O MOVADEF em ação na capital peruana. |
Na minha recente viagem ao Peru, tomei um pouco
de conhecimento da realidade andina, lendo jornais e vendo o noticiário local.
Pude perceber que, se no Brasil, o tema político da vez é o julgamento do
"Mensalão", no Peru o que mais se discute são as ações do MOVADEF.
Pra quem não sabe, MOVADEF (Movimiento pela Anistia y Derechos Fundamentales)
é uma sigla que vem estremecendo a classe política no Peru recentemente, além
de se tornar uma ameaça à credibilidade do governo do atual presidente de
esquerda no país, Ollanta Humala. É um movimento surgido nas universidades
peruanas (em especial na tradicional Universidade de San Marcos, situada na
capital, Lima, conhecida por suas manifestações estudantis), e que conta
com o apoio de dissidentes políticos residentes no exterior e ex-integrantes do
movimento terrorista de extrema-esquerda, Sendero Luminoso, famoso por
seus atentados, assassinatos e ações criminosas na década de oitenta do século
passado.
Panfleto do Sendero na década de 80. |
Mas o que era o Sendero Luminoso e por que
este grupo gera tanto arrepio até hoje na memória dos peruanos? Imagine uma
época, um mundo diferente, dividido numa guerra velada entre duas potências
mundiais ideologicamente distintas: de um lado, o bloco norte-americano,
liderado pelos EUA, e de outro o bloco soviético, capitaneado pela extinta
União Soviética. Nesse mundo dividido, com guerras e revoluções como na
Coréia, em Cuba, no Vietnã e ditaduras a pulular por toda a América Latina,
(principalmente na América do Sul), surge, no final dos anos setenta, um professor
universitário baixinho e carismático, famoso por ministrar aulas lotadas de Filosofia, com
seus óculos de aros grossos, fala articulada e fã do líder comunista chinês, Mao-Tsé Tung,
pregando uma revolução socialista no estilo maoísta, convocando nas
universidades estudantes e na área rural camponeses, para que se iniciasse uma
luta armada contra o governo. Esse homem seria Abimael Guzmán, fundador do Sendero
Luminoso, mais conhecido na clandestinidade pelo seu codinome: camarada
Gonzalo. Através de Guzmán, começa-se a pregar um discurso ideológico
radicalizado, como um arremedo da doutrina maoísta aplicado à realidade andina,
chamado de "pensamento Gonzalo".
O Sendero Luminoso,numa das épocas mais violentas da história peruana. |
Seguiu-se durante toda a década de 80 (e eu me
recordo disso), uma série de atentados, explosões, assassinatos de políticos e camponeses, e destruições,
tudo levado a cabo pelos militantes do Sendero, em sua maioria estudantes universitários e ex-sindicalistas,
seguidores de Guzmán. Os caras chegavam a matar cachorros de rua e
empalá-los nos postes da cidade, com placas aludindo ao nome de políticos
da situação que estariam com os dias contados. O Sendero Luminoso foi um
retrato violento do seu tempo, de radicalismos e do extremismo das ideologias.
As ações sanguinárias dos militantes senderistas poderiam fazer tremer de medo
um militante italiano das Brigadas Vermelhas (movimento terrorista de
extrema-esquerda que chegou a matar o primeiro-ministro da Itália, Aldo Moro).
O problema da contradição do discurso senderista e a real faceta de seu
líder, que de grande ideólogo marxista-leninista, com a apresentação de seus crimes, revelou-se um verdadeiro
psicopata, foi no trato com o principal segmento popular que o Sendero pretendia
insuflar. Ao invés de mobilizar camponeses, ganhando sua simpatia com o apoio
as suas reivindicações populares, os militantes do Sendero Luminoso quiseram
conquistar o apoio dos trabalhadores do campo à força, muitas vezes com
coletivização forçada de terras sob sua vigilância, e justiciamentos, com
assassinato de camponeses que se recusassem a aceitar as ordens dos militantes
senderistas. Segundo a Comissão da Verdade peruana, na época que existiu, o Sendero Luminoso foi responsável por ao
menos de 75% das mortes violentas de camponeses humildes, vivendo na zona
rural.
