmente pacíficos, com o passar das horas acabam se tornando violentos, gerando uma previsível repressão policial, no momento em que alguns de seus integrantes começam a quebrar e depredar coisas, indistintamente, por meio do exercício da revolta.


No que tange aos partidos, grande parte da aversão dos manifestantes aos seus semelhantes que usavam faixas, bandeiras ou camisetas de partidos políticos, mesmo que de extrema-esquerda (as vaias do público em São Paulo aos militantes do PCO foram emblemáticas), deve-se também ao desgaste natural das legendas políticas tradicionais, nascidas após a redemocratização do país há  trinta anos atrás, e ao desencanto da juventude atual com o nascente Estado de Bem Estar Social produzido no Brasil com os governos do Partido dos Trabalhadores. Assim como ocorreu com a social-democracia europeia, décadas atrás, o país vive agora certo esgotamento de um modelo político de esquerda. Se o governo de Fernando Henrique Cardoso surgiu com um ímpeto de promover um Estado desenvolvimentista, com a abertura de mercado e a inclusão do Brasil no processo mundial de globalização econômica capitalista e revolução tecnológica, o governo Lula traduziu-se sinteticamente como o governo que aliou desenvolvimento com inclusão social, ao menos em termos de propaganda. Ora, em um país que nos últimos dez anos viu o surgimento de uma nova classe média, graças ao acesso a bens de consumo de milhares de brasileiros pobres, beneficiados por programas sociais do governo, é natural que a juventude oriunda dessas classes sociais passasse a reivindicar mais do que arroz e feijão. Hoje, em um país onde trabalhadores tornam-se contribuintes, num país com uma das maiores cargas  tributárias do planeta, a exigência da melhoria dos serviços públicos é natural e fundamental numa sociedade onde os indivíduos começam a exercitar seus direitos de cidadania. Nesse sentido, nada mais justo do que, assegurada constitucionalmente a liberdade de expressão e reunião, que milhares de pessoas fossem às ruas exigir do governo que os compromissos de transformação social, outrora assumidos pelos partidos políticos que assumiram o poder, fossem efetivamente cumpridos. A sensação de que os destinatários dos serviços públicos do Estado não foram devidamente atendidos por um governo cuja legenda partidária prometia transformar o país, contribuiu para gerar um descaso, quando não um verdadeiro desprezo dos jovens pelos partidos políticos existentes. Soma-se a isso as denúncias de corrupção, em especial àquelas relacionadas ainda ao rumoroso caso do "Mensalão", que não obstante a intervenção da mídia, serviu para questionar a credibilidade do maior partido político do país, que em seus primórdios figurava no cenário nacional como paladino da ética e da moralidade na política.

E, finalmente, o assunto que é tema dessa postagem. E atuação do Estado? Como e por que reprimir criminalmente aqueles que participam dessas manifestações, sob alegação de descumprimento da lei, perturbação da ordem ou prática de alguma infração penal?De diferentes formas os governos locais, através de seus aparatos policiais, lidaram com a situação. A atuação mais desastrada foi a da Polícia Militar de São Paulo, quando alguns de seus policiais, revelando um despreparo tremendo ante mobilizações sociais, literalmente "atiraram para todo lado", valendo-se de balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. O saldo negativo dessa atuação, no terceiro dias de protestos na metrópole paulistana, foi a jornalistas atingidos por balas de borracha, além de populares hospitalizados, que nada tinham haver com os protestos, prejudicados em sua saúde pelo uso indiscriminado das bombas de gás. No confronto direto entre manifestos violentos  e policiais truculentos, como se diria no bom jargão popular, juntou-se " a fome com a vontade de comer". O governo de Geraldo Alckmin em São Paulo e o de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, preferiu adotar o lema de ver todo manifestante como baderneiro, subestimando o imenso apoio popular que os protestos passaram a ter na mídia e nas redes sociais, após a divulgação das primeiras ações truculentas dos policiais paulistas e cariocas. O discurso da criminalização custou caro aos governantes, que viram violência gerar apenas mais violência. Se era justificável o uso da força em situações extremas (como ocorreu em alguns estados, com a correta atuação da polícia no Rio Grande do Norte, onde as manifestações ocorreram tranquilas em sua totalidade, sendo reprimidos apenas eventos isolados), no caso das ações policiais em São Paulo e no Rio, houve excesso dos dois lados, mas a credibilidade do governo foi prejudicada, quando inicialmente preferiu o confronto do que o diálogo e a conciliação. Agora, podem alguns me perguntar: é possível ter diálogo com uma multidão enfurecida?

Para autores como Zizek e Agamben, todo ato político é violento, ou melhor, a política nasce da violência.Os processos revolucionários são violentos, as tomadas de poder e os golpes de Estado são violentos. Desde Maquiavel, e do que ele escreveu em O Príncipe, na disputa de poder os homens se valem da força ou das armas para conquistar posições políticas. Assim como as facções, assim também são as multidões. Seria uma impropriedade ou mesmo uma profunda ingenuidade ou ignorância eu dizer que os protestos que ocorreram nos últimos dias são um prenúncio de um processo revolucionário. Longe disso. Porém, também não é certo que rumos seguirão esses movimentos. Sabe-se que, historicamente, grandes manifestações populares são seguidas de importantes decisões políticas, e essas decisões podem ser dadas durante uma normalidade democrática ou durante momentos de crise, onde revoluções ou golpes de Estado podem ocorrer. Creio sinceramente que não seja o caso agora, aqui no Brasil, assim como não acho que tais processos radicais possam acontecer tão cedo, em democracias latino-americanas já consolidadas, como na Argentina, Peru, Chile, Bolívia ou Venezuela. Entretanto, é importante salientar que não podemos subestimar a grande capacidade de mobilização das massas, principalmente com o uso das redes sociais. A não ser que queiramos retornar a um regime de exceção, ou nos aproximarmos do regime de teocracias, como no Irã, onde a internet chegou a ser suspensa durante as paralisações de rua, o processo de revolução tecnológica das comunicações, com a comercialização maciça de bens de consumo que permite a integração em tempo real de milhares de pessoas, também pode contribuir para a derrocada de governos que sustentam esse modo de produção econômico, uma vez que, parodiando Karl Marx, as forças produtivas geradas no interior da produção econômica do sistema capitalista acabam por se voltar contra o próprio sistema, como o que está ocorrendo, de forma nem sempre pacífica e potencialmente violenta, nas centenas de manifestações produzidas no Brasil.

