segunda-feira, 3 de setembro de 2012

NOVO CÓDIGO PENAL: Entre liberais e conservadores, o mais do mesmo na discussão sobre o novo Código Penal.

No Brasil, um Código Penal adequado à realidade do século XXI é argumento mais do que consolidado. Ninguém se opõe ao discurso de que temos a necessidade de atualizar nossa legislação penal, tendo em vista que o Código Penal em vigor é de 1941. Com a redemocratização do país, desde 1984 vivemos um período curioso, em que o atual Código passou a conviver com uma legislação especial que quase tomou o seu lugar no ordenamento jurídico brasileiro. Foram tantas leis, reformas, revogações de antigos dispositivos marcados pelo anacronismo, abolito criminis e novas penas para antigos delitos que hoje, qualquer professor de Direito Penal precisa ressaltar em  sala de aula, nas universidades, a existência dessas leis extravagantes, sob pena de ministrar um contéudo incompleto para aqueles que querem estudar profundamente os dispositivos penais no Brasil. Ocorre que nessa colcha de retalhos normativa, viu-se muitas leis serem publicadas, umas em discrepância com outras, além de uma briga  de torcidas, envolvendo visões mais conservadoras e punitivistas do crime e das leis penais, enquanto que outras, mais liberalizantes, viram no horizonte do garantismo a abertura de novos espaços para a produção de leis mais consentâneas com um Estado Democrático.

O presidente do Senado, José Sarney, recebe da comissão de juristas o anteprojeto do novo Código Penal(retirado de conjur.com.br)
Mas a população sabe muito pouco (e parece que alguns juristas menos ainda) do que está em jogo na sociedade brasileira com o novo Código Penal (encaminhado ao Congresso através da PLS 236/2012). Ao menos, pelo que se vê nos programas de TV e nas reportagens feitas sobre o assunto, sobra desinformação. Nesse sentido, nem os profissionais da área jurídica entrevistados, parecem contribuir para um debate mais esclarecedor sobre o novo Código. Cite-se, por exemplo, o programa Canal Livre, da Band, ontem, quando foi entrevistado um procurador de justiça de São Paulo sobre suas opiniões acerca do anteprojeto do novo Código Penal, tramitando no Senado Federal. Preso ao velho discurso da lei e da ordem, não faltaram petardos contra o novo Código, acusado de "estimular a criminalidade" , ao invés de combatê-la. Foram várias críticas quanto ao impéto "liberalizante" do Código, que ousava mexer com temas ainda tabu na sociedade brasileira, como a descriminalização do uso de drogas. O nobre procurador, do alto de seu conservadorismo, acha que consumo de drogas ainda é caso de polícia, e não obstante a atual Lei Antidrogas ter estabelecido a despenalização do uso e dependência de substâncias entorpecentes, o nobre representante do parquet paulista entendeu que o fato de ser descriminalizado o porte de drogas, numa quantidade com limites mínimos fixadas por lei ou a possibilidade de liberdade provisória para acusados de tráfico de drogas que sejam réus primários, parece um absurdo. Em seu ímpeto punitivista, o representante do MP paulista criticou, inclusive, as alterações das penas no novo Código, com a redução da pena máxima nos casos do crime de roubo simples, previsto no art. 157 do Código Penal, de 4 a 10 anos, em sua redação atual,  para 3 a seis anos de reclusão.

Ora, eu até entendo que os representantes do Ministério Público do estado de São Paulo tenham se unido em torno de um projeto alternativo, enviado ao Congresso Nacional, para substituir a atual versão do anteprojeot que tramita no Parlamento, para a criação do novo Código Penal. Afinal, promotores tem um dever a cumprir perante a sociedade, e parte desses deveres é que os acusados de crimes vão a julgamento, e, sobretudo, provada sua responsabilidade, sejam exemplarmente punidos na forma da lei. É o tipo de entendimento racional previsto em todo o planeta, para todos os órgãos acusatórios do mundo: a vontade de punir. Mas discordo do teor de uma certa arrogância, e até mesmo um certo autoritarismo (quando não ignorância) de alguns promotores, ao defender simplesmente a expansão punitiva, sob o pretexto de combater uma crescente criminalidade, quando não se discute racionalmente os efeitos colaterais de tal expansão. Parece que o nobre procurador paulista, no programa de TV comandado pelo jornalista Fernando Mitre, esqueceu-se ou não levou em conta a explosão carcerária decorrente das revoluções punitivas, e seus deletérios efeitos colaterais em toda uma sociedade que tem que conviver com seus indesejáveis. Não se trata apenas de punir muito e bem, mas sim de se observar o que o Estado terá que fazer com um universo gigantesco de homens e mulheres que são apanhados na tortuosa rota do  crime. Estamos acostumados a "jogar a sujeira para debaixo do tapete", quando se trata de discutir nossa política criminal, no tratamento penal de autores de delitos, e com isso contribuímos para um modelo panóptico e repressivo de sociedade, que sacrifica os direitos mais elementares, como a liberdade, em prol de um suposto direito à segurança.

