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Com o ministro Marco Aurélio, a decisão
sempre será revestida de polêmica.
(retirado de blogdocatete.blogspot.com) |
Acompanhei recentemente a liminar concedida pelo ministro do STF, Marco Aurélio de Melo, limitando a competência o Conselho Nacional de Justiça-CNJ, de investigar juízes, envolvidos em processos administrativos, reduzindo as atribuições daquele órgão. A decisão monocrática do ministro deu-se no meio de uma intensa polêmica, propagada pelos meios de comunicação, após uma declaração da atual Corregedora Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon, dizendo que as tentativas da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) de reduzir as atribuições do CNJ por meio de uma ação judicial perante o Supremo, visavam impedir a atuação do Conselho no combate a "bandidos de toga", escondidos dentro do Judiciário brasileiro. Agora em 2012, no mês de fevereiro, após o período de recesso, o mérito da ação deverá ser julgado pelo plenário da suprema corte brasileira, mas os efeitos da liminar concedida por Marco Aurélio prevalecem até o presente momento.
Criado oficialmente pela Reforma do Judiciário, em 2005, o Conselho Nacional de Justiça foi introduzido na estrutura da Justiça brasileira a partir da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, introduzindo no texto constitucional o artigo 103-B, tratando da composição, atribuições e competências do Conselho. O Regimento Interno do CNJ estabelece, dentre outras funções, em seu art. 4º, que compete ao plenário do Conselho o controle da atividade financeira e administrativa do Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados. Para isso, segundo os incisos II e III do citado artigo, o Conselho pode receber reclamações contra membros do Judiciário, bem como pode avocar, se entender ser conveniente, processos disciplinares contra juízes que já se encontram em curso. Além disso, segundo o inciso IV, o Corregedor Nacional de Justiça pode propor correições, inspeções e sindicâncias em varas, tribunais, serventias judiciais e cartórios em todo o Brasil, tudo com o objetivo de promover a observância do art. 37 da Constituição Federal, bem como zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura e pela autonomia do Poder Judiciário.
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O CNJ em uma de suas várias sessões,
combatendo o banditismo dentro da magistratura.
(retirado de g1.globo.com) |
Segundo a Constituição Federal, o CNJ é composto por 15 (quinze) membros, sendo que destes, nove são egressos das diversas instâncias e órgãos comuns e especializados da magistratura nacional, dois são oriundos do Ministério Público, dois são advogados e mais dois são cidadãos comuns, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. É, portanto, um órgão formado em sua maioria por magistrados; mas que conta com a participação de demais pessoas da sociedade, sendo diferente das corregedorias internas de cada tribunal, com viés altamente corporativo. Para se ter uma ideia, se as Corregedorias das Polícias são criticadas pelo seu alto corporativismo, muitas vezes arquivando processos admininistrativos que são movidos contra ações abusivas praticadas por seus integrantes, o que dizer do corporativismo entre os integrantes do Judiciário, uma corporação altamente elitista, fechada e tradicionalista, que se gaba de se valer de um processo de admissão de magistrados severamente rigoroso e intelectualmente difícil, como forma de declarar que seus integrantes compõem a fina flor de uma sociedade de letrados e moralmente bem posicionados cidadãos, formados em direito, que por isso mesmo gozam de uma fé pública amparada em seu forte prestígio social? Como investigar esses "cidadãos de bem"? Entre o interesse público e o interesse corporativo, em diversas corregedorias espalhadas Brasil afora, nos tribunais do país, prevalece a defesa da corporação.
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Para Tóffoli, a atuação do CNJ
é legítima.
(retirado de g1.globo.com) |
E é por interesse corporativo que se entende a recente ação promovida pela AMB, com vistas a reduzir a atuação do Conselho, uma vez que reclamam seus integrantes que o CNJ só teria competência de lidar com processos disciplinares de magistrados já julgados pelas corregedorias dos tribunais locais, e não atuando concorrentemente com esses órgãos. Em recente entrevista publicada na Revista Época, o mais jovem ministro do Supremo, José Dias Tóffoli, já adiantou o seu voto na futura questão que será resolvida pelo STF, no julgamento do mérito da ação promovida pela AMB, dizendo que a atuação do CNJ nas instâncias inferiores do Judiciário nacional, inibia o poder das elites locais, com suas interferências na atividade do Judiciário, combatendo os desmandos, ilegalidades ou mesmo a corrupção de alguns de seus membros. Percebe-se, em síntese, que dentro do próprio Judiciário brasileiro, existem posicionamentos variados quanto à devida atuação do CNJ, e a AMB, por ser um órgão corporativo, naturalmente age segundo os interesses corporativos de seus integrantes, e não visando uma democratização maior do Poder Judiciário, com sua abertura para a socieadade, através do controle da conduta de seus membros por órgãos externos, exteriores à vontade e interesses dos integrantes de uma instituição monolítica e clausurada, como a magistratura.