É claro que, para muitos que observam os últimos fatos,  no caso das manifestações o que vimos em larga escala foi a ação destruidora de um punhado de indivíduos, que se valendo da massa partiu para destruir veículos e prédios públicos. Nesse sentido, poderíamos entender a conduta desses manifestantes como algo mais relacionado com a ação criminosa de gangues e não de grupos revolucionários. Mas a linha que os separa é tênue. Sabemos que, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político, temos militantes radicalizados, imbuídos de um extremismo que os faz praticar atos violentos e aparentemente irracionais, com o uso de pedras para quebrar vidraças, ou coquetéis molotov para produzir incêndios, tão somente porque entendem que fazem parte de uma guerra, de embate verdadeiro entre classes ou posições antagônicas, como nas lutas sanguinárias  de torcidas organizadas, e sob os efeitos inebriantes e tóxicos da ideologia da multidão, podem esses indivíduos praticar atos bárbaros, considerados por lei como verdadeiramente criminosos.

Seja pelo signo da ideologia, seja pela revolta pura e simples, assim caminha a humanidade e assim caminham os brasileiros, em seus movimentos de opinião e contestação. Se por um lado eu celebro o momento democrático, presenciando milhares de pessoas alegremente ou raivosamente ocupando as ruas, exercendo seu direito de protestar, também me preocupa os rumos que poderão tomar tais manifestações. Sem entrar no discurso maniqueísta de que os protestos beneficiam Grupo ou governo A ou B, ou determinada classe em detrimento de outra, acredito piamente que os protestos são válidos, assim como é válida toda forma de participação popular. Se chegarmos com isso a processo revolucionário, pacífico ou por tomada de armas, que cada um escolha seu lado ou posição; ou que fiquem em casa, como defendem outros, por preferir, conscientemente, estar fora dos processos radicais de transformação política por meio de ações coletivas. Tudo é válido nesse universo chamado democracia. Apenas digo: cuidado para não se machucar! Se for para um protesto violento, leve seu vinagre para o gás lacrimogênio! E do spray de pimenta usado para reprimir manifestantes, só quero o condimento para minha alimentação! Boas lutas a todos!

quarta-feira, 29 de maio de 2013

POLÊMICA LEGISLATIVA: Reduzir a maioridade penal resolve?

Quando eu vi, recentemente, algumas dezenas de pessoas com cartazes pedindo a redução da maioridade penal nas avenidas de São Paulo, lembrei-me das passeatas feitas nos anos sessenta, pré-golpe de 1964. Em especial recordei das imagens dos livros de história, retratando a passeata Por Deus, Pela Família e Pela Liberdade, organizada por organizações de extrema-direita, bem atuantes nos anos sessenta, como a Opus Dei católica e o CCC (Comando de Caça aos Comunistas).  Era a direita brasileira mostrando a cara, como agora parece mostrar novamente ao se discutir um tema antigo e recorrente, mas anualmente requentado, todas as vezes em que as atenções da mídia (em busca de sensacionalismo e publicidade) voltam-se para a difusão à exaustão de temas que lhe são caros no populismo penal, como a defesa da pena de morte e a redução da maioridade penal.

O último estopim para que o segundo item lançado acima fosse propagado, tratasse da morte do estudante Victor Hugo Deppman, no dia 9 de maio, em São Paulo, capital, em frente a residência onde morava, quando retornava do trabalho. Deppman, estudante de jornalismo da Faculdade Casper Líbero e estagiário da Rede TV, foi atingido com um tiro na cabeça, após ser rendido por um jovem assaltante, de apenas 17 anos, que mesmo sem que a vítima esboçasse reação alguma ao entregar rapidamente seus pertences, foi alvejada e morta pelo assaltante, que completaria 18 anos, apenas três semanas depois de ter cometido esse grave crime.

Victor Hugo Deppman foi mais uma vítima da violência nas grandes cidades. Trata-se de mais alguém a engrossar as estatísticas das vítimas fatais da criminalidade que atinge urbes como São Paulo e Rio de Janeiro até chegar aos núcleos urbanos médios, levando-se em conta todas as mazelas sociais e urbanas de uma metrópole. Com a morte do estudante, capturada pelas câmeras de segurança do condomínio onde morava, as imagens dramaticamente exploradas nos meios de comunicação, geraram uma previsível comoção nacional, retornando à pauta mais uma vez o tema da redução da maioridade penal desde a morte do menino João Hélio, há mais de dois anos no Rio de Janeiro, quando foi arrastado e morto do lado de fora do veículo roubado de sua mãe, por ainda se encontrar preso no cinto de segurança, enquanto os assaltantes (um deles adolescente) dava partida no veículo, levando a criança consigo, despedaçada pela violência com que foi arrastada pelas ruas por pelos menos dois quilômetros. Com opiniões divergentes, favoráveis e contrárias à redução em praticamente todos os segmentos da sociedade brasileira, o certo é que o tema da redução da maioridade penal sempre ocupou o debate das políticas criminais no Brasil, sempre num tom apaixonado e pouco racional. O debate mais uma vez dividiu uma nação, e assim como reacendeu-se uma discussão já antiga (desde o advento da Constituição de 1988 que se fala sobre isso), sazonalmente criada a cada episódio criminoso de grande repercussão, novamente a grande imprensa e representantes da classe política, muitas vezes envolvidos por interesses demagógicos, provocam o debate, apelando para que adolescentes autores de fatos atroze sejam tratados como criminosos adultos.