A prisão de Guzmán foi o fato político da década no Peru. |
Tal realidade, narrada acima, durou mais de uma
década, até que no mandato do presidente peruano Alberto Fujimori, após um
sagaz trabalho de inteligência, foi finalmente capturado e preso o líder do
movimento, Abimael Guzmán. Mostrado ao mundo preso dentro de uma jaula, com a
tradicional roupa listrada dos presidiários, um enraivecido Guzmán protestava das condições vergonhosas em que era apresentado ao mundo, mostrado como um animal, e isso suscitou debates na mídia do mundo
inteiro acerca do respeito aos direitos humanos e a preservação do princípio da dignidade humana, uma vez que o líder senderista
foi apresentado como um bicho, irritado e indignado, bradando contra seus
captores, face as condições desrespeitosas em que se encontrava. Enquanto isso, naquele momento, graças à exposição pública de Guzmán como um troféu, Fujimori galvanizava
apoio político para seu projeto duradouro de poder, perpetuando-se no governo
através de uma ditadura branca, pelo controle e futura dissolução do Congresso,
e por um governo autoritário, com forte apoio militar, montado por um Estado
Policial, interessado não apenas em prender terroristas, mas também em eliminar
qualquer foco oposicionista que contrariasse o governante peruano, descendente
de japoneses.
O ex-presidente Fujimori, em sua prisão hospitalar. |
Mas, nos últimos anos, com uma economia em
frangalhos, uma crise social demasiada e uma epidemia de cólera que dizimou o
país, mostrando a fragilidade da saúde pública no Peru, Fujimori acabou sendo
deposto e fugindo do país, após ser acusado de atos de corrupção. Ele chegou a
viver durante um tempo no Japão, donde pediu a cidadania japonesa,
posteriormente negada, até ser extraditado novamente para seu país de origem e
julgado por seus crimes. Assim como Guzmán, Fujimori hoje vive trancado dentro
de uma cela, enfermo, mas com melhores e privilegiadas condições carcerárias do que os
terroristas que ele aprisionou, carregando o ônus político de ter sido, ao
mesmo tempo, o governante que derrotou o Sendero
Luminoso, mas também aquele que acabou atrás das grades junto com seus inimigos
políticos; num Peru atrasado e repleto de desigualdades, mas esperançoso de
retomar o rumo do desenvolvimento, assim como os demais países sul-americanos,
como Venezuela e Brasil.
A polícia peruana é chamada a se mobilizar, a cada ato do MOVADEF. |
O que parecia ser apenas um triste pedaço da
recente história peruana, acabou por se tornar um problema de Estado, com o
surgimento do Movimento Anistia e Direitos Fundamentais. A tese principal de
seus integrantes é de que Abimael Guzmán já permaneceu tempo demais na prisão,
os tempos são outros, o Peru já vive dias de uma democracia plena, e durante o
período autoritário governado por Alberto Fujimori,viveu-se um regime de
exceção, um simulacro de democracia, onde o ex-presidente manipulava as
eleições e, nesse panorama, o líder do Sendero foi
capturado na condição de preso político. É como preso político que os
militantes protosenderistas buscam a libertação de seu líder, assim como os
familiares de Fujimori, seus dois filhos, Kenji e Keyko (esta última, candidata
derrotada à presidente, nas últimas eleições), ambos deputados no congresso
peruano, buscam a liberdade de seu pai, alegando, nesse caso, razões
hunanitárias, face um câncer desenvolvido pelo idoso ex-presidente, durante sua
permanência na prisão. No caso da MOVADEF, a imprensa do país tem sido muito
mais intransigente e alarmista, surgindo a cada dia no noticiário um fato novo
associado ao movimento, num sensacionalismo que estimula o retorno de uma
cultura do medo no solo peruano, a fim de agitar a população sobre um clima de
pré-instabilidade institucional. O lema é: “não esqueçamos do que aconteceu
conosco. Não deixemos o passado voltar!”.
