Em 1940, o criminólogo norte-americano, Edwin Sutherland, publicou pela primeira vez a expressão "White Collar Crime" (crime de "colarinho branco") para caracterizar a criminalidade desenvolvida pelos mais ricos e influentes, geralmente praticada por pessoas respeitáveis ou de forte prestígio social, no exercício de uma determinada função. No desenvolvimento de sua teoria, Sutherland procurou estabelecer as bases e as razões pelas quais indivíduos detentores do poder político ou econômico ainda sentiam a necessidade de delinquir e, o que é pior, ao praticar esses delitos, agiam com tamanha naturalidade que parecia que suas condutas seriam inofensivas ou não fariam mal a ninguém. Dentre os vários crimes associados a essa teoria, podemos destacar os atos de corrupção praticados por detentores de cargos nomeados ou eletivos. Nesse sentido, o recente julgamento do episódio conhecido na crônica política como "Mensalão" não destoa muito dos caracteres apontados na teoria de Sutherland.
Sabe-se que, em sua origem, quando o ex-deputado Roberto Jefferson apresentou o caso à opinião pública, o suposto "Mensalão" teria ocorrido após a histórica vitória do ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002. Novo governo, nova base aliada, novas esperanças, assumindo o poder sob a desconfiança dos mercados (apesar da histórica "Carta aos Brasileiros"), o governo do representante do Partido dos Trabalhadores sabia dos inevitáveis obstáculos políticos que o esperavam, e da necessidade de se cooptar apoio externo, principalmente da bancada parlamentar. Para isso, segundo a denúncia formulada pelo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, integrantes do governo daquela época (entre eles, o ex-todo poderoso Chefe da Casa Civil, e ex-deputado José Dirceu) compraram apoio político, aliciando parlamentares mediante a compra de votos em votações fundamentais, nos primeiros meses do novo mandato presidencial, praticando, para isso, diversos atos criminosos. Aquilo que na opinião dos defensores dos réus seria apenas a formação de um "Caixa 2" em campanha eleitoral (o que por si só já é errado), transformou-se numa rede de intrigas e corrupções, que culminou não apenas com a queda e exoneração de cargos públicos de diveros políticos, como também com a responsabilização criminal de quase todos eles, numa avalanche de denúncias e punições que culminou com o julgamento do volumoso processo criminal das semanas anteriores, no Supremo Tribunal Federal.

Dentre as teses jurídicas controversas, uma das que foi utilizadas para facilitar a condenação dos réus pelo tribunal foi a da dispensabilidade de ato de ofício nos crimes praticados contra a administração pública. Mudando entendimento anterior da própria corte, em relação a processo julgado nos anos noventa do século passado, quando foi inocentado o ex-presidente da República, Fernando Collor de Melo, os ministros do STF em sua maioria entenderam que, agora, não há a necessidade de que seja praticado um ato de ofício, decorrente da condição do servidor ou agente público de detentor de cargo ou mandato eletivo, para que se configure o crime de corrupção passiva, definido no art. 317 do Código Penal. Agora, segundo o voto do ministro Luiz Fux, basta que o detentor do cargo que solicitou ou recebeu para si ou para outrem, vantagem indevida ou aceitar promessa de vantagem, tenha autoridade para solicitar ou receber tal vantagem ou promessa; pois o ato de ofício é produzido pelo servidor no exercício da função, mesmo quando ele não for provocado. Os ministros entenderam, então, que, por exemplo, pela sua qualidade de chefe da Casa Civil, o ex-ministro José Dirceu não só poderia, como teria a autoridade para saber que estava havendo compra de votos no Parlamento pelo Executivo, fazendo parte de uma trama urdida por um publicitário do setor privado (Marcos Valério) e por um ex-tesoureiro de partido (Delúbio Soares), no sentido de arrecadar dinheiro a fundo falso perante bancos, beneficiados em contratos estatais, a fim de desviar dinheiro público oriundo desses bancos para não só financiar campanhas eleitorais (como aconteceu não apenas com a campanha do PT para a Presidência, como também do PSDB, anos antes, ao governo do estado de Minas Gerais), como também para pagar parlamentares da base aliada do governo, a fim de votar em projetos de interesse do Poder Executivo.