No mesmo mês a dentista Chintya foi queimada viva no seu consultório.


É importante lembrar que toda vez que a mídia faz alarde acerca do tema, os fatos criminosos alardeados acabam por sempre envolver o mesmo perfil de vítimas e  autores. No primeiro caso, as vítimas independem de idade, mas sempre são da classe média alta ou baixa; ou seja, dos segmentos sociais mais suscetíveis de sofrer os abusos da violência urbana, dada a fragilidade de seus recursos materiais de dispender grandes somas no pagamento de segurança privada (um privilégio dos mais ricos). No caso dos autores dessas infrações, em sua totalidade os adolescentes envolvidos são sempre pobres, pretos ou pardos, de famílias desestruturadas (muitos sequer conheceram o pai), que aliam baixa condição econômica com o uso disseminado de drogas (principalmente crack)e acabam por se envolver em atos violentos. Tanto no caso de Victor Deppman, quanto no da dentista  Chintya Magali de Souza, morta após ter seu corpo incendiado por assaltantes (um deles também menor de idade), que invadiram seu consultório em São Bernardo do Campo e jogaram álcool em seu corpo, ateando fogo na vítima após ter lhe roubado míseros trinta reais, temos em ambos os casos a publicidade de crimes atrozes, com alto teor de violência, que servem como fermento ideal para a grande mídia: a possibilidade de fazer enorme sensacionalismo e promover o populismo penal, por meio da incitação da revolta diante do sofrimento alheio e o fomento ao sentimento de ódio ao criminoso.

Em relação à mídia, ahhh, a grande mídia. Em seu livro, A Realidade dos Meios de Comunicação, o já falecido e renomado sociólogo alemão, Niklas Luhmann, já dizia que o sistema dos meios de comunicação trabalha com a notícia, operando seletivamente com a informação. Isso significa dizer que meios de comunicação como jornais e TV só vão se importar com a informação que lhes interesse, dentro da lógica do que seu próprio sistema interno entende como informação ou não. É lógico que numa sociedade capitalista, ao se acoplar com o sistema econômico, os meios de comunicação, constituídos por empresas, irão privilegiar a informação como fonte de lucro, como forma de acúmulo de capital, e, nesse sentido, só vai interessar a informação que possa ser vendida como notícia; ou seja, que possa atrair leitores e telespectadores, dando audiência, e assim garantindo anunciantes. É por isso que, segundo Luhmann, a mesma informação (que pode não conter conhecimento algum sobre a verdade dos fatos), pode ser requentada e repassada como notícia, num grau de ineditismo forjado, apenas para que se seja despertada a atenção do ouvinte ou leitor, e assim o sistema opera de acordo com função que nasceu para fazer: o de comunicar, mesmo comunicando uma inverdade. O descompromisso com a verdade é a tônica natural dos meios de comunicação, visto que eles não se importam (e nem foram feitos) para propagar verdades ou difundir conhecimento (objeto de uma necessária reflexão crítica racionalizada), mas sim foram equipados simplesmente para transmitir notícias. E nisso, o populismo penal ganha seu principal catalisador, pois a notícia sobre o crime é o principal estopim de um discurso cuja base é o emocionalismo e a irracionalidade, na proposição de alternativas aos fenômenos criminais, e não o produto de uma discussão racional entre especialistas e experts.

É por isso que a opinião pública é tão radicalmente favorável à redução da maioridade penal, todas as vezes em que os meios de comunicação propagam notícias envolvendo fatos escabrosos, criminalmente reprováveis, praticados por adolescentes. Enquanto isso, na universidade, os estudiosos e boa parte da comunidade de intelectuais e pesquisadores rechaça essa proposta, tendo em vista que a discussão sobre a maioridade deixa de se fundar no sentimentalismo e passa a ganhar contornos racionalizantes. Em primeiro lugar, o discurso racional por meio do debate científico procura desconstruir o discurso inflamado do populismo, sobre a necessidade de redução da maioridade para se punir penalmente adolescentes, atingindo uma de suas premissas principais: a notícia veiculada insistentemente nos meios de comunicação, de que crimes violentos dolosos contra à vida são praticados diariamente por adolescentes por conta de sua faixa etária, e que  a não responsabilização penal desses jovens infratores como adultos, pela  prática de seus atos, na forma do Código Penal, seria uma impunidade. Ora, em primeiro lugar, não é verdade que a grande maioria dos atos infracionais praticados por adolescentes infratores no país seja de crimes violentos, principalmente de crimes contra a vida. Para se dizer a verdade, não obstante o respeito ao luto e à tristeza dos familiares das vítimas de atos tão tristes e terríveis quanto aqueles que tiraram a vida de Victor Deepman ou do menino João Hélio, no Brasil, adolescentes infratores matam muito pouco!

