Quando eu vi, recentemente, algumas dezenas de pessoas com cartazes pedindo a redução da maioridade penal nas avenidas de São Paulo, lembrei-me das passeatas feitas nos anos sessenta, pré-golpe de 1964. Em especial recordei das imagens dos livros de história, retratando a passeata Por Deus, Pela Família e Pela Liberdade, organizada por organizações de extrema-direita, bem atuantes nos anos sessenta, como a Opus Dei católica e o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Era a direita brasileira mostrando a cara, como agora parece mostrar novamente ao se discutir um tema antigo e recorrente, mas anualmente requentado, todas as vezes em que as atenções da mídia (em busca de sensacionalismo e publicidade) voltam-se para a difusão à exaustão de temas que lhe são caros no populismo penal, como a defesa da pena de morte e a redução da maioridade penal.
Victor Hugo Deppman foi mais uma vítima da violência nas grandes cidades. Trata-se de mais alguém a engrossar as estatísticas das vítimas fatais da criminalidade que atinge urbes como São Paulo e Rio de Janeiro até chegar aos núcleos urbanos médios, levando-se em conta todas as mazelas sociais e urbanas de uma metrópole. Com a morte do estudante, capturada pelas câmeras de segurança do condomínio onde morava, as imagens dramaticamente exploradas nos meios de comunicação, geraram uma previsível comoção nacional, retornando à pauta mais uma vez o tema da redução da maioridade penal desde a morte do menino João Hélio, há mais de dois anos no Rio de Janeiro, quando foi arrastado e morto do lado de fora do veículo roubado de sua mãe, por ainda se encontrar preso no cinto de segurança, enquanto os assaltantes (um deles adolescente) dava partida no veículo, levando a criança consigo, despedaçada pela violência com que foi arrastada pelas ruas por pelos menos dois quilômetros. Com opiniões divergentes, favoráveis e contrárias à redução em praticamente todos os segmentos da sociedade brasileira, o certo é que o tema da redução da maioridade penal sempre ocupou o debate das políticas criminais no Brasil, sempre num tom apaixonado e pouco racional. O debate mais uma vez dividiu uma nação, e assim como reacendeu-se uma discussão já antiga (desde o advento da Constituição de 1988 que se fala sobre isso), sazonalmente criada a cada episódio criminoso de grande repercussão, novamente a grande imprensa e representantes da classe política, muitas vezes envolvidos por interesses demagógicos, provocam o debate, apelando para que adolescentes autores de fatos atroze sejam tratados como criminosos adultos.
É importante lembrar que toda vez que a mídia faz alarde acerca do tema, os fatos criminosos alardeados acabam por sempre envolver o mesmo perfil de vítimas e autores. No primeiro caso, as vítimas independem de idade, mas sempre são da classe média alta ou baixa; ou seja, dos segmentos sociais mais suscetíveis de sofrer os abusos da violência urbana, dada a fragilidade de seus recursos materiais de dispender grandes somas no pagamento de segurança privada (um privilégio dos mais ricos). No caso dos autores dessas infrações, em sua totalidade os adolescentes envolvidos são sempre pobres, pretos ou pardos, de famílias desestruturadas (muitos sequer conheceram o pai), que aliam baixa condição econômica com o uso disseminado de drogas (principalmente crack)e acabam por se envolver em atos violentos. Tanto no caso de Victor Deppman, quanto no da dentista Chintya Magali de Souza, morta após ter seu corpo incendiado por assaltantes (um deles também menor de idade), que invadiram seu consultório em São Bernardo do Campo e jogaram álcool em seu corpo, ateando fogo na vítima após ter lhe roubado míseros trinta reais, temos em ambos os casos a publicidade de crimes atrozes, com alto teor de violência, que servem como fermento ideal para a grande mídia: a possibilidade de fazer enorme sensacionalismo e promover o populismo penal, por meio da incitação da revolta diante do sofrimento alheio e o fomento ao sentimento de ódio ao criminoso.
Em relação à mídia, ahhh, a grande mídia. Em seu livro, A Realidade dos Meios de Comunicação, o já falecido e renomado sociólogo alemão, Niklas Luhmann, já dizia que o sistema dos meios de comunicação trabalha com a notícia, operando seletivamente com a informação. Isso significa dizer que meios de comunicação como jornais e TV só vão se importar com a informação que lhes interesse, dentro da lógica do que seu próprio sistema interno entende como informação ou não. É lógico que numa sociedade capitalista, ao se acoplar com o sistema econômico, os meios de comunicação, constituídos por empresas, irão privilegiar a informação como fonte de lucro, como forma de acúmulo de capital, e, nesse sentido, só vai interessar a informação que possa ser vendida como notícia; ou seja, que possa atrair leitores e telespectadores, dando audiência, e assim garantindo anunciantes. É por isso que, segundo Luhmann, a mesma informação (que pode não conter conhecimento algum sobre a verdade dos fatos), pode ser requentada e repassada como notícia, num grau de ineditismo forjado, apenas para que se seja despertada a atenção do ouvinte ou leitor, e assim o sistema opera de acordo com função que nasceu para fazer: o de comunicar, mesmo comunicando uma inverdade. O descompromisso com a verdade é a tônica natural dos meios de comunicação, visto que eles não se importam (e nem foram feitos) para propagar verdades ou difundir conhecimento (objeto de uma necessária reflexão crítica racionalizada), mas sim foram equipados simplesmente para transmitir notícias. E nisso, o populismo penal ganha seu principal catalisador, pois a notícia sobre o crime é o principal estopim de um discurso cuja base é o emocionalismo e a irracionalidade, na proposição de alternativas aos fenômenos criminais, e não o produto de uma discussão racional entre especialistas e experts.
