Dia 5 de agosto é meu aniversário. E no dia 5 teremos um evento histórico em nosso país, quando, pela primeira vez, uma cidade latino-americana, no hemisfério sul, sediará uma Olimpíada. Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foram celebrados e decantados em verso e prosa desde a escolha da metrópole carioca como sede dos jogos, há quase sete anos atrás, quando foi feito o anúncio da cidade vencedora na eleição do Comitê Olímpico Internacional, em Copenhague, na Dinamarca. Na época, um sorridente e ainda bem sucedido Presidente Lula, exortava a nação a comemorar a escolha, pois no otimismo do lulopetismo da época, que superou as denúncias "mensalão", (mas não esperava ainda os efeitos futuros da "Lava-Jato"), ser brasileiro era aquele "que não desiste nunca"!
Passada a euforia carnavalesca que chegou a elevar o brio nacional do brasileiro, eis que chega o choque de realidade: na semana passada uma equipe de televisão alemã, escalada especialmente para noticiar os jogos em seu pais, teve todo seu equipamento furtado. Além disso, a descoberta de um corpo esquartejado nas proximidades da Vila Olímpica, exatamente onde estarão sediadas as equipes do vôlei, provocou mais polêmica ainda semanas antes, culminando com o Prefeito Eduardo Paes e o governador do estado, Luiz Fernando Pezão, a trocarem desaforos publicamente, cada um querendo passar a culpa para o outro, pela violência e insegurança generalizada na "cidade maravilhosa". O prefeito cobrava segurança, com uma ação mais efetiva das Polícias, responsabilidade do governo do Estado. Já o governador Pezão dizia que a culpa era do prefeito, por não organizar de forma mais preventiva o espaço público na capital, a fim de inibir a criminalidade. Mas, afinal, de quem é a culpa de tanta violência e medo, que ameaça afugentar os turistas e apagar o brilho da chama olímpica?
Em particular, eu adoro o Rio de Janeiro. Desde criança, até minhas peripécias da vida adulta, guardo comigo as melhores e mais felizes recordações da cidade. Sua geografia privilegiada e paradisíaca, seu povo alegre, suburbano e informal, louco por praia, esporte e por andar de camiseta, bermuda e sandálias havaianas, junto ao chope gelado do meio dia, aliado a um caos urbano com congestionamentos imensos de trânsito, poluição sonora, um precário serviço de coleta de lixo na periferia, um funcionalismo público insatisfeito e mal pago (principalmente os professores), criminalidade em alta, guerra de facções criminosas e traficantes nos morros, meninos em favelas vítimas de balas perdidas (muitas delas disparadas pela própria Polícia), um tráfico de drogas intenso e glamourizado no cinema ou em noticiários e os altos índices de casos de truculência e corrupção policial, marcam o cenário cultural do Rio de Janeiro tanto quanto o Carnaval ou o Zé Carioca.
Como diria o falecido poeta carioca Bruno Tolentino, o Rio de Janeiro que já foi a Corte de um Império, nunca se recuperou quando deixou de ser capital da república. A eterna dependência de verba federal transformou o estado do Rio no maior devedor da União, ultrapassando o já falido Rio Grande do Sul. Para conseguir recursos para essa Olimpíada, o Prefeito do Rio chegou a declarar estado de calamidade, a fim de que os recursos financeiros e as amortizações de dívida pudessem vir mais facilmente. Quem investe num estado falido? Quem confere crédito ao mal pagador? Apesar de todo esse retrospecto, o Rio de Janeiro e sua capital paradisíaca mantém-se impávidos, tanto quanto o Cristo Redentor num cartão postal! Parece que o jeitinho malandro do carioca, com sua ginga e seu simpático sotaque chiado de garoto da praia, conseguiu encantar o Comitê Olímpico, mesmo com tantos riscos à segurança de uma população inteira, e dos próprios atletas que irão participar da competição. Mas será que o clima está tão ruim, no aspecto da segurança, que o mar não está pra peixe mesmo?
O esquema de segurança montado para a vinda do Papa Francisco no Congresso Mundial da Juventudade, bem como a organização do Pan-americano, serviram como eventos teste para verificar até que ponto a segurança pública no Rio de Janeiro estava preparada para receber grandes eventos internacionais. Do ponto de vista da cosmética institucional, tudo estava bem feito e prontinho, a ponto do Secretário de Segurança, o delegado José Mariano Beltrame, alegar que estes seriam os jogos mais tranquilos deste século (meses depois, o citado secretário já cogita deixar o cargo). Tranquilidade nesses jogos, mesmo com roubos a equipes de jornalistas e aparecimento de cadáveres nas portas da Vila Olímpica?