Os magistrados brasileiros tem, ao menos, três prerrogativas constitucionais: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Como diria o personagem das histórias em quadrinhos, do "tio Ben", parente de Peter Parker, alterego do Homem-Aranha: "grandes poderes levam a grandes responsabilidades". As prerrogativas constitucionais da magistratura devem ser tidas como fonte de grandes responsabilidades e não devem ser confundidas com privilégios. Pela função seríssima que desempenham, os magistrados brasileiros devem ter toda a liberdade de consciência para julgar, e a independência no exercício de suas funções, para não se deixarem intimidar pelo poder político. Entretanto, pela visibilidade e caráter público de sua função, o nobre e eminente ato de julgar deve ser provido de total transparência, sujeito, numa sociedade democrática, ao controle da sociedade. Entretanto, historicamente falando, o Judiciário brasileiro acostumou-se a ser formado por uma categoria de "notáveis", de amigos do rei, que em tempos republicanos de fundação do moderno Estado brasileiro, acabaram por formar uma corporação monolítica, fechada, letrada e autoritária.
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Ruy Barbosa: um dos grandes representan-
tes do bacharelismo nacional
(retirado de gerivaldoneiva.com) |
Chama-se de "bacharelismo" o movimento iniciado durante o predomínio da Corte Portuguesa no Brasil até o surgimento do Império e posteriormente o advento da República, marcado, principalmente, pelo sentimento de certos bacharéis em Direito, de pertencer a uma casta ou estamento específico, diferenciados do restante da população. O bacharel em Direito se via como um ser diferenciado, assim como os indicados pela realeza para assumir postos-chave dentro da magistratura, indicados pela rei ou pela aristocracia dominante, para representar os interesses da Coroa nos tribunais locais. Assim, nasceram os interventores, desembargadores e juízes de fora ou de paz e os protagonistas da cena judicial da província no Brasil Império. Durante a República, prevaleceu a tendência de manter a magistratura como uma categoria isolada do restante da população, formada por um segmento inicialmente formado de indivíduos nomeados para o cargo, e, posteriormente, investidos na função judicante através de concurso público. De qualquer forma, é da tradição jurídica brasileira receber na corporação dos juízes nomes egressos de famílias de magistrados, filhos e netos de desembargadores ou presidentes de tribunais, jovens recrutados em nobres famílias abastadas ou de classe média alta, que após um exaustivo e rigoroso processo seletivo, conseguiram galgar a posição de juiz de direito, passando a vestir uma toga como símbolo de status social.
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Dworkin: um dos grandes jusfilósofos,
em língua inglesa, já considerava que os juízes
atuavam como monarcas do Direito.
