segunda-feira, 15 de abril de 2013

GUERRA ENTRE CORPORAÇÕES: Por que sou contra a PEC 37?

Retirado do site pecdalegalidade.org
Neste final de semana eu estava em João Pessoa, na Paraíba, como convidado para palestrar em um interessante evento sobre Direito Penal e Psicologia Criminal na capital paraibana. Antes de eu iniciar a minha fala, recebi uma mensagem por celular informando da apresentação em Natal do programa de televisão Cabugi Comunidade, da Inter TV, afiliada da Rede Globo em solo potiguar. No programa, apresentado nas manhãs de domingo, os convidados do dia seriam o chefe do Ministério Público do RN, o procurador geral de Justiça Manoel Onofre Neto, o delegado de polícia civil Magnus Barreto, representando a Associação Nacional de Delegados de Polícia e o professor Tiago Oliveira, catedrático da disciplina de direito constitucional da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.O tema do programa seria um debate entre um representante do Ministério Público e um representante da Polícia sobre o Projeto de Emenda Constitucional nº 37 (PEC 37), que estabelece o fim da investigação criminal por parte do Ministério Público, definindo que tal atividade seria exclusiva da Polícia Judiciária (Polícias Civis e Polícia Federal).

O que deveria ser uma discussão de alto nível, tendo em vista a qualidade profissional dos debatedores, acabou por se transformar num espetáculo triste de brigas entre corporações, com trocas de acusações e farpas recíprocas, que levaram o espectador leigo, e que teve a mínima paciência de assistir a tamanho festival de baixarias, a pensar ligeiramente o seguinte: "nós temos o Ministério Público e a Polícia que merecemos". No video disponibilizado aqui no blog, nesta postagem, os nobres leitores poderão dar uma observada no que ocorreu e, salvo a validade dos argumentos de ambas as partes (Ministério Público e Polícia), o que nós vimos é que dois importantíssimos órgãos da persecução penal simplesmente não conseguem se entender. O desentendimento é histórico. Porém, com o avanço da votação da PEC 37 no Congresso, o processo de recrudescimento de ânimos entre os representantes de ambas as corporações tem sido mais do que acirrado, dando lugar a ataques, discursos inflamados e um clima de nervosismo e emoções à flor da pele, típico das manifestações de torcidas organizadas. Tanto um quanto outro órgão reclama o direito de, exclusivamente, assumir o papel de investigar.

http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/cabugi-comunidade/videos/t/edicoes/v/cabugi-comunidade-deste-domingo-14-fala-sobre-a-pec-37/2513723/

O Projeto de Emenda Constitucional nº 37 saiu da ideia do deputado federal Lourival Mendes (PT do B do Maranhão), um delegado de polícia aposentado, que mediante o lobby e reclamações das associações representativas de delegados de polícia (as ADEPOLS), elaborou um projeto de emenda constitucional aditiva, inserindo o §10º no art. 144 da Constituição Federal, que trata da atribuição das polícias no Brasil. Pelo referido dispositivo, a ser incluído no texto constitucional, a apuração das infrações penais ficaria por conta e exclusiva responsabilidade da polícia federal, das polícias civis dos estados, e da polícia do Distrito Federal. O projeto, que tem um texto simples e curto, acabou por provocar uma longa polêmica. Simples três linhas de um novo parágrafo num dispositivo constitucional foram suficientes para debelar uma série de protestos de representantes do Ministério Público no país inteiro, além de inflamar as polícias, através das associações de delegados. Os integrantes do Ministério Público chamam a PEC 37 de "PEC da Impunidade"; pois, segundo eles, a proposta de emenda à Constituição irá beneficiar apenas os criminosos de "colarinho branco", perseguidos exaustivamente nos tribunais por promotores e procuradores através de investigações realizadas pelo órgão ministerial e mais do que interessados no engessamento das atividades de um órgão que consideram como inimigo. Já os representantes da Polícia chamam a PEC de "PEC da Legalidade" ou "PEC da Cidadania"; uma vez que, ao reforçar o papel da Polícia Judiciária, a proposta estaria fortalecendo a função institucional desempenhada pelos delegados de polícia, além do que permitiria maiores investimentos e uma nova valorização da polícia no Brasil. Em síntese, ambos os argumentos apresentados pelas corporações tem os seus prós, como também os seus contras.

