segunda-feira, 13 de abril de 2015

POLÊMICA LEGISLATIVA: Sobre a maioridade penal, a quem interessa sua redução?

Há mais de duas décadas, para ser mais exato desde 1993, vem tramitando no Congresso Nacional a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) nº 171/93, de autoria do ex-deputado federal, Benedito Domingos, do PP do Distrito Federal. A PEC propõe em seu texto a redução da maioridade penal de seus atuais 18 anos (fixados no Código Penal desde 1940), para a idade mínima de 16 anos; ou seja criminalizando a conduta de adolescentes, que passariam a ser tratados penalmente como adultos.  

Movimentos sociais são contrários à redução.
Desde seu nascedouro, a PEC gerou polêmicas e reações, tanto da esquerda quanto da direita do espectro político. Por mais de vinte anos seu destino foi ficar engavetada nos escaninhos do Câmara dos Deputados, barrada por centenas e centenas de pedidos de vista e obstruções, sem sequer sair das comissões legislativas encarregadas de sua discussão. Este era seu destino até 2015, quando, na presidência do deputado Eduardo Cunha, o Parlamento e toda uma bancada de parlamentares, de uma nova maioria conservadora que emergiu das urnas no ano passado, conseguiram colocar para frente o malfadado projeto. Apelidados de "bancada da bala", por ser formada majoritariamente por parlamentares com vínculos ou integrantes de corporações policiais, a PEC 171/93 reacendeu o fantasma do retrocesso legislativo, com direitos a gritos, empurrões, palavras de ordem e o coro raivoso dos parlamentares defensores da proposta, que chamavam a plenos pulmões seus opositores de "defensores de bandidos". Parecendo mais uma turba de camisas negras fascistas do que uma bancada de deputados, os augustos senhores engravatados defensores do projeto, comemoraram sua aprovação na semana passada, quando a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, aprovou a possibilidade de sua discussão pelo Congresso e consequente tramitação em plenário.

O deputado Eduardo Cunha,  Pte da Câmara:um dos artífices.
Antes que eu me pronuncie (obviamente contra) o estapafúrdio projeto, é preciso que o leitor se dê conta do que está realmente em jogo com a discussão e possível aprovação da PEC 171/93: o Brasil futuro que nós queremos. Em primeiro lugar, com a chegada de um deputado flagrantemente oposicionista na liderança da Câmara dos Deputados,  o pemedebista Eduardo Cunha na presidência daquela Casa Legislativa, todo processo legislativo no Congresso parece que se transformou numa lide entre o governo e a oposição. Não obstante ser de um partido que é, ao menos oficialmente, aliado do governo, ao ingressar na presidência da Mesa Diretora da Câmara, Cunha fez questão de demonstrar que sempre fora um desafeto do Palácio do Planalto, e um parlamentar de linha populista, extremamente conservadora, vinculado a uma banca evangélica pentecostal ou neopentecostal, com uma interpretação muitas vezes rasa e fundamentalista de trechos da Bíblia. Além de aliado a uma direita religiosa, Cunha congregou ao redor de si todo o âmbito mais conservador de deputados do Congresso Nacional, inclusive aqueles intitulados da "bancada da bala", já citados aqui no começo deste texto. Numa reunião de parlamentares com discurso oportunista e embalados num populismo penal midiático que graça no Brasil há décadas, ao tentar impor sua agenda conservadora, Cunha e sua turma querem agora emplacar, como vitória suprema de sua bancada, a aprovação de uma emenda à Constituição sobre uma realidade extremamente polêmica, que mereceu tratamento bastante diferenciado em muitos outros países.

Não se trata aqui, inicialmente, de discutir se um indivíduo de 16, 17 ou 18 anos tem mais ou menos discernimento do que um com mais de 20 anos de idade. Nesse sentido, inteligentes foram as palavras do médico Draúzio Varela, informando o quanto é pífia essa discussão, levando-se em conta que desde o século XX, nem a biologia, a psiquiatria, a sociologia e a filosofia conseguiram chegar a um pronto entendimento sobre isso. Não se trata de uma discussão de discernimento ou não (ou, se preferir, no jargão jurídico-penal, de imputabilidade ou inimputabilidade), justificar-se a redução da maioridade de 18 para 16, 14 ou 12 anos, mas sim questão de racionalidade de uma política criminal a ser adotada de forma eficaz. 