Outra teoria que passou a predominar no julgamento do Supremo foi a do "domínio do fato", já consagrada há mais de cinquenta anos no direito alemão (através dos estudos do jurista Hans Welzel), mas que só veio a ganhar destaque no Brasil na segunda metade dos anos oitenta do século passado, quando então a velha teoria causalista, de orientação positivista, deixou de ser empregada em sua totalidade, em determinados casos de crimes praticados em concurso de agentes, onde era necessário identificar a figura do "chefão" ou do mandante. Tal teoria caiu como uma luva no julgamento dos "mensaleiros" condenados pelo STF. Mais uma vez, sobrou a pecha de líder de uma organização criminosa, para o ex-deputado, ex-militante estudantil, ex-ativista político e ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. O que valeu aqui, nos supostos atos criminosos praticados, não foi a participação direta do ex-ministro nas negociatas e atos de corrupção que levaram ao "Mensalão", mas sim sua posição no tabuleiro político, como chefe da articulação que teria domínio sobre todos os acontecimentos que se desenrrolaram durante o tumultado primeiro semestre do mandato do ex--presidente Lula.
De qualquer forma, divide-se a comunidade jurídica entre os que acreditam que o julgamento do "Mensalão" é um marco divisório, na formação de uma jurisprudência sobre casos de corrupção no país, e outra que considera que a tarefa do tribunal se deu muito mais de forma casuística, insuflada por pressões políticas e pelo apelo da opinião pública graças a maciça intervenção dos meios de comunicação na abordagem do caso. Para os velhos estudiosos da criminologia, atos supostamente atribuídos a homens públicos como os "Dois Josés" (José Dirceu e o ex-presidente do PT, José Genoíno), Valdemar Costa Neto, Roberto Jeferson, João Paulo Cunha e uma dezena de políticos e parlamentares de diversas legendas, aliados do governo, atos criminosos que geraram o "Mensalão" são tão corriqueiros quanto é corriqueira a relação de determinados indivíduos com cobiçados cargos de poder, inseridos na Administração Pública ou presentes em instituições privadas. Por fazer a velha política é que os reús do processso julgado com esmero pelo STF agiram como típicos criminosos do colarinho branco, valendo-se de seu prestígio social, ou da importância de seus votos, em votações importantíssimas para o governo, a fim de barganhar vantagem pessoal, lucro financeiro, ou simplesmente para comprovar que determinadas funções públicas só funcionam na base da "grana". É, sem dúvida, uma situação lamentável!
A única unanimidade que se coloca até o momento diz respeito ao destino do publicitário Marcos Valério, pivô da rede de relações que culminou com o "Mensalão", pessoa física e particular que amealhou vultosas somas em dinheiro, através de empréstimos a bancos e movimentações financeiras, para beneciar a si próprio e os demais réus do processo. Valério atuou como um mercador da política, um homem da iniciativa privada que reduziu a articulação política dentro do seara estatal num negócio, como se dá tristemente na espúria relação que se estabelece, de quando em quando, na economia capitalista, entre o mercado e o Estado. Por conta disso, sua condenação deve ser uma das maiores, e é grande a possibilidade do empresário ir para a cadeia, por conta do somatório de suas penas indicar um regime inicialmente fechado de cumprimento de pena. Pode-se dizer então que foi Valério um dos maiores prejudicados no julgamento do "Mensalão"; mas, sem dúvida quem perde mais com isso tudo é o cidadão brasileiro, especialmente aquele que ainda acredita na credibilidade de nossas instituições, e que, independentemente da coloração ideológico-partidária, crê que os agentes públicos possam realizar com um mínimo de ética e decência as atribuições políticas dos cargos a que foram eleitos. Ganha em credibilidade o Supremo, especialmente através das manifestações aguerridas e inquebrantáveis do relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, recém-empossado como presidente de nossa Suprema Corte, incensado pela mídia (em especial pela mídia oposicionista ao governo), como um dos heróis do julgamento, graças a suas posições duras e convictas quanto a responsabilidade dos acusados. Que o episódio do "Mensalão" ao menos passe para a história como uma lição política de como novos governos, progressistas, e com forte apelo popular, identificados com o novo, não se valham de velhas formas politiqueiras relacionadas com vetustas e anacrônicas formas de disputa de poder que não podem mais ser aceitas numa democracia. É pagar pra ver o que vem após esse julgamento do Supremo.