Na data de 10 de dezembro celebrou-se em 2018 os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um marco na história dos povos, certamente; mas será que nós, brasileiros, sabemos realmente a importância disso, ou será que a Declaração é apenas mais um documento histórico, que muita gente nunca ouviu falar ou simplesmente esqueceu disso em sala de aula?
Vou propor um teste: pergunte na rua, para ao menos umas dez pessoas, entre transeuntes populares, o que elas acham dos direitos humanos. Não será de admirar se a maioria dos entrevistados receber a palavra como um palavrão e tecer algum comentário irônico ou raivoso sobre o tema, identificando os direitos humanos como a defesa de criminosos, ou mesmo um estímulo à impunidade. Afinal de contas, durante décadas fomos bombardeados nos meios de comunicação, por meio daqueles programas policiais sensacionalistas, com uma propaganda negativa, que não se preocupava sequer em deturpar um conceito. Não se trata de distorcer um conceito, mas sim o de definir outro.
Para alguns incautos, não adianta explicar que os direitos humanos, na verdade, nada mais são do que direitos básicos, considerados universais, em que se tem como invioláveis e sagrados direitos tais como a vida, a liberdade, a dignidade e a repulsa a qualquer forma de tortura ou tratamento cruel e degradante. Nem tente argumentar, dando uma pequena aula de história, informando que o holocausto dos judeus e a descoberta dos campos de concentração, construídos pelos nazistas, e revelados ao mundo, foram um dos principais incentivos ao surgimento da Declaração, bem como, é claro, com o nascimento das Nações Unidas, passou-se a entender os direitos humanos como direitos de toda a humanidade.
Direitos humanos, ONU, holocausto judeu, nazifascismo, tudo isso parece palavras distantes, que lembram mais um filme norte-americano de guerra ou um documentário da Netflix, do que algo que seja vivenciado no cotidiano de milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros, sujeitos à violência urbana. São as mesmas vítimas de tratamentos cruéis e degradantes, que apedrejam os direitos humanos, por entender que não se trata de um tema que lhes é caro. Os direitos humanos não seriam direitos, mas sim pessoas.
É isso mesmo! No conceito construído há décadas pelos meios de comunicação, e, agora, sobretudo em tempos de redes sociais com propagação das fake news, direitos humanos não são o conceito de determinados tipos de direitos, mas sim a senha para identificar pessoas. Pessoas essas que quase sempre estão num espectro político negativo, são associadas à Esquerda e demonizadas pela Direita. E como não poderia deixar de ser, se defendem direitos de bandidos, é porque estariam de alguma forma, associadas a bandidos. Com a redemocratização do país nos anos oitenta do século passado, tornou-se célebre a defesa dos direitos humanos de quem foi injustamente preso, torturado ou exilado nos tempos de governo militar, e a imensa maioria dessas pessoas estava associada a esquerda política. Nos tempos áureos do petismo, nos governos de Lula e Dilma, notabilizou-se a defesa dos direitos humanos, a criação de um ministério específico para o tema, e, enfim, a constituição de uma Comissão da Verdade, criada para apurar os crimes e abusos cometidos pela ditadura, o que incomodou muita gente, mesmo não tendo a comissão qualquer papel punitivo, que pudesse levar ao banco dos réus, os responsáveis pelas violações de direitos.
Fico pasmo de saber que em poucos dias assumirá a presidência da república um político de extrema-direita, e com ele todo o falatório demagógico de um conservadorismo tosco, onde, naturalmente, a temática dos direitos humanos não teria espaço. Na verdade, na construção de um ministério com figuras tão polêmicas, chama atenção a futura titular da Pasta responsável pelos direitos humanos, que sequer trabalha o conceito histórico trazido acima, por conta de seu fanatismo ou fundamentalismo religioso. Talvez no discurso do governo que entra, direitos humanos só são reconhecidos como os direitos das vítimas da violência criminal, e não se reconhecem quaisquer direitos a seus algozes, pois, afinal, na lógica repressiva e desumanizante do Estado, bandidos não são sequer pessoas, e não teriam até direitos garantidos a animais. Pior ainda se tais criminosos são autores de crimes violentos ou contra o patrimônio, e se são das mais baixas classes sociais. Para quem não reconhece o outro como humano, nada significa setenta anos da vigência de um documento histórico.