O Ministério Público tem sido muito criticado nos últimos anos por ter agido abusivamente em muitas investigações realizadas pelo órgão, realizando operações muito mais midiáticas do que amparadas legalmente, muitas vezes sem provas, como na recente "Operação Nacional contra a Corrupção", do dia 9 de abril, em que, como forma de protesto contra a PEC 37, promotores de todo o país desencadearam no mesmo dia operações com cumprimento de mandados judiciais, para a prisão de políticos, empresários e funcionários públicos envolvidos em denúncias de corrupção, com a prisão de,  ao menos 92 pessoas no total, nos estados da Bahia, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram mais de 300 mandados de busca e apreensão, além de afastamentos de funções públicas de secretários e ex-assessores e a prisão de um ex-prefeito. No RN mais de uma dezena de pessoas foi presa e os críticos da operação, como o representante da Associação dos Delegados, Magnus Barreto, disseram na impresa que criticavam a dimensão midiática dada ao caso, chamando nos jornais de "pirotecnia" a operação deflagrada pelo Ministério Público. Afinal, segundo o citado delegado, a Polícia Judiciária já teria prendido muito mais gente, com menos divulgação e propaganda nos meios de comunicação, como fez o Ministério Público, ao querer "mostrar serviço", e assim passar a imagem de que o MP no Brasil pode (e deve) continuar investigando.

Não se trata aqui de discutir quem prende mais ou quem investiga o quê. No Brasil, após o fim da ditadura e o início da redemocratização, o Brasil tornou-se um Estado Democrático de Direito, a partir da Constituição de 1988 (a "Constituição cidadã"), considerada até hoje a mais aberta, completa e democrática carta constitucional que o país já teve em toda a sua história. A Constituição conferiu em seu artigo 127 ao Ministério Público a "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". Dentre as funções institucionais do órgão, previstas no art. 129 do texto constitucional, estão a de "exercer o controle externo da atividade policial"(inciso VII),"requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial" (VIII) e a de "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas"(IX). É aqui, nesse último inciso, que se chega à extensão de atividades que passou a desenvolver o MP nos últimos vinte anos, às vezes de uma forma tão extensa que chegou a comprometer a legalidade de algumas ações do órgão, como na "fritura de reputações", que eventualmente é realizada por promotores e procuradores em sua investigações, contra determinados próceres da República.

Apesar de certa leviandade de alguns promotores na obtenção das luzes da ribalta para sua atuação institucional, é inegável que a maior parte de suas ações foi salutar para o Brasil, ao menos nos casos de combate à corrupção e na desestabilização de governos muito mais preocupados com a satisfação de interesses privados do que com a preservação da coisa pública. Nesse sentido, o problema da PEC 37 é um problema de legalidade e não um problema de ordem ética, uma vez que na sua justificativa, o projeto do deputado Mendes é muito bem intencionado, apesar de buscar resgatar um clima de legalidade anterior a Constituição de 1988, que eu comentarei nas linhas mais abaixo. A discussão da PEC 37 fez acionar, ao menos, o sinal amarelo de que a atuação abusiva do MP tem que ser discutida no país, e seus erros e acertos devem ser levados ao debate público, mesmo que por força de um projeto de emenda constitucional tão repleto de discórdias e polêmica. Para mim, não se trata de dizer que o Ministério Público não pode investigar, até porque uma de suas funções é a investigação, mas sim de como se dará os limites dessa investigação. A legislação infraconstitucional existente, por meio do Código de Processo Penal, pode ser bem útil para a discussão que pode ser feita a respeito do tema.

