segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

QUESTÕES CRIMINOLÓGICAS: As razões da atitude do atirador paranoico em São Paulo.


 No filme Um Dia de Fúria (Falling Down, no original, de 1993), do diretor norte-americano, Joel Schumacher, o funcionário desempregado William Foster ( personagem interpretado pelo ator Michel Douglas), tornou o filme antológico, por retratar o dia de um cidadão comum, que sujeito ao stress cotidiano da grande cidade, surta, até sair do carro, no meio de um congestionamento, joga a maleta fora, afrouxa o nó da gravata, e, armado de um fuzil, e um colete à  prova de balas, aterroriza a  metrópole onde vivia, descarregando no meio urbano todas as suas  angústias e frustrações. Era a expressão cinematográfica da teoria da anomia, iniciada no século XIX pelo sociólogo francês, Emile Durkheim, e atualizada no século XX, pelo pesquisador norte-americano Robert Merton. Pela anomia, procura-se explicar os desvios de conduta como resultante de males sociais; ou seja, o mal não é originado somente do indivíduo que pratica algo reprovável (como um delito), mas sim da própria sociedade. O crime resultaria de males sociais que seriam criminógenos, e não do criminoso em si, contrariando a antiga criminologia positivista, de linha lombrosiana, que atribuía ao crime um mal tão somente individual, personificado na pessoa do criminoso.

Na teoria desenvolvida por Durkheim e Merton, os indivíduos que praticariam delitos poderiam ser fruto de um desajuste social. Desajuste esse que seria atríbuído a diversos fatores, todos relacionados com o meio externo, caracterizados pela inaptidão de certos indivíduos a se ajustar a determinadas regras sociais. Essa inaptidão poderia se traduzir num simples sentimento de revolta, como também numa completa apatia quanto ao ambiente social (o comportamento de certos usuários de drogas poderia possuir essa característica), além de condutas voltadas propriamente para o crime, como no caso dos "inovadores", que na teoria de Merton seriam aqueles que inovariam, de forma ilícita, nas formas de busca pela ascensão social, seguindo um caminho contrário ao que determina a lei, praticando crimes. Entretanto, o que mais caracteriza, a meu ver, a teoria da anomia no século XX é a existência de pessoas que simplesmente "piram" diante de uma determinada realidade de pressão social, num ambiente confuso, extremamente veloz, altamente mutável da cidade grande, onde determinadas pessoas simplesmente perdem o ritmo, a ponto de praticaram condutas inusitadas, que vão de encontro a todas as manifestações ditas "normais", de certos padrões da sociedade. Nesse sentido, os loucos ou desajustados de Lombroso seriam os indivíduos anômicos da teoria de Durkheim. Em síntese, um comportamento anômico seria aquele desprovido de harmonia social; pois, na abordagem eminentemente funcionalista dessas teorias, tais indivíduos não estariam correspondendo a sua função social, não estariam agindo conforme as diretrizes sociais.


Michel Costa: o criminoso alucinado da movimentada semana
onde os paulistas viram cenas cinematográficas de pura adrenalina
e desespero (retirado de veja.abril.com.br)
 Nem precisa dizer o quanto essas teorias puderam ser usadas por uma política criminal conservadora ou dentro da perspectiva individualista da sociologia criminal liberal dos norte-americanos, de ver o criminoso como um desajustado, quase um demente que não conseguiu se adaptar ao sonho do american way of life, adquirindo um emprego que foi feito para ele, ganhando dinheiro e pagando seus impostos regularmente sem pestanejar, adequando-se ao "nosso belo quadro social", como diz a música de Raul Seixas, constituindo casa, família, cachorro, gato e passarinho. Apesar de ter um certo traço reaçonário de querer moldar qualquer um aos ditames da sociedade, visto sua visão eminentemente coletivista e massificadora (principalmente nos moldes da sociedade capitalista), as teorias de Durkheim e Merton serviram ao menos para detectar, e, quem sabe, explicar, certos comportamentos que de vez ocorrem no dia a dia de uma cidade, principalmente nos grandes centros urbanos, que parece destoar um pouco daquela criminalidade tradicional de roubos e furtos que estamos acostumados no dia a dia de uma sociedade dividida entre  ricos e pobres. A sucessão de crimes, praticados em concurso material pelo administrador de empresas e artista plástico Michel Goldfarb Costa, na última semana, em São Paulo, podem, para alguns, revelar traços de uma conduta analisada pela teoria da anomia, e que tem muita relação com o comportamento do personagem de Michael Douglas, no filme de Schumacher.