Pode-se dizer que é um problema de desinformação. Eu diria que mais do que isso, trata-se de um problema de cultura. Por décadas passamos não só por regimes políticos autoritários (Estado Novo, ditadura militar), mas também por um longínquo período do desenvolvimento de uma cultura autoritária. A controvertida Lei da Anistia, que beneficiou não apenas os perseguidos pelo regime, acusados de práticas terroristas, mas principalmente tornou impunes torturadores, travestidos de agentes do Estado, parece ter aprofundado o fosso cultural que separa a civilidade da barbárie, a consciência de direitos da suprema ignorância sobre eles. Passou a ser normal defender a tortura e o extermínio de pessoas, em prol de um sentimento de segurança, de uma falsa realidade de ordem e progresso.Ao invés de, na campanha eleitoral, vermos candidatos segurando crianças em escolas, mostrando-lhes um lápis, a fim de que, num futuro próximo, aprendessem devidamente o que seriam os direitos humanos, o que nos apareceu foi um candidato vitorioso ensinando a uma criança como fazer o gesto de apontar uma arma. Na pauta moralista- armamentista do conservadorismo brasileiro e do fundamentalismo religioso, portanto, não há espaço para os direitos humanos. Há apenas os direitos dos chamados cidadãos de bem, e do outro lado o espaço daqueles que não tem direitos.
Espero que, talvez um dia, ao serem perguntados na escola, garotos como o meu filho possam responder rapidamente e saber de cór os termos da declaração de 1948, sem achar que direitos humanos são algo negativo, ensinado num programa de televisão no fim de tarde, ou não sejam apenas tema de algum seriado ou documentário da Netflix. É pagar pra ver!!
Seu espaço para discussões e debates voltados para os temas da segurança pública, criminologia, direito penal e política criminal. Sempre com um olhar crítico e corajoso sobre as coisas que deveriam ser ditas, mas muitos se amedrontam em não dizer. Porque não temos medo de viver e receio de lutar por um mundo novo. Afinal, o mundo é muito "bão", como diz o matuto, quando alguém tenta ser "bastião", como diria o ativista, defendendo a fortaleza do direito da invasão do tédio e da mediocridade.
sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
DIREITOS HUMANOS: será que após 70 anos, humanos sabem o que são direitos?
sábado, 1 de dezembro de 2018
MOVIMENTOS SOCIAIS: Policiais Antifascismo-Um Conceito
Parodiando o célebre manifesto de Marx e Engels, um fantasma ronda o Brasil: o fantasma do antifascismo!
Se assim como na Europa do século XIX, onde o Papa, os radicais da França e o aparato policial da Alemanha voltavam-se contra os comunistas, parece que no Brasil do estado de exceção permanente, que saiu das urnas no dia 28 de outubro, o presidente eleito Bolsonaro, Magno Malta, Malafaia e todos os setores de uma extrema-direita conservadora, evangélica, fundamentalista e ruralista, além de um contingente policial altamente reacionário, unem-se numa aliança para conjurar o antifascismo. Mas o que seria o antifascismo e, principalmente, o que se dizer de um movimento antifascista dentro do ambiente policial?
O chamado Movimento Nacional Policiais Antifascismo é um fenômeno social típico da ressaca da crise da globalização desde 2008, no cenário mundial, e da pulverização do Estado social-liberal iniciado timidamente na década de 1990, com o mandato presidencial tucano de Fernando Henrique Cardoso, e fortalecido na era do lulopetismo, nos tempos áureos dos governos de Lula e Dilma, na primeira década deste século, se for levado em conta o aspecto local. Seu marco inicial pode ser destacado a partir de 2013, com o surgimento do ciclo de protestos populares intitulado como "Jornadas de Junho", a massificação dos movimentos sociais em rede, a formação de uma estrutura orgânica de organizações de direita, integrada por jovens militantes, como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre-MBL, e como consequente reação a isso, a reorganização de movimentos nessa mesma faixa etária da juventude, identificados com causas progressistas, mais à esquerda política, como a Frente Povo sem Medo e a Mídia Ninja.