Para que o leitor não fique chocado com a assertiva acima, basta que tenha acesso aos dados fornecidos pelo UNICEF, no seu relatório do ano de 2007 sobre atos infracionais praticados por adolescentes, ou observar o levantamento feito pelo ILANUD (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinquente), o mais respeitável órgão internacional  acerca das políticas criminais globais de prevenção à violência, nos anos de 2000 a 2001 sobre atos infracionais praticados por adolescentes na cidade de São Paulo. Observa-se que, dos 2.100 adolescentes acusados, naquele período, da prática de atos assemelhados a crimes, 58,9% das acusações eram de furtos, roubos e portes de arma, enquanto que os homicídios não representavam sequer 2% dos atos violentos praticados por adolescentes. Ora, isso não significa dizer, de forma alguma, que os autores desses crimes ficarão impunes, uma vez que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, apelido da Lei nº 8.069/1990) prevê punição para adolescentes autores de atos infracionais, dos mais leves aos mais violentos, e o que deve se discutir, na verdade, é a correta aplicabilidade do ECA, inclusive se é caso de estender o prazo das medidas sócio-educativas de internamento, no caso da prática de atos infracionais cometidos com violência ou grave ameaça (como os homícidios), com um prazo maior, e não o exíguo prazo de 3 (três) anos que é previsto na lei. Para isso, é claro, as instituições protetivas encarregadas da detenção (e reinserção social) dos adolescentes, deveriam estar, obrigatoriamente, munidas de condições para que esses jovens permanecessem nesses locais como forma de dedicação ao trabalho e ao aprendizado, e não apenas lá permanecessem como escolas do crime.

Outra inverdade, que os meios de comunicação não exploram, pois não tem o compromisso com isso, é o da prática sistemática de crimes por adolescentes em concurso com adultos, sendo que, na imensa maioria dos casos, os adolescentes não são os executores ou autores imediatos dessas práticas, mas sim meros acompanhantes de seus comparsas adultos, que os corromperam ou intimidaram para participar de delitos. No caso da morte da dentista Chyntia, há poucas semanas, em São Bernardo, a polícia local já descobriu que o adolescente apreendido, envolvido no crime, não foi aquele que ateou fogo no corpo da dentista, segundo relatório do delegado responsável pela investigação do delito. Na verdade, segundo o que foi apurado pela polícia, foi um dos adultos, e não o adolescente, quem apertou um isqueiro, após ter jogado álcool na vítima, e a incendiou, após ter ficado nervoso quando a vítima disse que só tinha trinta reais na conta bancária para dar aos assaltantes. É comum em crimes de adultos praticados com o auxílio de adolescentes, os primeiros se valerem dos segundos como escudo ou como antídotos para uma suposta impunidade, fazendo com que os mais jovens respondam diretamente pela acusação das condutas mais graves, para que os criminosos adultos (os verdadeiros autores) sejam penalizados menos. Essa utilização de adolescentes, recrutando-os para práticas criminosas, com técnicas de dissuasão ou franca intimidação, assemelha-se muito ao que os criminosos de guerra fazem nos conflitos na África, onde crianças e adolescentes são recrutados para segurar pistolas e metralhadoras, e assim, exterminando sua infância, possam brincar de "polícia e ladrão", com munição de verdade, em alvos reais. A utilização criminosa de crianças e adolescentes para o crime é que deveria ser a conduta punível a ser discutida no debate público, uma vez que milhares de adolescentes pobres, da periferia das grandes cidades, são menos autores de crimes do que vítimas, e não existe passeatas para eles, nas avenidas dos grandes centros, quando anualmente o Ministério da Justiça anuncia o Mapa da Violência, onde, em 2010, 8.600 crianças e adolescentes foram mortos por maus tratos praticados por adultos, somente nas grandes cidades do Brasil. Isso não seria suficiente para se questionar quem beneficia o que com a redução da maioridade penal?

O discurso da redução da maioridade penal não se sustenta pelo velho argumento da prevenção geral negativa de que, com isso, a violência seria reduzida pela intimidação do adolescente com os efeitos da pena, por saber que pode ser responsabilizado como adulto, correndo o risco de se submeter às penas do Código Penal e consequentemente ir para a prisão, cumprindo vários anos de um período de segregação juntamente com outros presos adultos. A violência do crime não se combate com a violência da pena, uma vez que, o que está em jogo, em termos de política criminal, não é a criminalidade em si, e sim suas origens.No Brasil, está mais do que comprovado por estudos e estatísticas, que aqui, como em outros países, os problemas da violência não estão relacionados com a perversão individual ou maldade humana, mas sim com fatores externos como desigualdade social, exclusão, deficiências graves na educação escolar e familiar, além da exortação de valores capitalistas deturpados, como o individualismo e o consumismo excessivo. Tudo isso faz com que um jovem da periferia, ao entregar sua mão de obra a um traficante, prefira empunhar uma arma do que arrumar um emprego regular, visto que esse emprego é impossível, por nunca ter sido oferecido ou estimulado pelo Estado, ou por que a ausência do poder público na formação da juventude da periferia é tão grande, que muitos jovens de comunidades pobres não tem acesso sequer a uma quadra de esportes, a uma banda de música, a espetáculos de teatro, ou mesmo o direito a uma lúdica ida ao cinema com a namorada. Numa sociedade baseada no "ter" e no lucro, o espaço para políticas sociais de inclusão sempre foi deixado de lado, em prol do empreendedorismo e da lógica da redistribuição social por meio da geração de empregos na iniciativa privada, algo que nunca acontece numa sociedade cuja economia vive ciclos repentinos de crise, recessão e desemprego, como é  a sociedade capitalista.