Ora, o Código de Processo Penal é claro ao dizer que o Ministério Público é o titular da ação penal pública (art. 24), assim como o ofendido é titular da ação penal privada (art. 30). No processo penal o Ministério Público é parte, além de fiscal da lei. Se compete à parte produzir as provas em juízo, demonstrando os elementos configuradores da materialidade e da autoria de um delito, como é que a parte não pode investigar? É o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 155, que resolve a questão, ao estabelecer que "o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipáveis". Pois bem! Para um mínimo iniciado no processso penal (leia-se estudantes de direito do 4º ou 5º período), sabe-se que os atos de investigação produzidos no inquérito policial servem para formar um juízo de probabilidade no órgão responsável pela acusação, e não um juízo de certeza havido durante o proferimento da sentença pelo órgão julgador. Quem vai produzir as demais provas que devem convencer o juiz sobre a condenação é a parte acusadora (no caso da ação penal pública, o representante do Ministério Público), assim como a sentença absolutória é obtida com as provas produzidas pela defesa. Se a sentença do juiz não pode depender exclusivamente do que é produzido na investigação criminal realizada por meio do inquérito policial, isso quer dizer que o titular da ação penal pode e deve investigar para produzir provas em juízo quanto à acusação formulada no processo. Desta forma, como é que eu vou tolher a capacidade investigativa de quem tem que acusar ou se defender, se, no nosso processo que adota o sistema acusatório, prevalece o contraditório e uma prova tem que ser produzida para se dar início à contradição? No processo civil o dilema é mais simples de se resolver porque nenhum juiz ou autoridade questiona a capacidade postulatória (e probatória) de ambas as partes no processo, podendo cada uma produzir todas as provas através dos meios admitidos em lei. Para se produzir provas é preciso investigar.

Alguns delegados de polícia defendem cegamente a PEC 37 sem enxergar que, no quadro geral e desolador de falta de investimento e precárias condições de trabalho a que estão sujeitas as polícias no Brasil (com exceção da bem equipada e remunerada polícia do Distrito Federal), centralizar a investigação criminal na polícia judiciária sem reformas prévias em sua estrutura é dar um tiro no próprio pé! Se hoje a quantidade de demandas promovidas em requisitórios e requerimentos de diligências de promotores e juízes é tão grande que se torna inexequível, com o Ministério Público contribuindo na investigação, imagine se o MP não investigasse e a polícias tivessem a total responsabilidade de investigar, sem condições mínimas para isso. Veríamos uma realidade completa de inércia, descaso e ausência de condições para desempenho das funções policiais, não muito diferente mas pior do que é visto hoje em muitos estados da federação.

No tocante à investigação criminal, a Polícia Judiciária é um órgão com atribuições constitucionais próprias definidas no art. 144 da Constituição, e que como o próprio nome diz, é "judiciária" não porque faça parte dos órgãos responsáveis pela jurisdição, mas os auxilia, fornecendo indícios de materialidade e autoria por meio da investigação realizada por seus agentes. Isso é inquestionável. Para aqueles que alegam que a derrota da PEC 37 seria a derrota da polícia, e até mesmo a extinção da função policial, informo que historicamente isso é impossível, até porque desde os gregos e a Roma antiga até chegar à civilização moderna, o Estado sempre necessitou de uma corporação armada organizada, onde seus integrantes realizassem a apuração de ilícitos penais, desvendando a autoria de crimes. É o sistema que funciona no mundo inteiro, inclusive nas nações mais tecnologicamente avançadas. Na Europa e em grande parte das nações latino-americanas, o modelo oficial é de um Ministério Público que investiga, em atuação integrada com as corporações policiais, como pode bem ser observado no livro do professor gaúcho Aury Lopes Jr, intitulado Investigação Preliminar no Processo Penal (Editora Saraiva), feito em parceria com Ricardo Jacobsen Gloeckner. Salvo algumas ressalvas, em alguns modelos de persecução que o Brasil já experimentou em seu passado imperial, havia a figura do juiz instrutor e do promotor investigador, presente nos ordenamentos jurídicos de diversos países até os dias de hoje. Somente em poucos povos o Ministério Público não investiga, geralmente em ditaduras ou em territórios onde prevalecem regimes de exceção.

