quarta-feira, 4 de maio de 2011

TERRORISMO: A suposta morte de Bin Laden no Paquistão é um verdadeiro Tratado de Direito Penal do Inimigo Aplicado

Gunther Jakobs é um jurista alemão a quem se atribui o conceito de " Direito Penal do Inimigo ", uma nova corrente do pensamento jurídico-penal, bem consentânea à realidade global pós-11 de setembro. Como se sabe, o atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova York, no começo da década passada, inaugurou definitivamente o século XXI, e com ele a política de "Guerra ao Terror", iniciada no governo norte-americano de George W. Bush. Os conceitos tradicionais de direitos humanos, soberania e guerra justa, trazidos do Iluminismo, passaram a ser revistos pelos Estados Unidos da América, outrora considerado um modelo de democracia para as nações ocidentais, segundo o pensador francês Alex de Tocqueville, em sua clássica obra A Democracia na América.

Essa mesma democracia que permitiu a chegada pela primeira vez na história, de um afrodescendente a comandar a nação mais poderosa do planeta, parece não ter resistido à política bélica de segurança adotada pelo governo norte-americano, e pela sua tradição imperialista, de querer resolver a maior parte dos conflitos pelas armas, quando não consegue pela invasão comercial; uma vez que é sabido que os EUA tem hoje, o maior e mais imbatível efetivo militar do planeta. Veja-se as experiências recentes desse novo século, como a Guerra no Iraque, a manutenção do predomínio militar yankee no Afeganistão, a permanência de presos ilegais, suspeitos de terrorismo, na base militar de Guantánamo, além da atual ação militar contida numa operação secreta, digna dos melhores filmes de ação, onde os SEAL, a tropa de elite dos marines(fuzileiros navais americanos), invadiu um condomínio fechado, na cidade de Abbottabad, no Paquistão, na madrugada da última segunda-feira, e matou supostamente o terrorista Osaba Bin Laden, líder espiritual do grupo terrorista Al Qaeda, autor declarado dos atentados de 11 de setembro, e inimigo número um do povo norte-americano.

Ora, não foi outro governo, senão o norte-americano, que mais seguiu ao pé da letra os ensinamentos da controvertida teoria penal de Jakobs. Pelo Direito Penal do Inimigo, existe uma divisão no tratamento penal entre pessoas e não-pessoas, entre cidadãos e inimigos. Aos primeiros, compete a aplicação das leis penais destinadas a um regular Estado de Direito, com a manutenção de seus direitos fundamentais, como a legalidade da prisão, a presunção da inocência e a garantia de um devido processo legal. Já para aqueles que não são considerados pessoas, dentro de um marco legal que não os reconhece como sujeitos de direitos e sim como inimigos, à margem da legalidade estabelecida, aí vale qualquer coisa (ou no jargão empregado por Jakobs: aplicam-se  as chamadas "medidas de segurança"), inclusive prender sem motivo expresso ou por mera suspeita, torturar e matar. A tese de Jakobs provocou um verdadeiro terremoto no pensamento jurídico ocidental, especialmente entre as correntes garantistas e adeptas da criminologia crítica ou da intervenção penal mínima, por ser considerada uma teoria reaçonária, autoritária e totalmente desprovida de legitimidade, pois elaborada ao arrepio dos mais elementares princípios de direito relativos à dignidadade humana, ao devido processo legal e pelo que se entende por um direito racional.

Entretanto, apesar de não ser nova a teoria (afinal, começou a ser desenvolvida ainda nos anos oitenta do século passado), o Direito Penal do Inimigo de Jakobs encontrou sua materialização efetiva nas ações do governo norte-americano, no combate ao terrorismo. Caiu como uma luva no governo anterior de Bush Junior, a tese de um direito para inimigos, outro para cidadãos, quando foram redigidos os Patriot Acts: uma série de medidas governamentais altamente questionáveis e abusivas, que proibiam entre outras coisas a entrada em solo americano de pessoas de ascendência árabe, ou, na pior das hipóteses, sua detenção para averiguação até que se soubesse quais seriam as "reais intenções" de um saudita, marroquino, palestino ou paquistanês de querer entrar em território norte-americano. A aplicação dessas medidas legais acabou por generalizar um clima de histeria e uma sensação de paranoia coletiva, motivada por um sentimento geral de insegurança que tomou conta da sociedade norte-americana, após os atentados de 11 de setembro. Afinal, na Guerra Contra o Terror os inimigos eram invisíveis e não inimigos declarados. Um terrorista com suas bombas poderia estar em qualquer lugar, nos aeroportos, nas escolas, nas paradas de ônibus ou estações de metrô, nos locais de trabalho, ou poderia até ser o seu vizinho. Nesse clima de alarma que suscitou políticas punitivas de emergência, a doutrina de Jakobs encaixou-se perfeitamente.