A polêmica sobre o MOVADEF já atingiu em cheio o
governo do presidente Humalla, principalmente através dos meios de comunicação
(em especial o diário El Comercio, principal jornal do Peru) que fazem
oposição ostensiva ao governante de esquerda, por sua suposta leniência e até
mesmo colaboração com os manifestantes protosenderistas. A última notícia que
ganhou as manchetes na semana passada, e chamou minha atenção quando eu estava
lá, foi a destituição do então embaixador do Peru na Argentina, Nicolás Lynch,
pelo fato de ter sido divulgada gravação em que o representante diplomático recebia
na embaixada, em Buenos Aires, um grupo de militantes do MOVADEF, para uma
breve conversa de cinco minutos. Na ocasião, o diplomata respondeu à imprensa,
dizendo que a embaixada do Peru era um lugar aberto a todos os peruanos. Isso
foi suficiente para que a imprensa local bombardeasse a conduta do embaixador,
exigindo sua renúncia, fato que foi por ele praticado após dois dias de intensa
pressão no governo. O primeiro-ministro peruano, Juan Jiménez, foi obrigado a
também ir aos meios de comunicação, para criticar publicamente a conduta de
Lynch, apesar de entender que a lógica do governo ainda é a de manter diálogo com seus movimentos sociais e políticos. Quanto ao
presidente, restou uma nota lacônica na imprensa, e o compromisso do
governo de defender a democracia, ao mesmo tempo que mantém a promessa de
combater o terrorismo.
No Brasil, parecemos estar distantes da realidade
peruana, tendo em vista que aqui, os grupos considerados subversivos de
esquerda foram eliminados muito antes, com a prisão ou aniquilação física de
todos os seus integrantes na década de setenta, além do movimento no Brasil ter
se iniciado num contexto de apoio popular extremamente reduzido a grupos de esquerda, apesar do
apoio maciço de um grande contingente de estudantes universitários na gênese de
pequenos grupos armados como a ALN, a VPR, o MR-8 e a MOLIPO. Além disso, no
Brasil não tivemos um ex-presidente atrás das grades, como aconteceu no Peru
com Fujimori, ao mesmo tempo vítima e algoz do Sendero Luminoso,
mas com uma gestão tão controvertida que, apesar de seus méritos por ter erradicado o
movimento e prendido Guzman, acabam por ser apagados devidos às denúncias de
violação dos direitos humanos em seu governo, e pelos escandalosos atos de
corrupção que o levaram a prisão.
A imprensa peruana não perdoa, por meio de suas charges. |
Há setores da imprensa peruana que defendem
abertamente políticas de lei e ordem, como a prisão de todos os manifestantes e
integrantes do MOVADEF, como também a expulsão de estudantes e professores das
universidades que compartilharem do mesmo pensamento, sob pena de fechamento
dessas instituições de ensino. De qualquer forma, é uma saída truculenta, assim
como truculentas são as soluções pregadas pela Nova Direita latino-americana,
difundida através dos meios de comunicação, sempre dirigida furiosamente a
movimentos sociais com ideologia de esquerda ou comprometidos com alguma
bandeira ideológica de cunho marxista. No Brasil, por exemplo, é comum em
certos periódicos como as revistas Veja ou Época, ver artigos inflamados de
articulistas, defendendo a criminalização de movimentos como os sem-terra ou os
sem-teto, ou acusando de terroristas movimentos de pertencimento étnico que
defendem a devolução de terras públicas à famílias indígenas ou quilombolas. No
Peru, o problema não é ser contrário ao MOVADEF, mas sim como lidar na
institucionalidade com movimentos que reacendem velhas polêmicas.
O governo peruano tem resistência em combater o
MOVADEF, até porque não há a necessidade de colocar na ilegalidade um movimento
que sequer ganhou status legal. O procurador-geral do governo do Peru salientou
que o MOVADEF é um grupo informal, formado por professores e estudantes de
universidade que consideram Abimael Guzman um “grande filósofo”, e que
consideram que sua condição carcerária atual é desnecessária ou extrema. Independentemente
do que pensam os militantes do movimento e se é certo ou errado o que eles defendem, a verdade é
que o MOVADEF, ao menos no momento, é uma espécie de senderismo desarmado, onde
seus integrantes chocam parte da sociedade peruana, muito mais por suas ideias
do que por suas ações. Será que isso é tão perigoso para a democracia e para o
Estado de Direito?
