quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DESASTRE NAVAL: "Vada a Bordo!".A culpabilidade do capitão Schettino e o crime culposo, no naufrágio do navio Costa Concordia na Itália.


O Costa Concordia antes do naufrágio. Um navio imponente,
mas que não resistiu às pedras e à irresponsabilidade de
seu capitão (retirado de ancoraemar.com.br)
 Um cruzeiro marítimo no mar Mediterrâneo deve ser uma das experiências mais lindas e românticas, ao se encontrar na condição de passageiro em algum luxuoso transatlântico, com muita festa, comida, bebida, piscinas, quadras de esporte e salões estilizados, música ao vivo e uma pista de dança gigante, onde os convivas podem comemorar datas importantes (casamentos ou a renovação de votos em casamentos antigos, nascimento de filhos, algum prêmio obtido na loteria, o recebimento de uma indenização, o presente por ter se formado e obtido um diploma, um intervalo numa excursão de intercâmbio, ou simplesmente celebrar as merecidas férias). Sim! Guardo comigo o sonho consumista de algum belo dia desembolsar alguns mil reais para pagar uma diversão dessas, tipicamente burguesa (e para alguns, cafona) de cruzar os mares a bordo de um navio. Afinal, sou filho de marinheiro, e o mar, assim como os barcos que navegam sobre ele, ainda me exerce um pleno fascínio e encantamento.


O navio já submerso após o choque contra as pedras que
circundam a Ilha de Giglio. (retirado de veja.abril.com.br)
 Entretanto, para os passageiros e tripulantes do navio italino Costa Concordia, parece que o encanto mágico da viagem dos sonhos foi quebrado repentinamente, após apenas um dia que o gigante transatlântico atravessou o Mediterrâneo, ao colidir contra rochas, nas proximidades da Ilha de Giglio, no litoral da Toscana. Parecia um trecho do filme Titanic, mas sem os personagens da atriz Kate Winslet e do ator Leonardo Di Caprio. As cenas são impressionantes: um navio gigantesco submerso pela metade, com uma rocha imensa crava em seu casco, do outro lado, parecendo um gigante abatido, um mastodonte de aço, vitimado pela fanfarrocine e irresponsabilidade.


O capitão Schettino em uma foto do Facebook. Talento na
pilotagem de um dos maiores navios de turismo da Europa, mas
um ego tão grande quanto a embarcação que naufragou.

Por falar em vítimas, estimam em 13, por enquanto, as perdas fatais do Costa Concordia. A isso soma-se o prejuízo dos passageiros sobreviventes, que vivendo horas de terror devido a falta de orientação para o naufrágio e a celeuma que se seguiu entre tripulação e passageiros no apinhado convés do navio naufragado, perderam todos os seus pertences. O grande responsável? A mídia italiana e mundial só aponta para um culpado: o capitão do navio, Francesco Schettino.




Será que foi essa bela secretária da Moldávia a razão do
naufrágio do Costa Concordia, ou a fanfarronice e
exibicionismo do capitão do navio, querendo se mostrar para a
ragazza? (retirado de veja.abril.com.br)
 Schettino, um bronzeado e boa pinta senhor de meia idade, casado e pai de uma filha, com vasta cabelereira, meio  no estilo mullet dos anos oitenta, parece mais um cantor de música brega do que um capitão de navio. Mas mesmo assim, seu estilo fanfarrão fez muito sucesso na empresa onde trabalhava, a Costa Cruzeiros, apresentando a tripulação em festas e realizando até casamentos dentro do navio, num dos cruzeiros marítimos mais disputados da Europa. Talvez pela fama de bom piloto, as adulações constantes e o apoio de metade da população da ilha de Giglio, onde nasceu, fizeram com que o capitão italiano cedesse à vaidade, e, acompanhado de uma bela moça da Moldávia, na cabine do piloto (muito provavelmente para tentar impressioná-la), Schettino ignorou todas as regras náuticas básicas, desligou o piloto automático do navio, e operando por joystick, decidiu se aproximar da ilha mais do que deveria (cerca de 4 Km da trajetória original), aproximando-se mais e perigosamente do local cercado de rochas, sob o pretexto de saudar os moradores de ilha, indo de encontro diretamente a um conjunto de gigantescas pedras de granito, que destruíram o casco do Costa Concordia, fazendo com que o navio naufragasse.