Quando intelectuais da direita brasileira, como o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ocupam os meios de comunicação de forma hipócrita e oportunista, para defender  a redução da maioridade penal, baseados na tese do livre arbítrio do indivíduo, eles estão apenas requentando o velho pensamento liberal, dos primórdios da criminologia clássica, de achar que todos os indivíduos respondem igualmente por seus atos, por já terem discernimento para isso. É a velha tese da culpabilidade defendida pelo positivismo burguês, de linha liberal e individualista que já foi contrariado pela história há mais de um século. O desmantelamento do Estado liberal diante da violência da criminalidade é consequência justamente de uma visão individualista do "salve-se quem puder" ou do "cada um com seus problemas", que faz com que um ignore sempre o outro, até que o outro lhe incomoda com uma arma encostada em sua cabeça. Aumentar os cárceres dos presídios com novos apenados adolescentes apenas aumentaria o gravíssimo problema da superlotação carcerária, agravando um drama eterno do sistema prisional, que funciona apenas como o efeito colateral da ausência de políticas sociais compensatórias por parte do Estado.

Reclamamos da violência, mas fazemos alguma coisa por essas crianças?
Os ideólogos liberais brasileiros, assim como seus colegas norte-americanos e europeus, que no Hemisfério Norte, na última década do século passado, defenderam doutrinas como a "tolerância zero", agem irresponsavelmente ao defender a redução da maioridade penal, porque sabem do efeito devastador disso no sistema prisional dos Estados Unidos e da Inglaterra, onde se concentra a maior população carcerária do planeta. O ovo da serpente acaba por eclodir com o surgimento de uma nova mão de obra precarizada e não aproveitada que surge do enorme contingente de egressos do sistema penal, que não consegue empregos no seu retorno à sociedade, face sua eterna estigmatização como criminosos ao terem passado por um presídio, voltando a delinquir e aumentar as estatísticas da violência, em cifras extraordinárias que fazem corar de vergonha os think tanks da Nova Direita nacional, que na hora do choro sincero das vítimas de atos violentos praticados por adolescentes, apresentassem-se como paladinos da justiça, ao defenderem tratamento mais severo aos jovens autores de atos infracionais. Sobra repressão para os adolescentes pobres e pretos da periferia, permanece a impunidade de jovens ricos ou de classe média, que como Thor Batista, filho do megaempresário Eike Batista, matam ao volante trabalhadores, dirigindo caríssimos caros importados, de valores faraônicos para pobres mortais, sem que sejam aprisionados por isso; ou adolescentes irresponsáveis matam com jet-skys crianças em balneários, porque foram liberados pelos pais permissivos para trafegar com esses veículos, sem que sejam chamados de criminosos ou sequer respondam por um ato infracional. Afinal, repetindo a pergunta, a quem interessa a redução da maioridade penal?

Retornam as sombras do fascismo, o espectro do autoritarismo e de uma visão extremamente alienada ou reaçonária de sociedade, para muitos que, pela internet, com posts ofensivos, defendem ardorosamente a redução da maioridade penal. Pelo senso comum, podemos encontrar centenas de comentários nas redes sociais, tweets, e todo tipo de mensagem exortando a punição de adolescentes, cobrando-lhe maior responsabilização, equivalendo a responsabilidade penal, por exemplo, à responsabilidade eleitoral, facultada aos maiores de 16 anos, que é direito, na verdade, facultado aos mais jovens, como também aos mais velhos, e não obrigação, como é para o eleitor de 18 anos. Comparar o voto com a permissão para dirigir um automóvel ou a responsabilidade de responder criminalmente por uma conduta são argumentos rasos, falaciosos e sem o menor conhecimento técnico ou científico das regras do Direito. O apelo a argumentos inteiramente emocionais, no calor dos acontecimentos explorando-se o sofrimento das vítimas, esconde problemas muito mais graves que o Estado e a sociedade brasileira insistem em não resolver. Pessoas como Victor Deppman e Chintya de Souza foram vítimas de seus algozes, com toda certeza, mas também foram vítimas do descaso de uma sociedade que não lida (ou não quer lidar) com os problemas de sua juventude pobre. Quaisquer atos covardes de violência devem ser seriamente punidos, certamente, mas a punição generalizada de todo um universo de milhares de crianças e adolescentes, que são muito mais violentados por precaríssimas condições de vida, do que autores de crimes bárbaros, deve ser levado em conta ao final, na hora de se defender soluções drásticas, como a redução da maioridade penal. Senão corremos o risco de ser uma sociedade baseada somente na vingança e no medo.

Recordemos que na história, outras sociedades baseadas no discurso do medo acabaram por gerar o pior dos totalitarismos. Na Alemanha, após a I Guerra Mundial, os judeus foram eleitos pelos nazistas como representantes dos males da sociedade alemã. Eram eles, e não as balas dos inimigos, que tinham matado os jovens soldados alemães no front da guerra, e deveriam, por isso, serem penalizados, como foram. Agora, em pleno século XXI, no Brasil queremos eleger os nossos culpados por tanta violência e crimes bárbaros. Os nossos judeus são os jovens pobres, das favelas e periferias brasileiras, penalizados pela draconiana legislação que alguns nazistas no Parlamento querem ver aprovada, para se desfazer do problema de ter de cuidar do futuro de milhares de adolescentes à mercê da criminalidade, totalmente excluídos, rejeitados pela sociedade que os pune, além de excluir. É o surgimento do Estado-penitência no lugar do Estado-providência, segundo os dizeres de pesquisadores como Loic Wacquant.