Dentre os diversos movimentos de jovens, estudantes e trabalhadores delineado no ciclo histórico de crise ética, social e política no país, destaca-se o movimento antifascista. Tal movimento espalhou-se por diversos segmentos já tradicionais de organização da classe trabalhadora brasileira, como sindicatos e organizações sociais; porém, ganhou maior revelo após a repulsa aos discursos e práticas dos movimentos de extrema-direita ter alcançado integrantes dos contingentes policiais. A partir daí é que o ativismo social nas Polícias destacou-se e mostrou um curioso traço da organização da luta política e social no Brasil: o surgimento de novos atores no debate sobre a resistência ao desmantelamento do Estado social e a defesa abnegada de direitos fundamentais.
Ora, mas polícia, historicamente, não foi feita no Brasil para reprimir? É justamente para operar com uma quebra de paradigmas, com a apresentação de um outro perfil de policial, progressista, e identificado com as causas sociais, que surgiu o Policiais Antifascismo. Menos do que ter se desenvolvido por uma adesão ideológica, defendo a tese de que tal movimento social nas polícias é resultante do surgimento de "trabalhadores atípicos" (termo utilizado por Boaventura de Souza Santos), e por meio da organização de um novo sujeito histórico, não mais identificado com uma vanguarda, simbolizada por um partido, associação ou sindicato, mas sim por redes mobilizadas sob a forma de uma multidão (conceito caro à teoria política de Hardt e Negri). Diferentemente dos sindicatos de policiais civis ou associações de praças e oficiais na Polícia Militar, o Policiais Antifascismo é composto pelo mais variado contingente de operadores da segurança pública em atividade no país, englobando tanto policiais civis quanto militares, bombeiros, policiais federais, policiais rodoviários federais, guardas civis, e incluindo, outrossim, agentes penitenciários, compreendidos como uma espécie de polícia prisional. Fazem parte, tomam parte nas discussões e podem intervir nos processos decisórios tanto profissionais ativos quanto aposentados. Uma das características básicas desse movimento é comum a todo tipo de organizações difusas que surgiram com a crise global, como o Occupy Wall Street, e o EuroMayDay é a sua horizontalidade, a importância das redes sociais e o funcionamento através de diversos coletivos independentes, sem um núcleo central, mas identificados por uma pauta comum. Desta forma, o Policiais Antifascismo tem uma estrutura diferente da burocratizada realidade dos sindicatos de servidores policiais, e suas instâncias de decisão independem de assembleias ou da regularização de seus atos por meio de atas, publicação de atos oficiais ou mesmo de registro de um CNPJ. Prevalece muito mais a personalidade política do que personalidade jurídica.
Mas bem distante de ser uma ficção jurídica, o Policiais Antifascismo é um ator real na busca e preservação de direitos, e na sua denúncia contra a ilegalidade e o arbítrio policial. Conforme as teorias do pluralismo jurídico, não corre dúvida de que um movimento social formado por agentes de Estado, que tem a incumbência de realizar uma atividade formalmente disciplinada em lei, demonstra a todo momento as consequências de suas ações para o mundo do Direito, uma vez que a defesa contínua de direitos fundamentais por um grupo, mesmo sem personalidade jurídica estabelecida, nos moldes tradicionais, revisita a política criminal brasileira como um todo, integra e articula blocos de formadores de opinião, desenvolve pela ativação do discurso toda uma racionalidade que estimula a prática legislativa, bem como exerce um papel fundamental de mobilizador da opinião pública. Sobre opinião pública, lendo Habermas, percebi que o recente fortalecimento da Nova Direita no Brasil deu-se pelo sucesso em articular as redes sociais, desafiando, e até mesmo menosprezando a difusão de informações pelos meios de comunicação tradicionais. Por meio da criação de pseudorealidades, principalmente através da propagação das chamadas fake news, o neofascismo se estabeleceu de vez no Brasil, principalmente no ambiente policial. Para fazer frente isso, somente a atuação, também em rede, de movimentos autênticos e jovens, como o Policiais Antifascismo.