Deputados da "Bancada da Bala",interessados na aprovação do projeto.
Se é para se falar de racionalidade, é importante destacar o que anota o Direito comparado. Na contramão de diversos países desenvolvidos ou emergentes como o Brasil, deputados como Eduardo Cunha querem promover um retrocesso constitucional em nosso ordenamento, reduzindo a maioridade penal sem ao menos comprovar com dados estatísticos, o quanto a redução da maioridade pode, efetivamente, contribuir para a redução da criminalidade no Brasil. Nos países onde a idade penal para responsabilização legal de alguém começa aos 16 anos, como nos Estados Unidos, a idade para responsabilizar alguém penalmente varia de estado para estado, mas desde 2005, 29 estados norte-americanos, dentre eles, Washington, tem estabelecido medidas legais para impossibilitar que infratores adolescentes sejam tratados penalmente da mesma forma que os adultos, baixando 65% dos encarceramentos de menores de 18 anos nos presídios estadunidenses, entre 2007 e 2012. Além disso, em 2010,  a Suprema Corte Americana proibiu os tribunais do país de condenarem adolescentes à prisão perpétua, e penas máximas para adolescentes só puderam ser estabelecidas para autores de homicídios. Outros países, ao contrário, como  os do continente europeu, preferiram aumentar a idade para imputabilidade penal, ao invés do Brasil que rema em sentido diferente, como fez a Alemanha, recentemente, e a Espanha, passando todos os infratores a serem responsabilizados a partir dos 18 anos, e não mais como era antigamente, com 16. Na América Latina é preciso recordar da salutar lição democrática que deu o Uruguai, onde, através de um plebiscito, no mesmo dia das eleições presidenciais do ano passado, o povo uruguaio rechaçou nas urnas a redução da maioridade penal naquele país, de 16 para 18 anos, mantendo esta última como idade mínima para criminalização.

É, portanto, uma imensa inverdade dizer que, com a redução da maioridade penal, haverá uma diminuição de crimes. Estudos efetuados nos Estados Unidos, em alguns dos melhores centros de pesquisa do mundo, como a Universidade de Chicago, demonstraram que, no momento em são prestados maiores investimentos à juventude, com investimentos públicos e privados em educação e inclusão social, as taxas de infrações penais atribuídas a adolescentes despencam gradativamente. No Rio Grande do Sul, a experiência da chamada "justiça restaurativa", onde é dada a oportunidade de adolescentes infratores laborarem em atividades sociais como forma de medida sócio-educativa, reduziu em 85% a reincidência. Demonstra-se que é com investimento social imediato e não com prisões que é reduzida a criminalidade juvenil.

Outra inverdade é dizer que, no Brasil, os atos infracionais praticados por adolescente infratores restam impunes. Ora, falar de não cumprimento de uma sanção legal é uma coisa, dizer que ela é mal aplicada e não realiza seus propósitos por falta de estrutura é outra. O problema é que, nos últimos anos, como já foi dito acima, o senso comum nacional foi totalmente alienado com o argumento de que infratores menores de 18 anos não iriam para a cadeia, o que simplesmente não corresponde à realidade. A internação de adolescentes responsáveis por condutas violentas sempre existiu no Brasil, desde os tempos da antiga FEBEM, e agora com os atuais centros de internação essa realidade de clausura continua. A dimensão do dilema revela o quanto esses órgãos são geralmente mal estruturados, mal aparelhados e as políticas de assistência que servem, sobretudo, para promover a reinserção social, são mal ou destituídas de recursos. É quase uma unanimidade seguir-se a lógica de que infratores mais jovens, que ingressaram recentemente no mundo do crime, são mais fáceis de ser dissuadidos de uma caminhada criminosa do que os mais velhos, que já se preencheram dos vícios relacionados com uma vida inteira repleta de delitos. Porém, como o sistema penal é, sobretudo estigmatizante, tenta-se passar o estigma de irrecuperáveis também para os adolescentes infratores, principalmente os autores de condutas mais graves, que passariam a ser vistos sob os olhos de uma prevenção negativa, onde a  única medida válida seria seu eterno isolamento social e não seu aproveitamento futuro para a sociedade.