É por isso que a opinião pública é tão radicalmente favorável à redução da maioridade penal, todas as vezes em que os meios de comunicação propagam notícias envolvendo fatos escabrosos, criminalmente reprováveis, praticados por adolescentes. Enquanto isso, na universidade, os estudiosos e boa parte da comunidade de intelectuais e pesquisadores rechaça essa proposta, tendo em vista que a discussão sobre a maioridade deixa de se fundar no sentimentalismo e passa a ganhar contornos racionalizantes. Em primeiro lugar, o discurso racional por meio do debate científico procura desconstruir o discurso inflamado do populismo, sobre a necessidade de redução da maioridade para se punir penalmente adolescentes, atingindo uma de suas premissas principais: a notícia veiculada insistentemente nos meios de comunicação, de que crimes violentos dolosos contra à vida são praticados diariamente por adolescentes por conta de sua faixa etária, e que a não responsabilização penal desses jovens infratores como adultos, pela prática de seus atos, na forma do Código Penal, seria uma impunidade. Ora, em primeiro lugar, não é verdade que a grande maioria dos atos infracionais praticados por adolescentes infratores no país seja de crimes violentos, principalmente de crimes contra a vida. Para se dizer a verdade, não obstante o respeito ao luto e à tristeza dos familiares das vítimas de atos tão tristes e terríveis quanto aqueles que tiraram a vida de Victor Deepman ou do menino João Hélio, no Brasil, adolescentes infratores matam muito pouco!
Para que o leitor não fique chocado com a assertiva acima, basta que tenha acesso aos dados fornecidos pelo UNICEF, no seu relatório do ano de 2007 sobre atos infracionais praticados por adolescentes, ou observar o levantamento feito pelo ILANUD (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinquente), o mais respeitável órgão internacional acerca das políticas criminais globais de prevenção à violência, nos anos de 2000 a 2001 sobre atos infracionais praticados por adolescentes na cidade de São Paulo. Observa-se que, dos 2.100 adolescentes acusados, naquele período, da prática de atos assemelhados a crimes, 58,9% das acusações eram de furtos, roubos e portes de arma, enquanto que os homicídios não representavam sequer 2% dos atos violentos praticados por adolescentes. Ora, isso não significa dizer, de forma alguma, que os autores desses crimes ficarão impunes, uma vez que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, apelido da Lei nº 8.069/1990) prevê punição para adolescentes autores de atos infracionais, dos mais leves aos mais violentos, e o que deve se discutir, na verdade, é a correta aplicabilidade do ECA, inclusive se é caso de estender o prazo das medidas sócio-educativas de internamento, no caso da prática de atos infracionais cometidos com violência ou grave ameaça (como os homícidios), com um prazo maior, e não o exíguo prazo de 3 (três) anos que é previsto na lei. Para isso, é claro, as instituições protetivas encarregadas da detenção (e reinserção social) dos adolescentes, deveriam estar, obrigatoriamente, munidas de condições para que esses jovens permanecessem nesses locais como forma de dedicação ao trabalho e ao aprendizado, e não apenas lá permanecessem como escolas do crime.
Outra inverdade, que os meios de comunicação não exploram, pois não tem o compromisso com isso, é o da prática sistemática de crimes por adolescentes em concurso com adultos, sendo que, na imensa maioria dos casos, os adolescentes não são os executores ou autores imediatos dessas práticas, mas sim meros acompanhantes de seus comparsas adultos, que os corromperam ou intimidaram para participar de delitos. No caso da morte da dentista Chyntia, há poucas semanas, em São Bernardo, a polícia local já descobriu que o adolescente apreendido, envolvido no crime, não foi aquele que ateou fogo no corpo da dentista, segundo relatório do delegado responsável pela investigação do delito. Na verdade, segundo o que foi apurado pela polícia, foi um dos adultos, e não o adolescente, quem apertou um isqueiro, após ter jogado álcool na vítima, e a incendiou, após ter ficado nervoso quando a vítima disse que só tinha trinta reais na conta bancária para dar aos assaltantes. É comum em crimes de adultos praticados com o auxílio de adolescentes, os primeiros se valerem dos segundos como escudo ou como antídotos para uma suposta impunidade, fazendo com que os mais jovens respondam diretamente pela acusação das condutas mais graves, para que os criminosos adultos (os verdadeiros autores) sejam penalizados menos. Essa utilização de adolescentes, recrutando-os para práticas criminosas, com técnicas de dissuasão ou franca intimidação, assemelha-se muito ao que os criminosos de guerra fazem nos conflitos na África, onde crianças e adolescentes são recrutados para segurar pistolas e metralhadoras, e assim, exterminando sua infância, possam brincar de "polícia e ladrão", com munição de verdade, em alvos reais. A utilização criminosa de crianças e adolescentes para o crime é que deveria ser a conduta punível a ser discutida no debate público, uma vez que milhares de adolescentes pobres, da periferia das grandes cidades, são menos autores de crimes do que vítimas, e não existe passeatas para eles, nas avenidas dos grandes centros, quando anualmente o Ministério da Justiça anuncia o Mapa da Violência, onde, em 2010, 8.600 crianças e adolescentes foram mortos por maus tratos praticados por adultos, somente nas grandes cidades do Brasil. Isso não seria suficiente para se questionar quem beneficia o que com a redução da maioridade penal?