Em seu editorial, publicado em 10 de novembro de
2012, o jornal El Comercio afirmou
que MOVADEF e democracia são termos antinômicos. Tais grupos deveriam ser
combatidos, assim como os movimentos de neonazistas ou movimentos totalitários
de inspiração fascista, por serem antidemocráticos. Não poderiam ser admitidos
na democracia, onde prevalece a regra de obtenção de apoio da maioria através
do voto, onde grupos que defendem a subjugação do outro por meio do tolhimento de
direitos, limitando ou eliminando, inclusive, a liberdade de uns em detrimento
de outros, podem chegar ao poder somente porque foram eleitos pelo voto. Desta forma, não poderia ser
legítimo, eleger “democraticamente” representantes de um movimento, partido ou
governante que, após eleitos, restaurassem a escravidão, mandassem aqueles que
pensam ou são diferentes para um campo de concentração ou então eliminassem a
liberdade de expressão, cumprindo com as promessas contidas em seu programa
partidário. Tal argumento busca derrubar a tese do governo peruano de dialogar
com o MOVADEF, desde que esse grupo aceite participar do jogo democrático e
renuncie a sua ideologia que prega, dentre outras coisas, a luta armada. É um
argumento, aparentemente, difícil de contestar.
Guzmán no tribunal,em última de suas aparições públicas. |
Entretanto, se eu penso num regime constitucional
essencialmente democrático, que eu também devo conceber, no âmbito da liberdade de
expressão como direito fundamental, a possibilidade de grupos que apresentam
um discurso antidemocrático e até mesmo violento, de terem espaço no debate, no Brasil a experiência
dos últimos vinte anos de democracia demonstrou ser possível a manutenção na
legalidade de partidos de linha trotskista, como o PSTU, que defendem uma
ruptura completa da ordem institucional burguesa, através de processos
revolucionários violentos, como a luta armada, inclusive com a eleição de representantes seus nas últimas eleições municipais. Como impedir que esses grupos ou
legendas existam sem comprometer a democracia que eu tanto defendo? Será que
não voltaríamos a um Estado-policial, sob o pretexto de garantir a segurança
dos cidadãos diante da ameaça de retorno dos prototerroristas?
Entendo que no Peru, assim como no Brasil, e em
qualquer outra nação latino-americana que já passou por dolorosos períodos de
exceção autoritária, a alternativa ao regime democrático atual não é outra, a
não ser o caminho do diálogo. Somente com diálogo será possível estabelecer um
ponto em que, tanto liberais, quanto conservadores, moderados e militantes de
extrema-esquerda possam coabitar o mesmo espaço político, sem que isso
comprometa a manutenção de direitos fundamentais.Acredito que, por mais
equivocados que estejam (e bota equivocados nisso), os militantes
universitários do MOVADEF merecem, sim, ser ouvidos, mesmo que seja o tempo
suficiente para que seus interlocutores digam o quanto eles estão errados.
Trata-se de um processo democrático de convencimento, defendido por filósofos
consagrados na modernidade, como Habermas, que sentiu na pele, o quanto
movimentos políticos antidemocráticos como os nazistas, fizeram desaparecer a
democracia na Alemanha, simplesmente porque, ao chegar ao poder, não
apresentaram o mesmo comprometimento com o texto constitucional, que seus
opositores no debate político. Mas mesmo assim a Nova Direita e saudosos da
nazismo existem na Alemanha de hoje,sem que isso comprometa a firmeza de suas
instituições democráticas, erguidas dos destroços de uma nação reconstruída no
pós-guerra. Se não é bom, que ao menos o MOVADEF possa ser escutado, para
entendermos o quanto eles são ruins. Acredito que, nem por isso, facínoras como
Abimael Guzmán ou Alberto Fujimori sairão tão cedo da prisão. É pagar pra ver!