sexta-feira, 20 de abril de 2012

CULTURA ARMAMENTISTA E RACISMO: "Stand your Ground". A morte de um adolescente negro na Flórida é um dos efeitos colaterais da Tolerância Zero

A criminologia norte-americana é um dos orgulhos dos pesquisadores das ciências humanas no hemisfério norte. Durante anos, movimentos teóricos como a Escola de Chicago e a teoria da Subcultura Delinquente atraíram intelectuais do mundo inteiro, fazendo com que muitos estudiosos (principalmente europeus) viessem para o país, lecionar em universidades como Harvard, Chicago ou Princeton. Do palco do debate teórico e no nascimento dos chamados think tanks, como são chamados os ideólogos de novas teorias criminais das últimas décadas do século XX, muito empregadas em políticas públicas, sob a forma de consultorias, o Manhattan Institute talvez seja uma das instituições mais renomadas a desenvolver teorias polêmicas, como a doutrina da Tolerância Zero ou a teoria da "janela quebrada" (The Broken Window Theory).

Nos EUA, qualquer sensação de ameaça que
alguém sinta é o suficente para se meter bala em outro alguém.
Entretanto, não podemos nos esquecer da forte carga ideológica desses teorias, tendo em vista que muitas delas se ajustam naquilo que o criminólogo Alessandro Baratta definiu de "criminologia liberal". Os pensadores das ciências criminais norte-americanas são vinculados ao pensamento liberal clássico, do laissez faire ou da "mão invisível" de Adam Smith e do livre arbítrio de Beccaria, entendendo que o crime, muitas vezes, é uma opção individual condicionada por fatores sociais, tais como: a miséria, o desemprego e o racismo. Assim se explicaria a grande criminalidade dos bairros negros, periféricos e violentos, como o Bronx ou o Harlem em Nova York, ou a criminalidade dos bairros latinos de chicanos em metrópoles como Los Angeles. Por toda parte, a criminalidade nos países desenvolvidos estaria relacionada a fortes componentes étnicos, de etnias que não correspondem às dos primeiros imigrantes, fundadores da nação, mas sim de uma nova geração de estrangeiros que correu atrás do americam dream, mas que ficou segregada em bairros pobres, com pouca infraestrutura e com muita desigualdade social, fruto das mazelas do modo de produção capitalista, longe do berço esplêndido da prosperidade. Racismo, identidade cultural e criminalidade dos setores excluídos da sociedade, seriam muito mais resultado das dificuldades da economia capitalista, e de uma ideologia centrada na ação individual como única maneira de obter sucesso. Não é à toa que os Estados Unidos tem políticos negros e hispânicos filiados ao Partido Republicano, que representam ainda a ideia do self made man, aquele que conseguiu sobreviver às adversidades de seu bairro sujo e pobre de infância, enriquecendo, demonstrando valor por seu esforço próprio, tornando-se um cidadão exemplar da sociedade. Aquele que chegou lá, independente de raça ou classe social.

O jovem Trayvon Martin. Morto estupidamente por uma
política criminal estúpida.
É no país que tem hoje um presidente negro, fruto dessa mesma política liberal, que até permitiu chegar à presidência um filho de um intelectual queniano com uma estudante branca norte-americana, que temos também uma ideologia individualista, privatista, egoística, que vai até as últimas consequências, quando se trata da defesa da própria liberdade individual. Sob o argumento da manutenção da segurança propria como um um direito individual, a lei penal norte-americana acabou por autorizar em alguns estados um absurdo, uma aberração jurídica, que se trata da possibilidade do exercício da autotutela, no caso de iminente suspeita de crime contra si próprio, onde a suposta vítima pode se defender antes mesmo da manifestação de seu agressor, repelindo violentamente um suposto ataque; podendo até mesmo matar, se necessário. É a legalização da legítima defesa putativa como se defesa efetiva realmente fôsse, concebendo absurdos, como foi a morte do jovem de16 anos, Trayvon Martin, no dia 26 de fevereiro passado, em Sanford, na Flórida.

O assassino de Trayvon, o vigilante George Zimmerman:
criminoso ou também vítima do sistema?
O jovem Trayvon Martin, um adolescente negro, estudante do colegial, foi morto pelo vigilante George Zimmerman por ter sido confundido com um assaltante, pois ao avistar o garoto andando pelas ruas, vestindo um gorro na cabeça, e achando se tratar de um assaltante, Zimmerman o perseguiu e o abateu a tiros, sem qualquer chance de defesa, pela simples suspeita de que Trayvon estivesse armado e pudesse atacá-lo. Inicialmente, o atirador foi solto pela polícia, sob a alegação de que a lei local permitiria a autodefesa, mas investigações posteriores, realizadas nos dias seguintes, demonstraram que George Zimmerman estava mentindo, quando disse que foi atacado por Trayvon. Para piorar a situação, filmagens feitas por câmeras de tevê na hora do crime e gravações de conversas telefônicas de uma das testemunhas do crime com a polícia, revelaram que o vigilante matou Trayvon Martin sem que esse fizesse absolutamente nada contra ele, simplesmente pelo fato dele parecer um suspeito. Agora, preso por determinação judicial, Zimmerman  chegou a pedir desculpas à família do adolescente morto, em uma audiência no condado de Sanford, na última sexta-feira. O presidente Obama criticou a ação do vigilante baseada numa lei local que permite esse tipo de ação, dizendo que se tivesse um filho, ele provavelmente se pareceria com Trayvon.