Os movimentos sociais de linha progressista são, como seus congêneres na direita política, integrados por jovens trabalhadores mal aproveitados no estágio final de crise da globalização. No caso das polícias, nota-se, no caso brasileiro, que a cada ano, um contingente maior de homens e mulheres com diploma universitário, acaba ingressando nos concursos nas carreiras policiais, principalmente na Polícia Militar e na Polícia Civil. A estratégia corporativista das entidades de classe como sindicatos e associações de policiais, na busca da valorização profissional (e consequente aumento da remuneração), por meio da exigência legal do nível superior, acabou atraindo milhares de profissionais que simplesmente não encontraram emprego em suas áreas de origem, na formação educacional, e que corriam o risco de permanecer desempregados ou integrar o precariado de uma massa laboral informe, sujeito a vínculos frágeis de relações de trabalho. Nesse sentido, o aspecto vocacional passou longe, a opção pela carreira policial passou a ser mais uma necessidade de sobrevivência, do que um destino profissional. Nesse sentido, do ponto de vista antropológico ocorreram dois processos de socialização distintos, e quase antagônicos: a) a integração total ao modelo ideológico da velha polícia, com a absorção de todos os vícios e cacoetes da atividade repressiva, desenvolvendo um conhecimento todo voltado a um repetitivo ensinamento tático e operacional, na lógica da "polícia boa é a que prende bandidos"; b) ou a repulsa a um modelo considerado anacrônico, e a busca de integração com indivíduos ou grupos, com pensamento mais voltado para a defesa do Estado de direito, em busca de maior instrução no que tange a aspectos tecnológicos e científicos do trabalho policial, com uso mínimo ou diferenciado da força por não ser considerado como critério último de eficácia, pautada no lema de que "polícia boa é a que investiga direito".
As peculiaridades da função policial servem, portanto, como um indicador útil para se desvendar o que pensam e o que querem os policiais antifascistas. Menos do que uma polícia permissiva ou "protetora de bandidos", como argumentam seus opositores, uma Polícia Antifascista revela-se, na verdade, uma imensa redundância ética, ao menos no que diz respeito a manutenção de um Estado democrático de direito. Ser antifascista num molde constitucional que rejeita a arbitrariedade, e consagra direitos fundamentais, deveria ser mais do que a regra, mas o verdadeiro mantra de qualquer trabalho policial de qualidade. Ter uma atividade policial como função social, pautada no atendimento, principalmente de segmentos sociais mais atingidos e vulneráveis, como pobres, negros, mulheres, pessoas com orientações sexuais LGBT, e, principalmente, pelo respeito e defesa dos trabalhadores subalternos do meio urbano, identificados como semelhantes aos agentes de Estado (que também se vêem como trabalhadores), deveria ser a filosofia de vida do integrante de uma organização policial numa sociedade democrática, ao invés de se cultuar uma separação entre o cidadão do lado de fora, e o policial do lado de dentro da corporação.
É nesse sentido que o movimento Policiais Antifascismo aparece como um importante ator social num regime político incerto, onde o estado de exceção parece ser uma regra oculta, por debaixo das cortinas de uma frágil democracia. Se o velho Brasil de 1964, das fardas, tanques, baionetas e generais de outrora, teima em ressurgir, como um exército de brancaleone ministerial, nomeado por um presidente que não tem o respaldo de 44,87% dos brasileiros, saber que existe um enorme contingente de operadores da segurança pública que também não compactua dos ideais e preconceitos do mandatário de extrema-direita, parece ser uma lufada de esperança para progressistas e democratas de diversos matizes ideológicos. Afinal de contas, onde encontrar resistência maior ao autoritarismo senão dentro de instituições que foram concebidas para serem autoritárias por natureza? Nesse sentido, o compromisso e a missão dos policiais antifascistas revela-se mais cívica do que nunca.
É nesse sentido que o movimento Policiais Antifascismo aparece como um importante ator social num regime político incerto, onde o estado de exceção parece ser uma regra oculta, por debaixo das cortinas de uma frágil democracia. Se o velho Brasil de 1964, das fardas, tanques, baionetas e generais de outrora, teima em ressurgir, como um exército de brancaleone ministerial, nomeado por um presidente que não tem o respaldo de 44,87% dos brasileiros, saber que existe um enorme contingente de operadores da segurança pública que também não compactua dos ideais e preconceitos do mandatário de extrema-direita, parece ser uma lufada de esperança para progressistas e democratas de diversos matizes ideológicos. Afinal de contas, onde encontrar resistência maior ao autoritarismo senão dentro de instituições que foram concebidas para serem autoritárias por natureza? Nesse sentido, o compromisso e a missão dos policiais antifascistas revela-se mais cívica do que nunca.
Assinar:
Postagens (Atom)