Nas aulas de direito processual penal que leciono para meus alunos, sempre enfatizo com eles a predominância dos principios constitucionais na aplicação das prisões cautelares, dentre eles o princípio da presunção da inocência. Para um leigo, parece muito complicada a discussão ou sem sentido falar de inocência de um réu confesso ou de quem é preso em flagrante; mas no Direito, considerando esse ramo do conhecimento como destacadamente científico, há de se estabelecer diferenças importantes.
Em recente e polêmica decisão judicial, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um habeas corpus acerca de um processo por tráfico de drogas, iniciado em 2009, decidiu declarar inconstitucional o art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei Antidrogas), que proibia a concessão de liberdade provisória, dentre outros benefícios, aos crimes de tráfico ou a ele relacionados.Na decisão, os ministros em sua maioria consideraram que o princípio constitucional da presunção da inocência é mais forte do que a norma do art. 5º, inciso XLIII, também presente na Constituição, que diz que o crime de tráfico de drogas é equiparável ao de terrorismo e tortura, sendo inscustíveis de anistia, graça ou indulto. Ora, sabe-se que o Supremo já havia derrubado (também pelo argumento da inconstitucionalidade), o disposto no art. 2º da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), acerca da possibilidade de progressão de regime, nos crimes hediondos, ou crimes de tortura, terrorismo e tráfico de drogas, ensejando o surgimento da Lei 11.464, de 2007, que modificou o §1º do citado artigo, estabelecendo que, ao invés de pena cumprida integralmente em regime fechado (como dizia a redação anterior do dispositivo legal), o cumprimento da pena de um traficante de drogas se daria num regime inicialmente fechado. Se um traficante condenado tem direito à progressão de regime no cumprimento de sua pena, por que alguém acusado de tráfico, ainda não condenado, não poderia ter o direito à liberdade provisória?
O Supremo apenas confirmou um entendimento da doutrina dominante no Brasil, a de que a liberdade provisória é medida cautelar assegurada a todos, derivada do principio constitucional do devido processo legal, uma vez que se trata de uma medida cautelar, e uma vez estando presentes os requisitos para sua concessão, não há de se falar em manutenção da prisão (ao menos não antes da prisão decorrer da execução de uma pena, na sentença penal condenatória que obrigue alguém a cumprir uma pena privativa de liberdade). A chamada "contracautela" que seria a vedação da liberdade nos crimes classificados como inafiançáveis caiu, definitivamente, por terra, na doutrina nacional. Uma vez que inafiançabilidade não se confunde com vedação da liberdade provisória. É só ler os melhores autores de direito penal e direito processual penal da atualidade, para verificar que eu não estou errado.
Apesar do alarde feito pela mídia, tentando suscitar uma certa revolta popular, como é típico das iniciativas do populismo penal, após um mês da supostamente polêmica decisão de nossa Corte máxima, o assunto parace que "esfriou". Não se vê mais nos meios de comunicação quaisquer comentários críticos acerca de uma decisão que apenas, como eu já disse, confirmou o que já vinha entendendo boa parte de nossa comunidade jurídica: a de impossibilidade de manter na prisão,cautelarmente, quem quer que seja, só por conta da suposta gravidade da conduta criminosa de que é acusado. Traficantes não são anjos, mas também não podem restar demonizados por conta do ímpeto sensacionalista de alguns meios de comunicação, que visam, a título de vender manhcetes, sensibilizar a opinião pública para um desnecessário expansionismo penal.
A decisão do STF, por 7 votos a 3, consegue reverter, desta forma, determinadas injustiças, ou mesmo uma afronta não só ao devido processo legal, mas também ao proporcionalidade, uma vez que cada um somente irá responder pelo que efetivamente fez, na medida de sua culpabilidade, não se admitindo uma punição idêntica para quem matou e roubou, e para que tão somente furtou. No caso da Lei Antidrogas, na fixação da responsabilidade do agente, além das distinções clássicas, aprendidas na teoria penal e adotadas pelo Código, entre dolo direto (teoria da vontade) e dolo eventual (teoria do consentimento), o que deve ser observado é de que muitos dos supostos criminosos, acusados por tráfico, que se encontram encarcerados em cadeias públicas como presos provisórios, são apenas soldados de organizações criminosas, muitos funcionando como simples "mulas" (os meros transportadores da droga), que tiveram a infelicidade de serem detidos pela polícia, e que agora respondem pelo mesmo tipo penal destinado aos grandes traficantes.