No mapa, em verde, os estados norte-americanos que
seguem a política da autodefesa violenta, com seus
horrendos danos colaterais.
A expressão Stand your Ground, adotada pela política criminal de estados como  a Flórida, em português pode ser traduzido mais ou menos como "Defenda o seu Terreno". Pela teoria da autodefesa baseada nesse slogan, uma pessoa que tiver a crença razoavelmente fundada de que está sendo atacada, pode reagir violentamente, inclusive se valendo do uso de armas, matando seu agressor, sem a obrigação de recuar primeiro. Trata-se de um verdadeiro absurdo e uma pregação da autotutela que substitui o papel do Estado, a intervenção da polícia e ação da Justiça, transformando cidadãos comuns em verdadeiros justiceiros. É o reconhecimento da falência do sistema de segurança estatal e da incapacidade dos agentes públicos de dar cabo da violência, num abuso da crença individualista no direito de defesa própria (self defense), chegando-se ao cúmulo de autorizar que a vítima reaja quando se sentir ameaçada, matando seu suposto agressor, ao invés de estimulá-la ao contrário, a não reagir, e depois pedir socorro, chamando as autoridades. Tal política absurda formalizada em leis locais irracionais, é que estimulou a conduta precipitada e  desastrosa de George Zimmerman, um vigilante voluntário, como muitos dos que aparecem nos grandes centros urbanos das grandes metrópoles em diversos lugares e países, que sem conhecimento técnico algum, falta de treinamento do Estado no uso da força ou ausência de preparo psicológico, foi colocado armado nas ruas, para matar estudantes ou qualquer um que parecesse suspeito, seja um filho meu ou seu, simplesmente por se parecer com um bandido.

Trayvon estava assim quando for morto por Zimmerman.
E quanto a nós, será que temos também os nossos Trayvons?
Doutrinas como a "Defenda o seu Terreno" somente corroboram a criminalização do outro como inimigo, como bem quer a leviatãnica tese do jurista alemão Günther Jakobs, a quem algumas pessoas devem ser tratadas como cidadãos e outros como inimigos. Nesse último caso, leia-se quem se parecer com marginal, no descarado preconceito étnico de certos sistemas criminais, como o norte-americano, que veem negros e hispânicos como potenciais saqueadores de lojas, assaltantes, traficantes, proxenetas, enfim, bandidos em potencial. Enquanto isso, o branco ou wasp cidadão norte-americano toma seu milkshake, vai aos cultos protestantes no final de semana e vota em Mitt Romney, para que negros encapuzados no meio da rua não venham a aterrorizá-los, enquanto que eleitores de Obama festejam ter um presidente negro na Casa Branca.

Nas ruas da América nua e crua, mais protestos. É
o que resta numa sociedade violenta, cheia de
doenças e fraturas sociais.
Uma das grandes ironias, no caldeirão de leis despudoramente étnicas, de uma política criminal excludente que resultou na  morte de Trayvon Martin é que seu algoz também é descendente de hispânicos, com traços claramente étnicos e cor da pele também definida, a ponto de Zimmerman também correr  o risco de ser confundido com um assaltante numa rua escura, no meio da noite. Na política criminal fraticida norte-americana, herança de uma equivocada visão acentuadamente liberal-individualista do direito próprio à defesa, corremos o risco de ver sociedades inteiras levadas à ruína pelo fato de que a ineficácia dos serviços de segurança do Estado e a insegurança jurídica provocada em razão disso, levam pessoas aterrorizadas a se transformarem em assassinos, pela desconfiança mútua com a mera presença do outro, o que realmente é muito preocupante. Tomara que a moda não pegue e não cheguem iniciativas legislativas desse tipo ao Brasil. Já basta os erros de avaliação que o Estado comete aqui, quando a polícia aborda determinados cidadãos equivocadamente, abusando do poder, chegando a atirar em carros com mulheres e crianças em seu interior, confundidos com suspeitos. Imagine o que aconteceria se o próprio cidadão armado tivesse o direito de abordar e perseguir o outro, achando que é um suspeito?! A barbárie está bem perto, e não é característica única da atabalhoada terra do Tio Sam. Tomemos cuidado com novos Zimmermans!!!

Um comentário:

  1. Compare as taxas de homicídios do Brasil com as dos Estados Unidos, e se saberá onde há justiça e onde a segurança funciona. No Brasil, onde um cidadão que consegue ter uma arma não pode dar nem um tiro para cima, os folgados e bandidos tomam de conta; nos EUA, todo mundo anda armado e pode matar os agressores, todo mundo se respeita que é uma beleza!

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