Detido pela polícia italiana. Schettino é escoltado por policiais
para prestar depoimento à autoridade policial.
 Preso preventivamente em prisão domiciliar por determinação da Justiça italiana, Schettino aguardará o resultado das investigações da polícia acerca do naugráfio; mas, independente da condenação judicial, o capitão italiano já foi condenado pela maioria da opinião pública mundial. É quase certo que ele responda completamente pelas danos e mortes causados, mesmo que não tivesse a mínima intenção de prejudicar ninguém. Afinal, Schettino gostava de aparecer bem nas fotos de turistas e de seus tripulantes, como um rock star do Mediterrâneo, com seu navio de última geração. O orgulhoso capitão só queria agradar a uma bela loira da Moldávia, encantada com as proezas do "senhor dos 7 mares" da Ilha de Giglio. Porém, a façanha poderá custar muito caro para o experiente capitão, que responderá por homicídio devido a sua negligência. Por conta de sua insensatez, Schettino poderá perder não apenas o emprego e a reputação, mas também a liberdade, se for devidamente condenado.


O Costa Concordia submerso. Imagens impressionantes,
causadas por uma conduta imprudente que
 se tornou criminosa
(retirado de mtagora.com.br)
Sabemos que, na literatura penal, nos crimes culposos a culpabilidade não é fixada na intenção pré-ordenada de, conscientemente, se fazer algo para produzir um resultado danoso, mas sim na vontade descuidada; ou seja, numa vontade que não observou o que deveria observar, face a previsibilidade de um resultado. Na inobservância do dever de cuidado que fundamenta a culpa, podem surgir suas diversas modalidades, como a imprudência, a imperícia e a negligência. No caso de Schettino, o capitão italiano agiu de forma imprudente ao deixar de tomar os cuidados que todo navegante teria de tomar ao se aproximar da superfície acidentada, que circunda a Ilha de Giglio, fazendo exatamente o contrário, agindo sem cuidado. As rochas onde o Costa Concordia naufragou já estão lá e são conhecidas pelos navegantes há centenas de anos, e mesmo sabedor de isso, Schettino  recusou orientação das cartas náuticas e mesmo do sonar do piloto automático do navio e preferiu conduzir a embarcação sozinho, agindo sem o dever de cuidado, cometendo uma conduta que inicialmente parecia lícita, mas acabou se tornando criminosa, pelos resultados danosos que  produziu. Certamente, não apenas no ordenamento jurídico brasileiro (se o caso tivesse acontecido aqui) mas no sistema jurídico italiano, condutas como a de Schettino deveriam ( e serão) seriamente punidas. O capitão do navio naufragado tem pouco a explicar com a coleção de provas materiais que foram, exaustivamente divulgadas contra ele pela imprensa mundial. Além disso, desobedecendo as regras naúticas e o regulamento das autoridades portuárias da Itália, Schettino também descumpriu gravemente uma norma administrativa importantíssima: a de que o capitão é o último a abandonar o navio. Pelo que se soube, Schettino foi um dos primeiros a sair da embarcação, aturdido em cima de um bote, enquanto que parte de sua tripulação permanecia dentro do navio naufragado, tão desesperada e perdida quanto os abalados passageiros, que esperavam que, com seus conhecimentos dos procedimentos de emergência, o capitão pudesse orientá-los a como sair do navio que estava afundando.


A vista do Costa Concordia por satélite, no mapa da península
italiana espanta, pelo tamanho do estrago
 (retirado de colunas.revistaepoca.com.br)
 Como numa novela italiana, onde temos a imagem do vilão e do mocinho, na peça trágica que foi o naufrágio do transatlãntico da empresa Costa Cruzeiros, o vilão já foi conhecido como o covarde Schettino, enquanto que a figura do herói restou firmada na figura do comandante da Capitania dos Portos, Gregorio De Falco, que, mostrando-se um fiel seguidor das normas de segurança naútica e demonstrando que o cumprimento de normas não é uma mera atividade mecânica (mas sim algo que tem sua importância na hora de salvar vidas), deu uma aula de ética naval e de compromisso cívico. De Falco foi o personagem da semana no mundo, ao advertir por rádio o capitão italiano das consequêcia de seu gesto impensado e de sua inércia em socorrer as vítimas do naufrágio ao abandonar o navio, ordenando (sem sucesso) que o acovardado capitão voltasse ao navio. De Falco denunciou para os que o ouviam, entre gritos e palavrões revelados nas televisões do mundo inteiro, o quanto a outrora  arrogância do capitão Schettino acabou por se transformou em covardia; enquanto o indignado comandante da Capitania dos Portos reinava absoluto como único herói de um trágico naufrágio, totalmente ocorrido por obra da irresponsabilidade humana.