Isso me faz recordar uma triste cena, recentemente vista por mim enquanto embarcava para uma viagem no aeroporto, quando presenciei uma jovem de aparência humilde, acompanhada de um adolescente, aos prantos, porque, fingindo-se de grávida, tinha sido abordada pela Polícia Federal, que a pegou com 1kg de cocaína amarrado em seu ventre. Muitos desses pequenos traficantes que são pegos em ônibus, aviões, em carros, ou andando de bicicleta, são meros marionetes de uma engrenagem criminosa poderosa, que recruta voluntários na população mais pobre, desempregada e desqualificada na periferia dos centros urbanos, em prol dos agrados e das tentações da grana fácil (ou não tão fácil assim), que muitas vezes serve para que essas pessoas possam pagar suas dívidas, ou ajudar a alimentar seus familiares. É só ver as estatísticas, principalmente nos presídios femininos, e ver que na maior parte dos casos de mulheres condenadas, que formam a população carcerária, estas responderam por crimes de tráfico de drogas, funcionando na condição de meras transportadoras de droga fornecida por outros. Será que essas pessoas não teriam direito à liberdade provisória? Na maior parte das situações, esses acusados, nos processos penais, não fornecem qualquer embaraço para a instrução criminal, mantendo seus domicílios sem sair deles, além de muitos se mostrarem genuinamente arrependidos do que fizeram, e já no decorrer do processo tentam obter a regeneração; como também não se evadem, comparecendo a todos os atos processuais. Por que manter essas pessoas presas, então? Só porque estão sendo acusadas de um crime que pode ser considerado hediondo?
Alio-me ao entendimento do STF, e não compactuo com as baboseiras afirmadas nos meios de comunicação, de forma precipitada, por alguns membros da Polícia Judiciária e do Ministério Público, que disseram que com a decisão do Supremo houve um incentivo à impunidade. Em nenhum país do mundo está comprovado que manter alguém na prisão contribui para reduzir os índices de criminalidade. No que tange à questão das drogas, está mais do que comprovado que iniciativas preventivas, de cunho educacional e socializador, são muito mais eficazes do que simplesmente trancafiar uma multidão de gente, que por conta de economias dilaceradas, acabam por ingressar no mercado negro e informal da comercialização de produtos ilícitos, dentre eles as drogas ilegais. Se queremos uma sociedade mais sadia, temos que defender uma sociedade que não estabeleça sançoes penais como cura para nossas doenças sociais, até porque, como diria o célebre filósofo francês, Michel Foucault, a prisão não tem um mínimo propósito ressocializatório, mas sim disciplinador, tornando-se mais uma vitória das instituições e políticas punitivas, a serviço do controle, do que um sucesso penal, atingindo os fins da pena, estes sim propriamente ressocializatórios. Observemos isso!
A decisão do STF, por 7 votos a 3, consegue reverter, desta forma, determinadas injustiças, ou mesmo uma afronta não só ao devido processo legal, mas também ao proporcionalidade, uma vez que cada um somente irá responder pelo que efetivamente fez, na medida de sua culpabilidade, não se admitindo uma punição idêntica para quem matou e roubou, e para que tão somente furtou. No caso da Lei Antidrogas, na fixação da responsabilidade do agente, além das distinções clássicas, aprendidas na teoria penal e adotadas pelo Código, entre dolo direto (teoria da vontade) e dolo eventual (teoria do consentimento), o que deve ser observado é de que muitos dos supostos criminosos, acusados por tráfico, que se encontram encarcerados em cadeias públicas como presos provisórios, são apenas soldados de organizações criminosas, muitos funcionando como simples "mulas" (os meros transportadores da droga), que tiveram a infelicidade de serem detidos pela polícia, e que agora respondem pelo mesmo tipo penal destinado aos grandes traficantes.
(retirado de diariopernambucano.com.br) |
Alio-me ao entendimento do STF, e não compactuo com as baboseiras afirmadas nos meios de comunicação, de forma precipitada, por alguns membros da Polícia Judiciária e do Ministério Público, que disseram que com a decisão do Supremo houve um incentivo à impunidade. Em nenhum país do mundo está comprovado que manter alguém na prisão contribui para reduzir os índices de criminalidade. No que tange à questão das drogas, está mais do que comprovado que iniciativas preventivas, de cunho educacional e socializador, são muito mais eficazes do que simplesmente trancafiar uma multidão de gente, que por conta de economias dilaceradas, acabam por ingressar no mercado negro e informal da comercialização de produtos ilícitos, dentre eles as drogas ilegais. Se queremos uma sociedade mais sadia, temos que defender uma sociedade que não estabeleça sançoes penais como cura para nossas doenças sociais, até porque, como diria o célebre filósofo francês, Michel Foucault, a prisão não tem um mínimo propósito ressocializatório, mas sim disciplinador, tornando-se mais uma vitória das instituições e políticas punitivas, a serviço do controle, do que um sucesso penal, atingindo os fins da pena, estes sim propriamente ressocializatórios. Observemos isso!
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