Por outro lado, critica-se também o ar libertário, ou libertólatra de alguns estudiosos, que defendem o minimalismo penal quase como uma crença de fervor religiosa. O problema do garantismo, e das alternativas de um Direito Penal mínimo, bem ao gosto de pensadores como Ferrajoli, é, segundo a crítica do jurista espanhol Juan Ripollés, seu excesso de racionalismo, na ênfase à proteção da liberdade individual em detrimento da intervenção do Estado, utilizando os mesmos argumentos do liberalismo político baseados no laissez faire, às condutas que são apreciadas dum ponto de vista penal. Nesse sentido, qualquer intervenção punitiva do Estado, que passe por medidas aprisionadoras, parece ser parte de um complô, de um estratagema autoritário, para fazer valer um modelo neofascista de organização do poder. Isso é exagero. Se eu digo que um criminoso merece ter o direito à progressão do regime da pena que lhe foi aplicada, como supedâneo do exercício de direitos de cidadania, face o princípio da individualização das penas, tenho que levar em conta, também, que um criminoso condenado, que inicia o cumprimento de sua pena, não é integralmente cidadão. Para se pressupor um cidadão, é preciso que este esteja no exercício pleno de suas liberdades, e, segundo afirma o jurista alemão Günther Jakobs, por cidadãos entende-se aqueles que seguem as regras do jogo democrático, são sujeitos de direitos, assim como estão sujeitos a suas leis. Não é o caso dos apenados, que, não podem ser confundidos com cidadãos livres, não tem o mesmo direito à liberdade que estes outros, tendo em vista terem sido presos pela prática de algum crime. Nesse sentido, o garantismo libertólatra parece ser até ingênuo, quando defende a progressão de penas e a liberdade condicional para serial killers, que, pelo anteprojeto do novo Código, podem pegar pena máxima de 50, no lugar das penas de 30 anos de prisão.

Pálacio da Justiça (foto Alexandre Pereira/flickr)
De qualquer forma, o anteprojeto do novo Código Penal, da forma como foi escrito, contou com a participação de mais de 15 renomados juristas, estudiosos do fenômeno criminal, bem como com a participação de organizações civis e demais representantes da sociedade, através dos fóruns, coleta de sugestões e debates que antecederam a tramitação do projeto no Congresso. Discordo dos argumentos precipitados de alguns representantes do Ministério Público e da magistratura, alegando que uma discussão tão complexa quanto a da elaboração de leis penais no Brasil, não podia ter se encerrado em exíguos nove meses, anteriores à tramitação do novo Código, que agora gera tanta polêmica nos meios de comunicação, por conta de seu âmbito reformador ou liberalizante. Também entendo que a mídia tem um papel de dupla face, no que tange à discussão sobre as reformas penais. Se, por um lado, jornais e a televisão contribuem para o debate, informando a população da chegada do novo Código; por outro lado essa chegada tende a ter uma recepção fria ou pouco monra, diante da sede midiática de sangue, e da necessidade de obtenção dos culpados. Nesse sentido, o rol dos culpados já é estabelecido pela televisão brasileira, e nesse tribunal do vídeo, o único lugar dos infratores é a prisão, pois não existe presunção da inocência durante os intervalos comerciais. Somente espero que pobreza de ideias não venha prejudicar mais ainda o debate sobre o novo Código Penal, pois o preço da ignorância pode ser muito caro, para os que defendem a necessidade de leis penais eficazes, combinadas com um regime de manutenção das liberdades e dos direitos individuais. Vamos até as cenas do próximo capitulo, então!

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