Gregorio de Falco, comandante da Capitania dos Portos
na Itália: o comandante deu uma aula de conduta cívica
ao repreender o famigerado capitão Schettino
(retirado de semanaonline.com.br)
 Recusando-se a ser chamado de heroi pelos repórteres que tentaram entrevistá-lo sem sucesso, De Falco foi curto nas palavras, e limitou-se a proferir uma frase que parece jargão de todo bom funcionário público, mas que num Estado de Direito ainda é importante ser ouvida pelos agentes públicos: " eu só cumpri com o meu dever". Pois foi na frase que acabou virando slogan de camisetas usadas pelos jovens italianos, que o comandante da Capitania dos Portos mostrou que uma Itália recentemente livre de um Berlusconi no governo, ainda pode ser vista como uma pátria de cidadãos defensores do Direito e da Justiça, em prol dos interesses dos mais necessitados e de quem pede socorro e não dos interesses particulares de arrogantes, que só querem se exibir na direção de um navio. Schettino,assim como Berlusconi, são dois fanfarrões loucos por um "rabo de saia", que, agora, cada um a seu modo, sofrem para sofrer os efeitos da lei italiana, por não terem cumprido seus deveres (um, de conduzir uma nação, o outro, de pilotar um navio). É cumprindo nossos deveres zelosos, vendo a sublime arte de comandar um navio como uma intensa responsabilidade e não como uma brincadeira, é que podemos fazer com que nossos "navios" não venham a naufragar, e não sejamos nós os responsáveis por crimes culposamente realizados por nossa falta de cuidado, fruto de nossa irresponsabilidade ou covardia. No caso de Francesco Schettino, a falta de cuidado lhe custou muito caro!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

QUESTÕES CRIMINOLÓGICAS: As razões da atitude do atirador paranoico em São Paulo.


 No filme Um Dia de Fúria (Falling Down, no original, de 1993), do diretor norte-americano, Joel Schumacher, o funcionário desempregado William Foster ( personagem interpretado pelo ator Michel Douglas), tornou o filme antológico, por retratar o dia de um cidadão comum, que sujeito ao stress cotidiano da grande cidade, surta, até sair do carro, no meio de um congestionamento, joga a maleta fora, afrouxa o nó da gravata, e, armado de um fuzil, e um colete à  prova de balas, aterroriza a  metrópole onde vivia, descarregando no meio urbano todas as suas  angústias e frustrações. Era a expressão cinematográfica da teoria da anomia, iniciada no século XIX pelo sociólogo francês, Emile Durkheim, e atualizada no século XX, pelo pesquisador norte-americano Robert Merton. Pela anomia, procura-se explicar os desvios de conduta como resultante de males sociais; ou seja, o mal não é originado somente do indivíduo que pratica algo reprovável (como um delito), mas sim da própria sociedade. O crime resultaria de males sociais que seriam criminógenos, e não do criminoso em si, contrariando a antiga criminologia positivista, de linha lombrosiana, que atribuía ao crime um mal tão somente individual, personificado na pessoa do criminoso.