É por isso que eu prefiro a interlocução com quem tem a capacidade mínima de entender os argumentos expostos acima, de forma racional e fundamentada, do que ouvir palavrões daqueles que acham que, ser contra a redução da maioridade penal é defender a impunidade de bandidos adolescentes. Chega de emocionalismo! Deixemos de ser alienados pela mídia! O debate sobre esse tema é muito sério, e não podemos correr o risco de sofrermos um gravíssimo retrocesso institucional, sepultando a democracia que demoramos quase um século de história republicana para conseguir, rendendo-se aos falaciosos argumentos fascistas dos retrógados defensores da redução da maioridade penal. Eu é que não fico no barco deles!

segunda-feira, 15 de abril de 2013

GUERRA ENTRE CORPORAÇÕES: Por que sou contra a PEC 37?

Retirado do site pecdalegalidade.org
Neste final de semana eu estava em João Pessoa, na Paraíba, como convidado para palestrar em um interessante evento sobre Direito Penal e Psicologia Criminal na capital paraibana. Antes de eu iniciar a minha fala, recebi uma mensagem por celular informando da apresentação em Natal do programa de televisão Cabugi Comunidade, da Inter TV, afiliada da Rede Globo em solo potiguar. No programa, apresentado nas manhãs de domingo, os convidados do dia seriam o chefe do Ministério Público do RN, o procurador geral de Justiça Manoel Onofre Neto, o delegado de polícia civil Magnus Barreto, representando a Associação Nacional de Delegados de Polícia e o professor Tiago Oliveira, catedrático da disciplina de direito constitucional da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.O tema do programa seria um debate entre um representante do Ministério Público e um representante da Polícia sobre o Projeto de Emenda Constitucional nº 37 (PEC 37), que estabelece o fim da investigação criminal por parte do Ministério Público, definindo que tal atividade seria exclusiva da Polícia Judiciária (Polícias Civis e Polícia Federal).

O que deveria ser uma discussão de alto nível, tendo em vista a qualidade profissional dos debatedores, acabou por se transformar num espetáculo triste de brigas entre corporações, com trocas de acusações e farpas recíprocas, que levaram o espectador leigo, e que teve a mínima paciência de assistir a tamanho festival de baixarias, a pensar ligeiramente o seguinte: "nós temos o Ministério Público e a Polícia que merecemos". No video disponibilizado aqui no blog, nesta postagem, os nobres leitores poderão dar uma observada no que ocorreu e, salvo a validade dos argumentos de ambas as partes (Ministério Público e Polícia), o que nós vimos é que dois importantíssimos órgãos da persecução penal simplesmente não conseguem se entender. O desentendimento é histórico. Porém, com o avanço da votação da PEC 37 no Congresso, o processo de recrudescimento de ânimos entre os representantes de ambas as corporações tem sido mais do que acirrado, dando lugar a ataques, discursos inflamados e um clima de nervosismo e emoções à flor da pele, típico das manifestações de torcidas organizadas. Tanto um quanto outro órgão reclama o direito de, exclusivamente, assumir o papel de investigar.

http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/cabugi-comunidade/videos/t/edicoes/v/cabugi-comunidade-deste-domingo-14-fala-sobre-a-pec-37/2513723/

O Projeto de Emenda Constitucional nº 37 saiu da ideia do deputado federal Lourival Mendes (PT do B do Maranhão), um delegado de polícia aposentado, que mediante o lobby e reclamações das associações representativas de delegados de polícia (as ADEPOLS), elaborou um projeto de emenda constitucional aditiva, inserindo o §10º no art. 144 da Constituição Federal, que trata da atribuição das polícias no Brasil. Pelo referido dispositivo, a ser incluído no texto constitucional, a apuração das infrações penais ficaria por conta e exclusiva responsabilidade da polícia federal, das polícias civis dos estados, e da polícia do Distrito Federal. O projeto, que tem um texto simples e curto, acabou por provocar uma longa polêmica. Simples três linhas de um novo parágrafo num dispositivo constitucional foram suficientes para debelar uma série de protestos de representantes do Ministério Público no país inteiro, além de inflamar as polícias, através das associações de delegados. Os integrantes do Ministério Público chamam a PEC 37 de "PEC da Impunidade"; pois, segundo eles, a proposta de emenda à Constituição irá beneficiar apenas os criminosos de "colarinho branco", perseguidos exaustivamente nos tribunais por promotores e procuradores através de investigações realizadas pelo órgão ministerial e mais do que interessados no engessamento das atividades de um órgão que consideram como inimigo. Já os representantes da Polícia chamam a PEC de "PEC da Legalidade" ou "PEC da Cidadania"; uma vez que, ao reforçar o papel da Polícia Judiciária, a proposta estaria fortalecendo a função institucional desempenhada pelos delegados de polícia, além do que permitiria maiores investimentos e uma nova valorização da polícia no Brasil. Em síntese, ambos os argumentos apresentados pelas corporações tem os seus prós, como também os seus contras.