O populismo penal no Brasil está há pleno vapor, principalmente pela difusão, nos últimos vinte anos, de uma abordagem midiática no país que privilegia o adolescente infrator como autor de condutas graves. É muito comum assistir na TV, em programas sensacionalistas diários, como o  Brasil Urgente ou Patrulha Policial, crimes sangrentos sendo atribuídos a adolescentes infratores, como homicídios e latrocínios. Entretanto, a real dimensão do problema não é tocada nem de longe, pois ao mesmo tempo em que grandes emissoras de televisão, em seus noticiários como o Jornal Nacional, divulgam fatos escabrosos de crimes que envolvem adolescentes, a matança desses mesmos adolescentes, em sua maioria, pobres, de periferia, não é difundida nos meios de comunicação. Sabe-se, por exemplo, que, segundo dados da Organização das Nações Unidas, por dia, morrem violentamente no Brasil cerca de 36% de adolescentes, vítimas da violência de criminosos adultos, de seus próprios familiares ou mortos equivocadamente pela Polícia. Nos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo é comum se ter notícia de um cotidiano de violência nas comunidades pobres, onde jovens que retornam da escola ou adolescentes que saem do local de trabalho são vítimas de balas perdidas ou confundidos com bandidos, sendo alvejados indiscriminadamente por agentes do Estado.

Os defensores da redução da maioridade alegam que, em uma sociedade afligida pelo medo do crime, as pessoas não aguentariam mais tanta violência, e a única saída seria através de medidas punitivas mais rigorosas, especialmente se os autores de infrações são considerados impunes. Segundo o respeitado penalistaa Luiz Flávio Gomes, em obra conjunta escrita com Débora de Souza de Almeida, intitulada Populismo Penal Midiático, o populismo penal alimenta-se do binômio mais crimes X mais insegurança, para promover um discurso demagógico de expansão penal. Essa demagogia propaga-se através dos meios de comunicação de massa, influenciando na opinião pública e formando um senso comum punitivo fundado muitas vezes por anseios irracionais de Justiça. Irracionais porque, assim como no linchamento no Guarujá de uma dona de casa, confundida com uma sequestradora de crianças, a irracionalidade do medo é aproveitada oportunisticamente pelo sistema político, assim como fez o nazifascismo no prelúdio da Segunda Mundial, levando toda uma sociedade a criminalizar um grupo social específico. No caso brasileiro, a pregação da redução da maioridade diz respeito a um segmento claro de jovens de periferia, de classes sociais mais baixas, mais sujeitos a abusos, abandono e descaso governamental, à mercê da drogadição e toda forma de aproveitamento ilícito por criminosos adultos que os agenciam.

Além disso,  não obstante todas as estatísticas criminais (essas sim fidedignas e que fornecem um conhecimento em dados objetivos, por se basearem em registros oficiais) afirmarem que a criminalidade violenta atribuída a adolescentes de 16 e 17 é esmagadoramente menor do que a praticada por adultos imputáveis, com idades a partir dos 18 anos (cerca de 1% das estatísticas oficiais), a impressão que se dá na população é de que os verdadeiros autores impunes de crimes são os adolescentes. Inverte-se a polaridade punitiva dos imputáveis para os inimputáveis, bem ao gosto dos adultos criminosos que utilizam instrumentalmente garotos para a prática de delitos, que devem estar aplaudindo a proposta apresentada pelos deputados conservadores do Congresso. Na tendência recente de criminalização que se aponta, uma vez aprovada a redução da maioridade para 16 anos, será mais comum o emprego por bandidos de adolescentes de 14 a 13 anos a praticarem delitos sob sua orientação. Mesmo aqueles que afirmam que muitos adolescentes assaltam ônibus por conta própria, porque são viciados em drogas, e desta forma decidem delinquir, esquece-se que quem fornece as drogas ou armas empregadas em atos infracionais acaba por ser um adulto, que manipula as ações de seus comparsas ou subalternos mais jovens. É isso que acontece, por exemplo, nos crimes sexuais, onde as estatísticas apontadas nas delegacias de proteção à mulher em todo o país, é de que o delinquente mais moço, ao estuprar sua vítima, em 100% dos casos age compelido pelos seus companheiros mais velhos, que lhe cobram virilidade, como forma de iniciação sexual.

Ainda existe um ponto fulcral a ser debatido na questão da redução da maioridade, que se dá no âmbito da política criminal voltada ao sistema prisional. Como acolher um novo exército de criminosos imputáveis, com a redução da maioridade penal, tendo em vista um sistema carcerário superpopuloso como o brasileiro? Se hoje estouram rebeliões nos presídios e cadeias públicas, sem que os agentes públicos tenham a mínima condição de prover uma estrutura adequada para inclusão de uma nova e jovem massa carcerária, o que serão de nossos presídios? A irresponsabilidade e demagocia completa de alguns legisladores fez, inclusive, que movimentos ligados a associações de policiais e agentes penitenciários fizessem manifestações nas ruas e nas redes sociais, pedindo a deburrada da PEC 171 pela sua completa inexequebilidade. 