Na teoria desenvolvida por Durkheim e Merton, os indivíduos que praticariam delitos poderiam ser fruto de um desajuste social. Desajuste esse que seria atríbuído a diversos fatores, todos relacionados com o meio externo, caracterizados pela inaptidão de certos indivíduos a se ajustar a determinadas regras sociais. Essa inaptidão poderia se traduzir num simples sentimento de revolta, como também numa completa apatia quanto ao ambiente social (o comportamento de certos usuários de drogas poderia possuir essa característica), além de condutas voltadas propriamente para o crime, como no caso dos "inovadores", que na teoria de Merton seriam aqueles que inovariam, de forma ilícita, nas formas de busca pela ascensão social, seguindo um caminho contrário ao que determina a lei, praticando crimes. Entretanto, o que mais caracteriza, a meu ver, a teoria da anomia no século XX é a existência de pessoas que simplesmente "piram" diante de uma determinada realidade de pressão social, num ambiente confuso, extremamente veloz, altamente mutável da cidade grande, onde determinadas pessoas simplesmente perdem o ritmo, a ponto de praticaram condutas inusitadas, que vão de encontro a todas as manifestações ditas "normais", de certos padrões da sociedade. Nesse sentido, os loucos ou desajustados de Lombroso seriam os indivíduos anômicos da teoria de Durkheim. Em síntese, um comportamento anômico seria aquele desprovido de harmonia social; pois, na abordagem eminentemente funcionalista dessas teorias, tais indivíduos não estariam correspondendo a sua função social, não estariam agindo conforme as diretrizes sociais.


Michel Costa: o criminoso alucinado da movimentada semana
onde os paulistas viram cenas cinematográficas de pura adrenalina
e desespero (retirado de veja.abril.com.br)
 Nem precisa dizer o quanto essas teorias puderam ser usadas por uma política criminal conservadora ou dentro da perspectiva individualista da sociologia criminal liberal dos norte-americanos, de ver o criminoso como um desajustado, quase um demente que não conseguiu se adaptar ao sonho do american way of life, adquirindo um emprego que foi feito para ele, ganhando dinheiro e pagando seus impostos regularmente sem pestanejar, adequando-se ao "nosso belo quadro social", como diz a música de Raul Seixas, constituindo casa, família, cachorro, gato e passarinho. Apesar de ter um certo traço reaçonário de querer moldar qualquer um aos ditames da sociedade, visto sua visão eminentemente coletivista e massificadora (principalmente nos moldes da sociedade capitalista), as teorias de Durkheim e Merton serviram ao menos para detectar, e, quem sabe, explicar, certos comportamentos que de vez ocorrem no dia a dia de uma cidade, principalmente nos grandes centros urbanos, que parece destoar um pouco daquela criminalidade tradicional de roubos e furtos que estamos acostumados no dia a dia de uma sociedade dividida entre  ricos e pobres. A sucessão de crimes, praticados em concurso material pelo administrador de empresas e artista plástico Michel Goldfarb Costa, na última semana, em São Paulo, podem, para alguns, revelar traços de uma conduta analisada pela teoria da anomia, e que tem muita relação com o comportamento do personagem de Michael Douglas, no filme de Schumacher.

Michel não tinha antecedentes criminais. Muito pelo contrário, por seu perfil de classe média alta, o atirador tresloucado e paranoico das avenidas paulistas estava muito mais para vítima do que para criminoso. Pelo seu perfil, Goldfarb Costa parecia mais um daqueles cidadãos brancos, abastados, com formação universitária, que são chamados de "homens de bem" do nosso quadro social, nos entoados discursos da sociedade de classes. Porém, numa segunda-feira, dia 9 de janeiro, num dia em que, na metrópole, os cidadãos paulistanos saem apressadamente de suas casas e apartamentos para ir ao trabalho, as cenas vistas na ruas com a passagem meteórica do administrador de empresas roubando carros e atirando em pessoas, pareciam tiradas de um filme de ação ou terror. Sentindo-se perseguido, e sob o pretexto de achar que se sentia ameaçado pelos vizinhos, Michel Costa saiu alucinado pelas ruas, percorrendo perigosamente quilômetros e mais quilômetros da cidade grande, atravessando a cidade de São Paulo, através de carros roubados a cada esquina, munido de um colete e de uma pistola, provocando colisões, ferindo pessoas e aterrorizando uma urbe já bastante aterrorizada pela violência cotidiana da criminalidade e das mazelas de uma selva de concreto que tem todo um lado escuro a revelar. Será que o surto de Costa deu-se a um comportamento típicamente anômico, explicado pelas ciências sociais? Será que a pressão da megalópole, da cidade grande com suas pressões sociais, foi o bastante para fazer um indivíduo de classe média enlouquecer?