O Ministério Público tem sido muito criticado nos últimos anos por ter agido abusivamente em muitas investigações realizadas pelo órgão, realizando operações muito mais midiáticas do que amparadas legalmente, muitas vezes sem provas, como na recente "Operação Nacional contra a Corrupção", do dia 9 de abril, em que, como forma de protesto contra a PEC 37, promotores de todo o país desencadearam no mesmo dia operações com cumprimento de mandados judiciais, para a prisão de políticos, empresários e funcionários públicos envolvidos em denúncias de corrupção, com a prisão de,  ao menos 92 pessoas no total, nos estados da Bahia, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram mais de 300 mandados de busca e apreensão, além de afastamentos de funções públicas de secretários e ex-assessores e a prisão de um ex-prefeito. No RN mais de uma dezena de pessoas foi presa e os críticos da operação, como o representante da Associação dos Delegados, Magnus Barreto, disseram na impresa que criticavam a dimensão midiática dada ao caso, chamando nos jornais de "pirotecnia" a operação deflagrada pelo Ministério Público. Afinal, segundo o citado delegado, a Polícia Judiciária já teria prendido muito mais gente, com menos divulgação e propaganda nos meios de comunicação, como fez o Ministério Público, ao querer "mostrar serviço", e assim passar a imagem de que o MP no Brasil pode (e deve) continuar investigando.

Não se trata aqui de discutir quem prende mais ou quem investiga o quê. No Brasil, após o fim da ditadura e o início da redemocratização, o Brasil tornou-se um Estado Democrático de Direito, a partir da Constituição de 1988 (a "Constituição cidadã"), considerada até hoje a mais aberta, completa e democrática carta constitucional que o país já teve em toda a sua história. A Constituição conferiu em seu artigo 127 ao Ministério Público a "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". Dentre as funções institucionais do órgão, previstas no art. 129 do texto constitucional, estão a de "exercer o controle externo da atividade policial"(inciso VII),"requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial" (VIII) e a de "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas"(IX). É aqui, nesse último inciso, que se chega à extensão de atividades que passou a desenvolver o MP nos últimos vinte anos, às vezes de uma forma tão extensa que chegou a comprometer a legalidade de algumas ações do órgão, como na "fritura de reputações", que eventualmente é realizada por promotores e procuradores em sua investigações, contra determinados próceres da República.

Apesar de certa leviandade de alguns promotores na obtenção das luzes da ribalta para sua atuação institucional, é inegável que a maior parte de suas ações foi salutar para o Brasil, ao menos nos casos de combate à corrupção e na desestabilização de governos muito mais preocupados com a satisfação de interesses privados do que com a preservação da coisa pública. Nesse sentido, o problema da PEC 37 é um problema de legalidade e não um problema de ordem ética, uma vez que na sua justificativa, o projeto do deputado Mendes é muito bem intencionado, apesar de buscar resgatar um clima de legalidade anterior a Constituição de 1988, que eu comentarei nas linhas mais abaixo. A discussão da PEC 37 fez acionar, ao menos, o sinal amarelo de que a atuação abusiva do MP tem que ser discutida no país, e seus erros e acertos devem ser levados ao debate público, mesmo que por força de um projeto de emenda constitucional tão repleto de discórdias e polêmica. Para mim, não se trata de dizer que o Ministério Público não pode investigar, até porque uma de suas funções é a investigação, mas sim de como se dará os limites dessa investigação. A legislação infraconstitucional existente, por meio do Código de Processo Penal, pode ser bem útil para a discussão que pode ser feita a respeito do tema.

Ora, o Código de Processo Penal é claro ao dizer que o Ministério Público é o titular da ação penal pública (art. 24), assim como o ofendido é titular da ação penal privada (art. 30). No processo penal o Ministério Público é parte, além de fiscal da lei. Se compete à parte produzir as provas em juízo, demonstrando os elementos configuradores da materialidade e da autoria de um delito, como é que a parte não pode investigar? É o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 155, que resolve a questão, ao estabelecer que "o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipáveis". Pois bem! Para um mínimo iniciado no processso penal (leia-se estudantes de direito do 4º ou 5º período), sabe-se que os atos de investigação produzidos no inquérito policial servem para formar um juízo de probabilidade no órgão responsável pela acusação, e não um juízo de certeza havido durante o proferimento da sentença pelo órgão julgador. Quem vai produzir as demais provas que devem convencer o juiz sobre a condenação é a parte acusadora (no caso da ação penal pública, o representante do Ministério Público), assim como a sentença absolutória é obtida com as provas produzidas pela defesa. Se a sentença do juiz não pode depender exclusivamente do que é produzido na investigação criminal realizada por meio do inquérito policial, isso quer dizer que o titular da ação penal pode e deve investigar para produzir provas em juízo quanto à acusação formulada no processo. Desta forma, como é que eu vou tolher a capacidade investigativa de quem tem que acusar ou se defender, se, no nosso processo que adota o sistema acusatório, prevalece o contraditório e uma prova tem que ser produzida para se dar início à contradição? No processo civil o dilema é mais simples de se resolver porque nenhum juiz ou autoridade questiona a capacidade postulatória (e probatória) de ambas as partes no processo, podendo cada uma produzir todas as provas através dos meios admitidos em lei. Para se produzir provas é preciso investigar.

Alguns delegados de polícia defendem cegamente a PEC 37 sem enxergar que, no quadro geral e desolador de falta de investimento e precárias condições de trabalho a que estão sujeitas as polícias no Brasil (com exceção da bem equipada e remunerada polícia do Distrito Federal), centralizar a investigação criminal na polícia judiciária sem reformas prévias em sua estrutura é dar um tiro no próprio pé! Se hoje a quantidade de demandas promovidas em requisitórios e requerimentos de diligências de promotores e juízes é tão grande que se torna inexequível, com o Ministério Público contribuindo na investigação, imagine se o MP não investigasse e a polícias tivessem a total responsabilidade de investigar, sem condições mínimas para isso. Veríamos uma realidade completa de inércia, descaso e ausência de condições para desempenho das funções policiais, não muito diferente mas pior do que é visto hoje em muitos estados da federação.