A criminalidade e o crime organizado que se estruturam no Rio de Janeiro estão longe de ser debelados. Mas isso não serve como pretexto para alegar que a segurança pública está falida, e que as Olimpíadas em solo brasileiro estejam fadadas ao fracasso. Já ocorreram olimpíadas em regiões remotas, com uma geopolítica complicada, como no caso da Rússia soviética, em 1980, quando havia duas Alemanhas e a Guerra Fria apostava no sucesso de soviéticos, cubanos, húngaros e romenos, para superar a valentia capitalista dos atletas norte-americanos, canadenses, e ingleses, num clima pesado com fugas de atletas dissidentes, repressão generalizada e um clima hostil aos estrangeiros. É claro, não pudemos nos esquecer da tragédia de Munique, em 1972, quando a violência criminosa de terroristas extremistas, culminou com a ação desastrada da Polícia alemã e a morte de 11 atletas israelenses tomados de reféns, que haviam sido sequestrados. A China, que hoje é uma das maiores potências olímpicas do mundo, e que realizou a esplendorosa Olimpíada de Pequim, não é o paraíso da democracia, e a prevalência de uma das máfias mais antigas do mundo ( a Tríade chinesa), além de denúncias de trabalho escravo, e do tráfico de umas algumas drogas pesadas, como a heroína e o ópio, mostram que não é só o Brasil que sedia uma Olimpíada numa região com altas taxas de criminalidade. A própria Rússia de Vladimir Putin, que no passado realizou uma bem sucedida edição das Olimpíadas de Inverno, não estava a salvo do poderio do crime organizado, e das exigências da Máfia russa, durante a realização do evento esportivo. Num ambiente de criminalidade transnacional, ninguém pode estar realmente seguro, e no Rio de Janeiro é aí que você realmente não vai estar. Mas vale a pena ver os jogos?
Vale a pena pelo caráter histórico e eterno de festa, que marca esse evento já tradicional, iniciado na Grécia Antiga e ressuscitado na modernidade por homens visionários, como Pierre de Coubertin. A Olimpíada talvez seja o momento em que o cidadão comum, assolado pela violência do crime, esquece por um momento de seus problemas e inseguranças, e vai torcer entusiasticamente pelos esportistas de sua nação. O sentimento patriótico e o fervor nacionalista, ao menos em termos esportivos, parecem ser salutares para levantar o moral de milhares de brasileiros, vítimas do crime e intensamente insatisfeitos com suas autoridades. Se há algo de bom que uma Olimpíada pode trazer além de unidade, é uma consciência social, e a certeza de que a construção de estádios, ginásios e polos olímpicos não é uma mera cosmética para se adequar a atletas estrangeiros, que vem para o país com nível de exigência conforme os padrões internacionais, e todo o aparato montado para o evento olímpico pode ser deixado, responsavelmente, para as novas e necessitadas gerações, quando o evento acabar.
Grandes cidades que foram sedes dos jogos, que souberam aproveitar sua potencialidade, desenvolveram-se grandemente, superaram importantes mazelas sociais ainda existentes e amadureceram o seu povo, como foi nos casos de Barcelona, Seul e Londres. Será que acontecerá com o Rio? Somente o Cristo lá no topo do Corcovado, a beleza das centenas de "garotas de ipanema" das praias cariocas, os versos de Vinícius e as canções de Tom Jobim, poderão dizer, enquanto que a gringada que vem ver os jogos deita e rola no samba. O desafio bem maior que fica, com a manutenção ou a saída do Senhor Beltrame da Secretaria de Segurança, é saber se um novo modelo profissional de segurança adotado para as corporações policiais, possa extinguir dos cânceres básicos que sempre acompanharam a Polícia da cidade do Rio de Janeiro, e por que não dizer do Brasil inteiro: cultura bélica-truculenta e corrupção brutal. Sem um novo modelo de polícia, baseado na desmilitarização, apoio aos núcleos de inteligência, aprimoramento da perícia técnico-científica e respeito à legalidade e aos direitos humanos, o Rio de Janeiro (assim como o Brasil), nunca terão uma Polícia moderna, profissional e eficiente..
A alegria e a esperança podem superar o medo, e essa alegria contagiante que o carioca tem passará por grandes provações e obstáculos diante da violência do crime, que setoriza a cidade. Desejo sorte para os cariocas e sucesso para os nossos atletas nessa Olimpíada, que eu espero que estejam a salvo de assaltantes, arrombadores, batedores de carteira, estelionatários, estupradores, sequestradores e terroristas, pois, "apesar de você, amanhã há de ser outro dia", e o "meu Rio de Janeiro continua lindo".