Agora o que se vê nas últimas notícias relatadas sobre a morte de Osama Bin Laden, após mais de dez anos de perseguição ininterrupta pelas forças de segurança norte-americanas, é que a operação montada para localizar o terrorista árabe tinha a função, desde o início, de matá-lo. Não se pretendia prender alguém e levá-lo a julgamento, como se fez após a Guerra do Iraque, com a prisão de Saddam Hussein e seu julgamento por um tribunal local, quando foi condenado à morte por enforcamento, à vista dos canais de TV de todo o mundo. A ação militar que resultou na aniquilação do terrorista teve os requintes de uma execução por fuzilamento, tudo sob a autorização e supervisão dos olhos atentos do presidente Obama, que tudo viu e a tudo chancelou, para seus eleitores atônitos e já desacreditados de seu presidente, que agora voltam a entoar o coro em praça pública: Yes, We can! Para recobrar sua popularidade, Obama autorizou uma execução ao vivo,  às custas do sacrifício de direitos fundamentais a qualquer ser humano acusado de crimes. Obama não tolerou Osama!  Não permitiu que o líder da Al Qaeda sequer fosse preso e tivesse um julgamento justo. O que interessava para os norte-americanos era simplesmente sangue, de preferência muito, mas muito sangue. E no sentimento de vingança real que assolou uma nação inteira depois da infâmia de serem atacados em 2001, no seu próprio solo (coisa que não se via desde Pearl Harbor), o presidente Barack Obama acabou por referendar a mais polêmica das teorias atualmente veiculadas nos círculos penais. Obama acabou estudando pela cartilha de Jakobs, assim como seu antecessor fez, na Casa Branca. Agora, o que resta a milhares de prisioneiros, ainda detidos irregularmente em Guantánamo, é a sorte de não serem aniquilados como Bin Laden foi, porque se correrem o risco de serem pegos desprotegidos em suas casas, podem ter o mesmo fim de terminarem a noite crivado de balas, junto com seus familiares, seguranças ou assessores, como ocorreu com Osama Bin Laden.

Resta comprovado nos meios de comunicação, que o serviço de inteligência norte-americano valeu-se da tortura para obter a localização de Bin Laden, assim como empregou inteiramente o meio militar, como forma não apenas de imobilizar seu inimigo, como de também destruí-lo. Sabe-se, pelos relatos enviados até agora, que Osama estava desarmado quando foi morto, e que até teria utilizado (para júbilo daqueles que enaltecem a covardia do terrorista nos jornais) de uma de suas mulheres como escudo humano, inútil diante dos projéteis de grosso calibre, disparados à exaustão pelos fuzis militares norte-americanos. A ação militar que resultou na morte de Bin Laden contrariou os dispositivos da Convenção de Genebra, que disciplinam o uso da força contra inimigos derrotados e desarmados, e apenas realçou os aspectos mais frios e mal lidos da teoria do jurista e diplomata holandês Hugo Grotius, quando escreveu no século XVII, sua célebre obra De Juri Belle ec Pacis (Do Direito da Guerra e da Paz), que trabalhou na formação dos acordos de paz, como alternativa à Guerra dos 30 Anos, e que estabeleceu as bases do direito internacional moderno. Se a guerra é legítima, como instrumento de autodefesa das nações, então se deve empregar meios legítimos para combater a violência do inimigo, mas isso não envolve a violação da soberania de um país aliado (como a invasão das forças norte-americanas, com total desconhecimento do governo do Paquistão), o emprego da tortura contra civis e a execução sumária de autores de crimes contra a humanidade, sem ao menos terem sido submetidos a julgamento por um júri local ou por um tribunal internacional. Inclusive, ao jogar o corpo de Bin Laden no mar, como noticiaram as agências de comunicação norte-americanas, o governo dos EUA agiu como o governo argentino, na época da ditadura militar do século passado, quando se fazia o mesmo com os opositores do regime. Para os inimigos, não se admite nem um enterro decente!