"PEC da Discórdia" ou "PEC do Ódio Corporativo", assim classifico o Projeto de Emenda Constitucional nº 37 tramitando no Congresso Nacional. O grande problema da defesa apaixonada da PEC por alguns representantes da Polícia Civil é a visão extremamente conservadora, apegada a uma velha concepção formalista e positivista do aparelho policial. Não basta que a função de investigação criminal seja centralizada num único órgão para que este receba recursos e a devida valorização que o retirem de seu estado de sucateamento. Segundo interessante livro da pesquisadora Maria da Glória Bonelli, Profissionalismo e Política no Mundo do Direito (Editora EDUFSCAR), onde a socióloga paulista observa as posições sociais e estereótipos de diversas profissões de carreira jurídica, dentre elas as de juízes, delegados, advogados e promotores de justiça, merece destaque o capítulo reservado aos delegados. Quanto aos delegados, a professora Bonelli destaca que, durante anos estes profissionais foram vistos por seus pares como os "primos pobres do Direito", em comparação com os outros agentes de Estado, situados na Magistratura ou no Ministério Público. Parte desse "complexo de vira-lata" nelsonrodrigueano acaba por render aos profissionais detentores desse cargo público um certo sentimento de ira, e até mesmo de revanchismo em relação à postura considerada arrogante ou tanto quanto petulante de integrantes do Ministério Público, no exercício de suas funções no controle da atividade policial. Por conta disso, alguns delegados incitam um discurso do ódio direcionado aos integrantes da corporação ministerial, seja por conta de seus privilégios, seja devido as suas prerrogativas constitucionais (como a inamovibilidade e a vitaliciedade típicas dos magistrados), considerando como uma "invasão" a partilha de atribuições com o Ministério Público na realização da investigação criminal.

Entretanto, isso não justifica que delegados de polícia, educados sob os moldes democráticos e garantistas da Constituição de 1988, defendam um retrocesso no modelo legislativo brasileiro, optando por uma organização das polícias com a titularidade de inquéritos dos tempos da ditadura militar. O próprio inquérito policial, vetusto nos mais de 70 anos do Código de Processo Penal, precisa ser seriamente revisto, sob pena de se tornar um entulho, um embaraço normativo diante de uma polícia que necessita se modernizar, assim como necessita ser modernizada toda uma legislação. Não adianta delegados de polícia baterem a cabeça na defesa da supremacia do inquérito, quando este próprio procedimento legal está em vias de extinção, ou, ao menos, de reformulação.

O certo é que, assim como o Ministério Público ganhou o apoio de instituições importantes do mundo do direito, no tocante à reprovação da PEC 37 (como a Ordem dos Advogados do Brasil, que já se manifestou favorável à reivindicação dos promotores e procuradores de justiça), os representantes da Polícia Judiciária também estão corretos quanto as suas críticas sobre a atuação espetaculosa do MP nos crimes que envolvem grandes somas e pessoas influentes atingidas. Se o Ministério Público deseja investigar, que realize esse mister de maneira integrada, junto com as polícias, contribuindo com o seu trabalho e cobrando, diuturnamente, melhores condições de trabalho, ao invés de apenas se aproveitar das fraquezas dos órgãos policiais, para assumir a frente das investigações e colher todas as atenções dos holofotes da mídia. Nessa briga entre promotores e delegados só quem perde é a sociedade, pois não vê os órgãos estatais funcionando a contento. Enquanto isso, os representantes da criminalidade batem palmas, ao mesmo tempo em que os representantes das corporações se digladiam, olhando para o próprio umbigo. Por conta desses e outros argumentos que não sou favorável ao mal feito texto da PEC 37, apesar de ser totalmente favorável à discussão que com ela se iniciou. Aprovada ou reprovada no parlamento, que a referida PEC sirva ao menos para despertar a todos nós da seriedade da discussão, sobre um novo modelo de investigação criminal que queremos para nosso país. A sociedade brasileira agradece!