No tocante à investigação criminal, a Polícia Judiciária é um órgão com atribuições constitucionais próprias definidas no art. 144 da Constituição, e que como o próprio nome diz, é "judiciária" não porque faça parte dos órgãos responsáveis pela jurisdição, mas os auxilia, fornecendo indícios de materialidade e autoria por meio da investigação realizada por seus agentes. Isso é inquestionável. Para aqueles que alegam que a derrota da PEC 37 seria a derrota da polícia, e até mesmo a extinção da função policial, informo que historicamente isso é impossível, até porque desde os gregos e a Roma antiga até chegar à civilização moderna, o Estado sempre necessitou de uma corporação armada organizada, onde seus integrantes realizassem a apuração de ilícitos penais, desvendando a autoria de crimes. É o sistema que funciona no mundo inteiro, inclusive nas nações mais tecnologicamente avançadas. Na Europa e em grande parte das nações latino-americanas, o modelo oficial é de um Ministério Público que investiga, em atuação integrada com as corporações policiais, como pode bem ser observado no livro do professor gaúcho Aury Lopes Jr, intitulado Investigação Preliminar no Processo Penal (Editora Saraiva), feito em parceria com Ricardo Jacobsen Gloeckner. Salvo algumas ressalvas, em alguns modelos de persecução que o Brasil já experimentou em seu passado imperial, havia a figura do juiz instrutor e do promotor investigador, presente nos ordenamentos jurídicos de diversos países até os dias de hoje. Somente em poucos povos o Ministério Público não investiga, geralmente em ditaduras ou em territórios onde prevalecem regimes de exceção.

"PEC da Discórdia" ou "PEC do Ódio Corporativo", assim classifico o Projeto de Emenda Constitucional nº 37 tramitando no Congresso Nacional. O grande problema da defesa apaixonada da PEC por alguns representantes da Polícia Civil é a visão extremamente conservadora, apegada a uma velha concepção formalista e positivista do aparelho policial. Não basta que a função de investigação criminal seja centralizada num único órgão para que este receba recursos e a devida valorização que o retirem de seu estado de sucateamento. Segundo interessante livro da pesquisadora Maria da Glória Bonelli, Profissionalismo e Política no Mundo do Direito (Editora EDUFSCAR), onde a socióloga paulista observa as posições sociais e estereótipos de diversas profissões de carreira jurídica, dentre elas as de juízes, delegados, advogados e promotores de justiça, merece destaque o capítulo reservado aos delegados. Quanto aos delegados, a professora Bonelli destaca que, durante anos estes profissionais foram vistos por seus pares como os "primos pobres do Direito", em comparação com os outros agentes de Estado, situados na Magistratura ou no Ministério Público. Parte desse "complexo de vira-lata" nelsonrodrigueano acaba por render aos profissionais detentores desse cargo público um certo sentimento de ira, e até mesmo de revanchismo em relação à postura considerada arrogante ou tanto quanto petulante de integrantes do Ministério Público, no exercício de suas funções no controle da atividade policial. Por conta disso, alguns delegados incitam um discurso do ódio direcionado aos integrantes da corporação ministerial, seja por conta de seus privilégios, seja devido as suas prerrogativas constitucionais (como a inamovibilidade e a vitaliciedade típicas dos magistrados), considerando como uma "invasão" a partilha de atribuições com o Ministério Público na realização da investigação criminal.

Entretanto, isso não justifica que delegados de polícia, educados sob os moldes democráticos e garantistas da Constituição de 1988, defendam um retrocesso no modelo legislativo brasileiro, optando por uma organização das polícias com a titularidade de inquéritos dos tempos da ditadura militar. O próprio inquérito policial, vetusto nos mais de 70 anos do Código de Processo Penal, precisa ser seriamente revisto, sob pena de se tornar um entulho, um embaraço normativo diante de uma polícia que necessita se modernizar, assim como necessita ser modernizada toda uma legislação. Não adianta delegados de polícia baterem a cabeça na defesa da supremacia do inquérito, quando este próprio procedimento legal está em vias de extinção, ou, ao menos, de reformulação.

O certo é que, assim como o Ministério Público ganhou o apoio de instituições importantes do mundo do direito, no tocante à reprovação da PEC 37 (como a Ordem dos Advogados do Brasil, que já se manifestou favorável à reivindicação dos promotores e procuradores de justiça), os representantes da Polícia Judiciária também estão corretos quanto as suas críticas sobre a atuação espetaculosa do MP nos crimes que envolvem grandes somas e pessoas influentes atingidas. Se o Ministério Público deseja investigar, que realize esse mister de maneira integrada, junto com as polícias, contribuindo com o seu trabalho e cobrando, diuturnamente, melhores condições de trabalho, ao invés de apenas se aproveitar das fraquezas dos órgãos policiais, para assumir a frente das investigações e colher todas as atenções dos holofotes da mídia. Nessa briga entre promotores e delegados só quem perde é a sociedade, pois não vê os órgãos estatais funcionando a contento. Enquanto isso, os representantes da criminalidade batem palmas, ao mesmo tempo em que os representantes das corporações se digladiam, olhando para o próprio umbigo. Por conta desses e outros argumentos que não sou favorável ao mal feito texto da PEC 37, apesar de ser totalmente favorável à discussão que com ela se iniciou. Aprovada ou reprovada no parlamento, que a referida PEC sirva ao menos para despertar a todos nós da seriedade da discussão, sobre um novo modelo de investigação criminal que queremos para nosso país. A sociedade brasileira agradece!