Michel não tinha antecedentes criminais. Muito pelo contrário, por seu perfil de classe média alta, o atirador tresloucado e paranoico das avenidas paulistas estava muito mais para vítima do que para criminoso. Pelo seu perfil, Goldfarb Costa parecia mais um daqueles cidadãos brancos, abastados, com formação universitária, que são chamados de "homens de bem" do nosso quadro social, nos entoados discursos da sociedade de classes. Porém, numa segunda-feira, dia 9 de janeiro, num dia em que, na metrópole, os cidadãos paulistanos saem apressadamente de suas casas e apartamentos para ir ao trabalho, as cenas vistas na ruas com a passagem meteórica do administrador de empresas roubando carros e atirando em pessoas, pareciam tiradas de um filme de ação ou terror. Sentindo-se perseguido, e sob o pretexto de achar que se sentia ameaçado pelos vizinhos, Michel Costa saiu alucinado pelas ruas, percorrendo perigosamente quilômetros e mais quilômetros da cidade grande, atravessando a cidade de São Paulo, através de carros roubados a cada esquina, munido de um colete e de uma pistola, provocando colisões, ferindo pessoas e aterrorizando uma urbe já bastante aterrorizada pela violência cotidiana da criminalidade e das mazelas de uma selva de concreto que tem todo um lado escuro a revelar. Será que o surto de Costa deu-se a um comportamento típicamente anômico, explicado pelas ciências sociais? Será que a pressão da megalópole, da cidade grande com suas pressões sociais, foi o bastante para fazer um indivíduo de classe média enlouquecer?


Nas ruas de São Paulo o rastro de paranoia e destruição
provocados pelo administrador de empresas e artista plástico
(retirado de g1.globo.com)
 Já a psiquiatria forense entende que Costa foi vítima de uma enfermidade, de um tipo de distúrbio mental com características esquizóides ou até mesmo esquizófrênicas chamado de paranoia. Michel Goldfarb Costa é um indivíduo paranoico; mas de quantas pessoas paranoicas precisamos para detectar uma sociedade doente? O delegado que apura o caso, após o administrador se entregar e cumprir uma prisão temporária decretada pela Justiça, afirmou perante a imprensa que Costa aparentemente parece ser um indivíduo normal, mas que entra em surto, manifestando-se paranoico, principalmente quando repórteres se aproximam. Fica muito difícil saber, num primeiro momento, até que ponto a sucessão de crimes provocados pelo administrador de empresas foram atribuídos à manifestação de uma doença, e de que até ponto parte de seu comportamento não passa de farsa. De qualquer forma, os relatos impressionantes de testemunhas, dizendo que o autor desses crimes corria freneticamente pelas ruas, roubando carros e atirando em suas vítimas que se recusavam a entregar seus automóveis, além do relato do próprio acusado, dizendo que permaneceu escondido por horas dentro de um cano de esgoto, para supostamente escapar daqueles que ele achava que os estavam perseguindo, parece, para qualquer profissional da psquiatria, ações praticadas por um louco, ou por alguém que tem, no mínimo, sérios problemas de ajustamento mental (um parafuso a menos, como diz o jargão popular).

É sabido que, no caso das paranoias, o indivíduo enfermo entra num estado de transe, uma espécie de delírio em que a realidade e as pessoas que se encontram nela possam se tornar perigosas e ameaçadoras. Na paranoia o indivíduo pode cometer delitos e atos os mais bárbaros possiveis, por que todas as suas ações estão a serviço da paranoia. Conheci o caso de um agente de polícia, aposentado por conta de uma doença mental, porque foi diagnosticado como paranoico, pelo fato de, num belo dia, ao ver determinadas fotos de casais andando na praia nus, na internet, achou que sua mulher estava em uma das fotos, e que o outro que aparecia com ela, seria um de seus colegas de trabalho. Na paranoia da infidelidade, o citado servidor público saiu do trabalho armado, determinado a matar a esposa e o suposto amante, sendo que ela nem estava na praia, mas sim trabalhando em outra cidade, sendo obrigados os demais colegas do policial a levá-lo às pressas para um internamento. O indivíduo paranoico necessita ser diariamente monitorado, e no meio de um surto esquizofrênico dessa magnitude, só resta ao enfermo a internação ou o acompanhamento contínuo de parentes. São pessoas que, aparentemente normais, sequer podem sair de casa sozinhas.


De perto ninguém é normal:agora Michel Costa aguardará
o término do inquérito policial e a decisão da Justiça, ao menos
por enquanto preso. Um alívio para a sociedade e para ele
próprio (retirado de www1.folha.uol.com.br)
 Louco ou monstro? De qualquer forma, São Paulo permanece com seus carros e ruas como uma cidade assustada. Assustada por seu crescimento tão pujante, que lhe rendeu tanto desenvolvimento; mas por outro lado legou-lhe muita dor de cabeça. Creio que, infelizmente, não será a primeira nem a última vez que endiabrados como Michel Goldfarb Costa vão invadir as ruas de uma grande cidade, desesperados, armados e ameaçadores, despejando em qualquer um que esbarrem na esquina todas as suas frustrações e angústias individuais. Temo que o próximo possa ser eu ou você, no meio da "selva de pedra" que encerra nossos medos e provações. Cidade grande não é para principiantes, e a vida moderna, com sua mixórdia de barulhos, sons de helicópteros, odores de fumaça e caos, pode sujeitar alguém a um verdadeiro quadro de anomia, ou pode, tão somente conceber mais indivíduos paranoicos, que de vez em quando aparecem no noticiário policial, como o infeliz e atarantado administrador de empresas paulista. É uma autêntica paranoia delirante, e nesse delírio pode embarcar qualquer um de nós.

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