Nas ruas de São Paulo o rastro de paranoia e destruição
provocados pelo administrador de empresas e artista plástico
(retirado de g1.globo.com)
 Já a psiquiatria forense entende que Costa foi vítima de uma enfermidade, de um tipo de distúrbio mental com características esquizóides ou até mesmo esquizófrênicas chamado de paranoia. Michel Goldfarb Costa é um indivíduo paranoico; mas de quantas pessoas paranoicas precisamos para detectar uma sociedade doente? O delegado que apura o caso, após o administrador se entregar e cumprir uma prisão temporária decretada pela Justiça, afirmou perante a imprensa que Costa aparentemente parece ser um indivíduo normal, mas que entra em surto, manifestando-se paranoico, principalmente quando repórteres se aproximam. Fica muito difícil saber, num primeiro momento, até que ponto a sucessão de crimes provocados pelo administrador de empresas foram atribuídos à manifestação de uma doença, e de que até ponto parte de seu comportamento não passa de farsa. De qualquer forma, os relatos impressionantes de testemunhas, dizendo que o autor desses crimes corria freneticamente pelas ruas, roubando carros e atirando em suas vítimas que se recusavam a entregar seus automóveis, além do relato do próprio acusado, dizendo que permaneceu escondido por horas dentro de um cano de esgoto, para supostamente escapar daqueles que ele achava que os estavam perseguindo, parece, para qualquer profissional da psquiatria, ações praticadas por um louco, ou por alguém que tem, no mínimo, sérios problemas de ajustamento mental (um parafuso a menos, como diz o jargão popular).

É sabido que, no caso das paranoias, o indivíduo enfermo entra num estado de transe, uma espécie de delírio em que a realidade e as pessoas que se encontram nela possam se tornar perigosas e ameaçadoras. Na paranoia o indivíduo pode cometer delitos e atos os mais bárbaros possiveis, por que todas as suas ações estão a serviço da paranoia. Conheci o caso de um agente de polícia, aposentado por conta de uma doença mental, porque foi diagnosticado como paranoico, pelo fato de, num belo dia, ao ver determinadas fotos de casais andando na praia nus, na internet, achou que sua mulher estava em uma das fotos, e que o outro que aparecia com ela, seria um de seus colegas de trabalho. Na paranoia da infidelidade, o citado servidor público saiu do trabalho armado, determinado a matar a esposa e o suposto amante, sendo que ela nem estava na praia, mas sim trabalhando em outra cidade, sendo obrigados os demais colegas do policial a levá-lo às pressas para um internamento. O indivíduo paranoico necessita ser diariamente monitorado, e no meio de um surto esquizofrênico dessa magnitude, só resta ao enfermo a internação ou o acompanhamento contínuo de parentes. São pessoas que, aparentemente normais, sequer podem sair de casa sozinhas.


De perto ninguém é normal:agora Michel Costa aguardará
o término do inquérito policial e a decisão da Justiça, ao menos
por enquanto preso. Um alívio para a sociedade e para ele
próprio (retirado de www1.folha.uol.com.br)
 Louco ou monstro? De qualquer forma, São Paulo permanece com seus carros e ruas como uma cidade assustada. Assustada por seu crescimento tão pujante, que lhe rendeu tanto desenvolvimento; mas por outro lado legou-lhe muita dor de cabeça. Creio que, infelizmente, não será a primeira nem a última vez que endiabrados como Michel Goldfarb Costa vão invadir as ruas de uma grande cidade, desesperados, armados e ameaçadores, despejando em qualquer um que esbarrem na esquina todas as suas frustrações e angústias individuais. Temo que o próximo possa ser eu ou você, no meio da "selva de pedra" que encerra nossos medos e provações. Cidade grande não é para principiantes, e a vida moderna, com sua mixórdia de barulhos, sons de helicópteros, odores de fumaça e caos, pode sujeitar alguém a um verdadeiro quadro de anomia, ou pode, tão somente conceber mais indivíduos paranoicos, que de vez em quando aparecem no noticiário policial, como o infeliz e atarantado administrador de empresas paulista. É uma autêntica paranoia delirante, e nesse delírio pode embarcar qualquer um de nós.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

JUDICIÁRIO: Será que o mal do CNJ é agir abusivamente ou perseguir criminosos de toga?