(retirado de guardian.co.uk) |
Assim, se os promotores, outrora, eram considerados os "príncipes do Direito", os juízes são os seus monarcas. O jusfilósofo norte-americano Richard Dworkin, em sua obra
O Império do Direito chega a identificar o direito como um palácio, onde o juiz figura como uma espécie de rei, agindo na proteção de seu reino; ou seja, lutando pela manutenção e defesa do Direito. Apesar das belas e poéticas palavras de Dworkin, o problema é que, no caso de países de modernidade tardia como o Brasil, onde ainda enfrentamos sérios desafios culturais para o nosso desenvolvimento enquanto nação, a cultura do "você sabe com quem está falando", já detectada pelo antropólogo carioca Roberto Da Matta em seu célebre livro:
Carnavais, Malandros e Heróis, parece vigorar no Judiciário brasileiro a todo vapor, transformando o reinado dos juízes pelo Direito numa autêntica tirania. Como explicar casos de vendas de sentenças, de favorecimento ilícito de determinados grupos ou indivíduos por conta da atuação isolada de alguns representantes da magistratura, ou ainda os casos de nepotismo e fisiologismo dentro do Judiciário, tão amplamente combatidos pelo CNJ? Assim como os demais Poderes da República, o Judiciário não está imune a críticas e intervenções da sociedade, desvelando sua Caixa de Pandora, através das denúncias de corrupção, clientelismo e tráfico de influência que acontece nos subterrâneos dos tribunais. É para isto que foram criados órgãos como o CNJ, é para isso que a sociedade se mobilizou, através de uma Constituição supostamente cidadã, compromissária e dirigente, para que todos os poderes do Estado fossem subordinados ao texto constitucional, assim como são os cidadãos. Não pode o Judiciário brasileiro, através de seus juízes, adotar um comportamento aristocrático de representantes de uma elite intocável, que só podem ser investigados por seus próprios pares, dentro do espírito de camaradagem de classe ou corporativismo. Assim como os demais cidadãos, os juízes também tem que ter sua conduta avaliada através de um órgão formado não apenas por magistrados, mas também pelos demais representantes da sociedade civil.
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Livro: "O Povo Brasileiro", de Darcy Ribeiro.
Até hoje, uma das melhores obras para se
entender as vilanias do patronato nacional,
na sua cultura de elite
(retirado de submarino.com) |
O Brasil ainda convive com a cultura de um poder monárquico, ao menos no Judiciário brasileiro. A criação do CNJ serviu para trazer uma dimensão mais moderna e republicana à Justiça Brasileira, ao menos em seus propósitos institucionais; da forma como deve ser e como é, em muitas nações desenvolvidas, onde o Poder Judiciário (assim como os outros poderes) é subordinado aos interesses da sociedade e não aos interesse de uma monolítica corporação. Magistrados são servidores públicos, pagos pelo erário, subordinados ao povo, e não senhores inatingíveis do alto de suas togas. Consigo identificar bem a postura de magistrados que são alinhados com um perfil monárquico, de uma cultura jurídica atrasada e elitista, ao confrontar um deles na fila de supermercado; enquanto que outro, ao se ver numa situação em que tem se colocar no lugar do cidadão comum, como na ida a uma delegacia para registrar uma simples perda de documentos, prefere ficar aguardando no seu lugar na fila ao invés de passar na frente com uma carteirada; por entender que ele também faz parte do povo, e fora de suas funções ele tem que se equiparar aos seus semelhantes, pois o magistrado democrático e republicano não se vale do argumento "você sabe com quem está falando?", típico da cultura das elites no Brasil, também chamadas de"patronato", como bem denunciam brilhantes antropólogos da intelectualidade nacional, como Darcy Ribeiro ou o citado Roberto Da Matta.
Recordo que logo que foi criado o CNJ, um colega professor, que também era juiz, daqueles que trabalhavam comigo como professores numa das faculdades de direito em que eu lecionava, dizia que a criação daquele órgão era uma afronta ao Poder Judiciário ou as garantias conferidas à magistratura; dentre elas as prerrogativas que eu já enunciei acima. Peraí!! Prerrogativas ou privilégios? Como já disse, a atribuição de prerrogativas constitucionais implica em muita, mas muita responsabilidade. Os juízes são responsáveis por sua conduta não somente perante a si, mas perante ao povo, ao interesse público que permitiu o regime da Lei e do Direito e que levou todo um contingente de homens e mulheres a passar em um concurso público, e exercer a mais que digna função de juiz. Nesse sentido, a atuação do CNJ é mais do que necessária, é fundamental, para que não tenhamos um Judiciário intolerante, enclausurado nas suas majestosas torres de marfim, acima da Lei e de todos e não subordinado a uma Constituição. Se o CNJ é constitucional, pois sua criação deriva de uma emenda constitucional, então que seja constitucional a tarefa do órgão de intervir em todas as esferas do Judiciário para combater a corrupção e os abusos de seus integrantes, para preservar o Estado Democrático de Direito, e não para manter uma elite de burocratas a salvo da ação da Lei, num oásis de impunidade. Em fevereiro, a decisão do STF será fundamental para definir que Judiciário nos teremos e queremos neste ano de 2012 e nas décadas vindouras. Magistratura democrática, sim! Juizite corporativa, não! Em defesa do CNJ!