Outro argumento forte, que irrita os conservadores, é de matriz ideológica. Se for pensada a política criminal brasileira como uma política de classe e não uma política para toda a sociedade, segundo os questionamentos levantados pela criminologia crítica, a redução da maioridade penal implicaria, majoritariamente, no encarceramento em massa de jovens adolescentes negros ou pobres da periferia, pois são esses os representantes das classes sociais subalternas que mais estão envolvidos em ocorrências criminais. Como forma de punir os pobres, segundo os dizeres do pesquisador e sociólogo francês Loic Wacquant, aconteceria no Brasil o que já acontece em países como os Estados Unidos, que tem a maior população carcerária do planeta: milhares de jovens proletários ou excluídos da sociedade teriam lugar nas prisões, locais de mera higienização social, onde as classes mais abastadas levariam aqueles considerados indesejados, que não se conformam com a manutenção de uma sociedade estruturada na desigualdade social. Para um legislador conservador, a diferença entre ricos e pobres sempre existiu, e se, assim como os adultos, pobres adolescentes criados sem qualquer suporte familiar, decidem ingressar no mundo do crime e não se subjugar as suas próprias condições sociais, conformando-se com a pobreza, seu lugar só pode ser a prisão.

Senador Magno Malta,representante da direita religiosa, que também apoia o projeto.
Fora isso, ainda na crítica ao populismo penal, vale denunciar o quanto a defesa apaixonada do tema por alguns deputados da chamada "Bancada da Bala" leva em conta calculados interesses eleitorais baseados em pesquisas de opinião. Os defensores da redução da maioridade penal no Congresso baseiam-se na desinformação para, de forma até mesmo truculenta, aprovar com base em bravatas e discursos inflamados, a criminalização de pessoas com idade inferior a 18 anos. Escondem por detrás de seu discurso interesses de classe, bem como o oportunismo eleitoral de jogar para a plateia, acumulando votos e prestígio pessoal entre seus eleitores. Esses parlamentares correspondem a um neoconservadorismo que agora busca fazer maioria no Congresso Nacional, que não tinha uma bancada com parlamentares de perfil tão anacrônico desde os anos sessenta do século passado, antes do golpe militar de 1964.

RESULTADO DA REDUÇÃO:criminalização de nossa juventude.
Segundo Ana Isabel Cepeda, professora de Direito Penal da Universidade de Salamanca, autora do livro,  La Seguridad como la Deriva del Derecho Penal Postmoderno, a ordem penal global do século XXI  é francamente expansionista, baseada num Direito Penal do Alarma e num sentimento generalizado de insegurança coletiva. Nesse sentido, juristas espanhóis, como José Diez Ripollés, acabam por entender que esse fenômeno punitivo, que não é novo mas se revigorou após o atentado das Torres Gêmeas em Nova Iorque, em 2001, acaba por afetar a produção legislativa (vide a obra, A Racionalidade das Leis Penais, Editora Revista dos Tribunais). Num Direito Penal eminentemente simbólico, inimigos são seletivamente escolhidos, classes ou categorias sociais consideradas perigosas são encontradas, e se, no passado, na sociedade brasileira desde a época do Brasil Império até a República, os inimigos eram negros, imigrantes, ou moradores da periferia, na lógica excludente do Direito Penal de sociedades historicamente desiguais, os inimigos da vez são os adolescentes infratores. Tal onda punitiva assemelha-se ao processo de criminalização dos judeus na Alemanha nazista da Segunda Guerra mundial, em sociedades que passavam por séria crise econômica e política. Em cenários de crise e de consequente aumento dos casos de criminalidade e conflito, é comum o surgimento de um discurso totalitário, que indique eventuais responsáveis pelos males da insegurança e da histeria coletiva.

Felizmente, parece que instituições centenárias como a Ordem dos Advogados do Brasil, a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), o Supremo Tribunal Federal, a Associação de Juízes pela Democracia, sindicatos e diversos órgãos e entidades da sociedade civil organizada, já se organizaram contra a tentativa de aprovação da polêmica PEC da redução da maioridade penal. Resta saber nessa quebra de braço, quem levará a pior: se o Parlamento, composto por supostos representantes do povo, que, nos dizeres da famosa filósofa Hannah Arendt, representam apenas a si próprios e não os interesses populares; ou a sociedade civil organizada, composta por atores sociais mobilizados, que, ao estudar o problema da delinquência juvenil, sabem que a redução da maioridade, pura e simples, apenas agravará o tristíssimo drama social porque passam os adolescentes pobres brasileiros, destituídos de uma efetiva política constitucional de proteção da juventude. Que os bravateiros da "Bancada da Bala" percam essa briga, em nome ao menos do bom senso!!