Com o ministro Marco Aurélio, a decisão
sempre será revestida de polêmica.
(retirado de blogdocatete.blogspot.com)
 Acompanhei recentemente a liminar concedida pelo ministro do STF, Marco Aurélio de Melo, limitando a competência o Conselho Nacional de Justiça-CNJ, de investigar juízes, envolvidos em processos  administrativos, reduzindo as atribuições daquele órgão. A decisão monocrática do ministro deu-se no meio de uma intensa polêmica, propagada pelos meios de comunicação, após uma declaração da atual Corregedora Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon, dizendo que as tentativas da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) de reduzir as atribuições do CNJ por meio de uma ação judicial perante o Supremo, visavam impedir a atuação do Conselho no combate a "bandidos de toga", escondidos dentro do Judiciário brasileiro. Agora em 2012, no mês de fevereiro, após o período de recesso, o mérito da ação deverá ser julgado pelo plenário da suprema corte brasileira, mas os efeitos da liminar concedida por Marco Aurélio prevalecem até o presente momento.

Criado oficialmente pela Reforma do Judiciário, em 2005, o Conselho Nacional de Justiça foi introduzido na estrutura da Justiça brasileira a partir da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, introduzindo no texto constitucional o artigo 103-B, tratando da composição, atribuições e competências do Conselho. O Regimento Interno do CNJ estabelece, dentre outras funções, em seu art. 4º, que compete ao plenário do Conselho o controle da atividade financeira e administrativa do Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados. Para isso, segundo os incisos II e III do citado artigo, o Conselho pode receber reclamações contra membros do Judiciário, bem como pode avocar, se entender ser conveniente, processos disciplinares contra juízes que já se encontram em curso. Além disso, segundo o inciso IV, o Corregedor Nacional de Justiça pode propor correições, inspeções e sindicâncias em varas, tribunais, serventias judiciais e cartórios em todo o Brasil, tudo com o objetivo de promover a observância do art. 37 da Constituição Federal, bem como zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura e pela autonomia do Poder Judiciário.


O CNJ em uma de suas várias sessões,
combatendo o banditismo dentro da magistratura.
(retirado de g1.globo.com)
 Segundo a Constituição Federal, o CNJ é composto por 15 (quinze) membros, sendo que destes, nove são egressos das diversas instâncias e órgãos comuns e especializados da magistratura nacional, dois são oriundos do Ministério Público, dois são advogados e mais dois são cidadãos comuns, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados pela Câmara dos  Deputados e pelo Senado Federal. É, portanto, um órgão formado em sua maioria por magistrados; mas que conta com a participação de demais pessoas da sociedade, sendo diferente das corregedorias internas de cada tribunal, com viés altamente corporativo. Para se ter uma ideia, se as Corregedorias das Polícias são criticadas pelo seu alto corporativismo, muitas vezes arquivando processos admininistrativos que são movidos contra ações abusivas praticadas por seus integrantes, o que dizer do corporativismo entre os integrantes do Judiciário, uma corporação altamente elitista, fechada e tradicionalista, que se gaba de se valer de um processo de admissão de magistrados severamente rigoroso e intelectualmente difícil, como forma de declarar que seus integrantes compõem a fina flor de uma sociedade de letrados e moralmente bem posicionados cidadãos, formados em direito, que por isso mesmo gozam de uma fé pública amparada em seu forte prestígio social? Como investigar esses "cidadãos de bem"? Entre o interesse público e o interesse corporativo, em diversas corregedorias espalhadas Brasil afora, nos tribunais do país, prevalece a defesa da corporação.


Para Tóffoli, a atuação do CNJ
é legítima.
(retirado de g1.globo.com)
 E é por interesse corporativo que se entende a recente ação promovida pela AMB, com vistas a reduzir a atuação do Conselho, uma vez que reclamam seus integrantes que o CNJ só teria competência de lidar com processos disciplinares de magistrados já julgados pelas corregedorias dos tribunais locais, e não atuando concorrentemente com esses órgãos. Em recente entrevista publicada na Revista Época, o mais jovem ministro do Supremo, José Dias Tóffoli, já adiantou o seu voto na futura questão que será resolvida pelo STF, no julgamento do mérito da ação promovida pela AMB, dizendo que a atuação do CNJ nas instâncias inferiores do Judiciário nacional, inibia o poder das elites locais, com suas interferências na atividade do Judiciário, combatendo os desmandos, ilegalidades ou mesmo a corrupção de alguns de seus membros. Percebe-se, em síntese, que dentro do próprio Judiciário brasileiro, existem posicionamentos variados quanto à devida atuação do CNJ, e a AMB, por ser um órgão corporativo, naturalmente age segundo os interesses corporativos de seus integrantes, e não visando uma democratização maior do Poder Judiciário, com sua abertura para a socieadade, através do controle  da conduta de seus membros por órgãos externos, exteriores à vontade e interesses dos integrantes de uma instituição monolítica e clausurada, como a magistratura.