É óbvio que Osama Bin Laden era um monstro. Mas num Estado Constitucional de Direito, dentro da racionalidade construída na formação do Estado moderno e na gênese das democracias, até os monstros merecer ser julgados. Foi assim com os criminosos de guerra nazistas em Nuremberg, e assim se procedeu com grandes e famosos genocidas, como Slobodan Milosevic, da Sérvia, os tiranos de governos africanos e os algozes militares das ditaduras latino-americanas, como na Argentina e no Chile. O Direito Penal moderno surge exatamente como uma das alternativas desse Estado moderno, como a ultima ratio de medidas punitivas que tem que ser adotadas, a fim de garantir a tutela de bens jurídicos inquestionáveis, como a vida, a liberdade e a dignidade das pessoas. A segurança é muito mais uma garantia constitucional do direito de liberdade, mas segurança só pode ser efetivada se normas penais tiverem eficácia, e sua eficácia deriva de sua legitimidade. Como dizer que são legítimas práticas punitivas baseadas na eliminação imediata de seres humanos, por mais perversos que sejam, se não é lhe dado o direito sequer de serem ouvidos num tribunal? Mesmo que seja um tribunal que não reconheçam, por conta de seu fanatismo, extremismo ou de uma visão louca e totalmente distorcida do mundo, como tinha Bin Laden, é fato que, sem dúvida, terroristas devem ser presos, julgados e punidos, na forma do direito interno de cada país ou conforme os tratados internacionais. Eles não podem simplesmente ser assassinados, por forças de segurança de uma nação que sabe que é poderosa, e não teme impor a força se for para satisfazer seu sanguinário sentimento de vingança ( o governo de Israel costuma, comumente fazer isso, e quase sempre se dá muito mal!).

Que fiquem  sempre gravadas na memória dos interessados nos temas do direito penal, as cenas cinematográficas da intervenção miltar norte-americana, no Paquistão, que restou na morte do procurado terrorista  Osama Bin Laden, mas que também fique registrado a completa lição de antidireito, que foi dada pelo governo de Obama. A experiência vivida nos últimos dias, com a catarse coletiva nas ruas norte-americanas, em frente a Casa Branca, só funcionaram muito mais como moeda de troca eleitoral na previsível política demagógica norte-americana, do que como uma efetiva ação de combate ao terrorismo e de minimização da violência extremista exercida por alguns grupos paramilitares, no mundo globalizado em que vivemos. Dentro da política errante do governo de Barack Obama, foi um achado e ganho político ter encontrado e matado Bin Laden, satisfazendo o sentimento de vingança de milhares, fazendo o que seu antecessor republicano não fez em oito anos de mandato; mas, do ponto de vista jurídico e sociológico, foi mais uma ação truculenta de uma nação que se considera dona do mundo, mas com um sistema de segurança altamente fragilizado e desprovido de legitimidade global, e que só sabe resolver seus piores conflitos da forma mais fácil que uma nação imperialista sabe resolver: pela força. Osama Bin Laden é apenas o troféu passageiro de um combate que não dá os mínimos sinais de que irá terminar, e que, ao contrário, nos leva a crer que a teoria de Jakobs, assim como novas e sucessivas ações terroristas, com sua reação bélica por conta das nações poderosas, ainda irá cultivar muitos cadáveres, tiros e explosões por aí, à custa da destruição do Estado Democrático do Direito, dos direitos fundamentais e das liberdades conquistadas a tanto custo, pelo preço pago por tantos que deram seu sangue por um mundo melhor, em processos revolucionários historicamente anteriores. Isso é muito preocupante!!

3 comentários:

  1. Valeu pela dica do blog. Já adicionado no Favoritos. Façamos um saudável intercâmbio entre nossos blogs, como meios de comunicação alternativos, para propagar interessantes discussões sobre segurança pública e ciências criminais. Abração!

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  2. Concordo.Mas no texto existe um erro grosseiro! Hugo Grotius com sua obra acima citada, colaborou para o final da Guerra dos Trinta anos e não na Guerra dos Cem anos que terminou em 1453.Grotius nasceu em 1583. O desconhecimento histórico é gritante!

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  3. Obrigado pelo ajuste histórico, nobre Quartier. O erro já foi corrigido. Seja sempre bem vindo ao blog.

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