Os magistrados brasileiros tem, ao menos, três prerrogativas constitucionais: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade  de vencimentos. Como diria o personagem das histórias em quadrinhos, do "tio Ben", parente de Peter Parker, alterego do Homem-Aranha: "grandes poderes levam a grandes responsabilidades". As prerrogativas constitucionais da magistratura devem ser tidas como fonte de grandes responsabilidades e não devem ser confundidas com privilégios. Pela função seríssima que desempenham, os magistrados brasileiros devem ter toda a liberdade de consciência para julgar, e a independência no exercício de suas funções, para não se deixarem intimidar pelo poder político. Entretanto, pela visibilidade e caráter público de sua função, o nobre e eminente ato de julgar deve ser provido de total transparência, sujeito, numa sociedade democrática, ao controle da sociedade. Entretanto, historicamente falando, o Judiciário brasileiro acostumou-se a ser formado por uma categoria de "notáveis", de amigos do rei, que em tempos republicanos de fundação do moderno Estado brasileiro, acabaram por formar uma corporação monolítica, fechada, letrada e autoritária.


Ruy Barbosa: um dos grandes representan-
tes do bacharelismo nacional
(retirado de gerivaldoneiva.com)
 Chama-se de "bacharelismo" o movimento iniciado durante o predomínio da Corte Portuguesa no Brasil até o surgimento do Império e posteriormente o advento da República, marcado, principalmente, pelo sentimento de certos bacharéis em Direito, de pertencer a uma casta ou estamento específico, diferenciados do restante da população. O bacharel em Direito se via como um ser diferenciado, assim como os indicados pela realeza para assumir postos-chave dentro da magistratura, indicados pela rei ou pela aristocracia dominante, para representar os interesses da Coroa nos tribunais locais. Assim, nasceram os interventores, desembargadores e juízes de fora ou de paz e os protagonistas da cena judicial da província no Brasil Império. Durante a República, prevaleceu a tendência de manter a magistratura como uma categoria isolada do restante da população, formada por um segmento inicialmente formado de indivíduos nomeados para o cargo, e, posteriormente, investidos na função judicante através de concurso público. De qualquer forma, é da tradição jurídica brasileira receber na corporação dos juízes nomes egressos de famílias de magistrados, filhos e netos de desembargadores ou presidentes de tribunais, jovens recrutados em nobres famílias abastadas ou de classe média alta, que após um exaustivo e rigoroso processo seletivo, conseguiram galgar a posição de juiz de direito, passando a vestir uma toga como símbolo de status social.


Dworkin: um dos grandes jusfilósofos,
em língua inglesa, já considerava que os juízes
atuavam como monarcas do Direito.
(retirado de guardian.co.uk)
 Assim, se os promotores, outrora, eram considerados os "príncipes do Direito", os juízes são os seus monarcas. O jusfilósofo norte-americano Richard Dworkin, em sua obra O Império do Direito chega a identificar o direito como um palácio, onde o juiz figura como uma espécie de rei, agindo na proteção de seu reino; ou seja, lutando pela manutenção e defesa do Direito. Apesar das belas e poéticas palavras de Dworkin, o problema é que, no caso de países de modernidade tardia como o Brasil, onde ainda enfrentamos sérios desafios culturais para o nosso desenvolvimento enquanto nação, a cultura do "você sabe com quem está falando", já detectada pelo antropólogo carioca Roberto Da Matta em seu célebre livro: Carnavais, Malandros e Heróis, parece vigorar no Judiciário brasileiro a todo vapor, transformando o reinado dos juízes pelo Direito numa autêntica tirania. Como explicar casos de vendas de sentenças, de favorecimento ilícito de determinados grupos ou indivíduos por conta da atuação isolada de alguns representantes da magistratura, ou ainda os casos de nepotismo e fisiologismo dentro do Judiciário, tão amplamente combatidos pelo CNJ? Assim como os demais Poderes da República, o Judiciário não está imune a críticas e intervenções da sociedade, desvelando sua Caixa de Pandora, através das denúncias de corrupção, clientelismo e tráfico de influência que acontece nos subterrâneos dos tribunais. É para isto que foram criados órgãos como o CNJ, é para isso que a sociedade se mobilizou, através de uma Constituição supostamente cidadã, compromissária e dirigente, para que todos os poderes do Estado fossem subordinados ao texto constitucional, assim como são os cidadãos. Não pode o Judiciário brasileiro, através de seus juízes, adotar um comportamento aristocrático de representantes de uma elite intocável, que só podem ser investigados por seus próprios pares, dentro do espírito de camaradagem de classe ou corporativismo. Assim como os demais cidadãos, os juízes também tem que ter sua conduta avaliada através de um órgão formado não apenas por magistrados, mas também pelos demais representantes da sociedade civil.


Livro: "O Povo Brasileiro",  de Darcy Ribeiro.
Até hoje, uma das melhores obras para se
entender as vilanias do patronato nacional,
na sua cultura de elite
(retirado de submarino.com)
 O Brasil ainda convive com a cultura de um poder monárquico, ao menos no Judiciário brasileiro. A criação do CNJ serviu para trazer uma dimensão mais moderna e republicana à Justiça Brasileira, ao menos em seus propósitos institucionais; da forma como deve ser e como é, em muitas nações desenvolvidas, onde o Poder Judiciário (assim como os outros poderes) é subordinado aos interesses da sociedade e não aos interesse de uma monolítica corporação. Magistrados são servidores públicos, pagos pelo erário, subordinados ao povo, e não senhores inatingíveis do alto de suas togas. Consigo identificar bem a postura de magistrados que são alinhados com um perfil monárquico, de uma cultura jurídica atrasada e elitista, ao confrontar um deles na fila de supermercado; enquanto que outro, ao se ver numa situação em que tem se colocar no  lugar do cidadão comum, como na ida a uma delegacia para registrar uma simples perda de documentos, prefere ficar aguardando no seu lugar na fila ao invés de passar na frente com uma carteirada; por entender que ele também faz parte do povo, e fora de suas funções ele tem que se equiparar aos seus semelhantes, pois o magistrado democrático e republicano não se vale do argumento "você sabe com quem está falando?", típico da cultura das elites no Brasil, também chamadas de"patronato", como bem denunciam  brilhantes antropólogos da intelectualidade nacional, como Darcy Ribeiro ou o citado Roberto Da Matta.

Recordo que logo que foi criado o CNJ, um colega professor, que também era juiz, daqueles que trabalhavam comigo como professores numa das faculdades de direito em que eu lecionava, dizia que a criação daquele órgão era uma afronta ao Poder Judiciário ou as garantias conferidas à magistratura; dentre elas as prerrogativas que eu já enunciei acima. Peraí!! Prerrogativas ou privilégios? Como já disse, a atribuição de prerrogativas constitucionais implica em muita, mas muita responsabilidade. Os juízes são responsáveis por sua conduta não somente perante a si, mas perante ao povo, ao interesse público que permitiu o regime da Lei e do Direito e que levou todo um contingente de homens e mulheres a passar em um concurso público, e exercer a mais que digna função de juiz. Nesse sentido, a atuação do CNJ é mais do que necessária, é fundamental, para que não tenhamos um Judiciário intolerante, enclausurado nas suas majestosas torres de marfim, acima da Lei e de todos e não subordinado a uma Constituição. Se o CNJ é constitucional, pois sua criação deriva de uma emenda constitucional, então que seja constitucional a tarefa do órgão de intervir em todas as esferas do Judiciário para combater a corrupção e os abusos de seus integrantes, para preservar o Estado Democrático de Direito, e não para manter uma elite de burocratas a salvo da ação da Lei, num oásis de impunidade. Em fevereiro, a decisão do STF será fundamental para definir que Judiciário nos teremos e queremos neste ano de 2012 e nas décadas vindouras. Magistratura democrática, sim! Juizite corporativa, não! Em defesa do CNJ!