O discurso da redução da maioridade penal não se sustenta pelo velho argumento da prevenção geral negativa de que, com isso, a violência seria reduzida pela intimidação do adolescente com os efeitos da pena, por saber que pode ser responsabilizado como adulto, correndo o risco de se submeter às penas do Código Penal e consequentemente ir para a prisão, cumprindo vários anos de um período de segregação juntamente com outros presos adultos. A violência do crime não se combate com a violência da pena, uma vez que, o que está em jogo, em termos de política criminal, não é a criminalidade em si, e sim suas origens.No Brasil, está mais do que comprovado por estudos e estatísticas, que aqui, como em outros países, os problemas da violência não estão relacionados com a perversão individual ou maldade humana, mas sim com fatores externos como desigualdade social, exclusão, deficiências graves na educação escolar e familiar, além da exortação de valores capitalistas deturpados, como o individualismo e o consumismo excessivo. Tudo isso faz com que um jovem da periferia, ao entregar sua mão de obra a um traficante, prefira empunhar uma arma do que arrumar um emprego regular, visto que esse emprego é impossível, por nunca ter sido oferecido ou estimulado pelo Estado, ou por que a ausência do poder público na formação da juventude da periferia é tão grande, que muitos jovens de comunidades pobres não tem acesso sequer a uma quadra de esportes, a uma banda de música, a espetáculos de teatro, ou mesmo o direito a uma lúdica ida ao cinema com a namorada. Numa sociedade baseada no "ter" e no lucro, o espaço para políticas sociais de inclusão sempre foi deixado de lado, em prol do empreendedorismo e da lógica da redistribuição social por meio da geração de empregos na iniciativa privada, algo que nunca acontece numa sociedade cuja economia vive ciclos repentinos de crise, recessão e desemprego, como é a sociedade capitalista.
Quando intelectuais da direita brasileira, como o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ocupam os meios de comunicação de forma hipócrita e oportunista, para defender a redução da maioridade penal, baseados na tese do livre arbítrio do indivíduo, eles estão apenas requentando o velho pensamento liberal, dos primórdios da criminologia clássica, de achar que todos os indivíduos respondem igualmente por seus atos, por já terem discernimento para isso. É a velha tese da culpabilidade defendida pelo positivismo burguês, de linha liberal e individualista que já foi contrariado pela história há mais de um século. O desmantelamento do Estado liberal diante da violência da criminalidade é consequência justamente de uma visão individualista do "salve-se quem puder" ou do "cada um com seus problemas", que faz com que um ignore sempre o outro, até que o outro lhe incomoda com uma arma encostada em sua cabeça. Aumentar os cárceres dos presídios com novos apenados adolescentes apenas aumentaria o gravíssimo problema da superlotação carcerária, agravando um drama eterno do sistema prisional, que funciona apenas como o efeito colateral da ausência de políticas sociais compensatórias por parte do Estado.
Os ideólogos liberais brasileiros, assim como seus colegas norte-americanos e europeus, que no Hemisfério Norte, na última década do século passado, defenderam doutrinas como a "tolerância zero", agem irresponsavelmente ao defender a redução da maioridade penal, porque sabem do efeito devastador disso no sistema prisional dos Estados Unidos e da Inglaterra, onde se concentra a maior população carcerária do planeta. O ovo da serpente acaba por eclodir com o surgimento de uma nova mão de obra precarizada e não aproveitada que surge do enorme contingente de egressos do sistema penal, que não consegue empregos no seu retorno à sociedade, face sua eterna estigmatização como criminosos ao terem passado por um presídio, voltando a delinquir e aumentar as estatísticas da violência, em cifras extraordinárias que fazem corar de vergonha os think tanks da Nova Direita nacional, que na hora do choro sincero das vítimas de atos violentos praticados por adolescentes, apresentassem-se como paladinos da justiça, ao defenderem tratamento mais severo aos jovens autores de atos infracionais. Sobra repressão para os adolescentes pobres e pretos da periferia, permanece a impunidade de jovens ricos ou de classe média, que como Thor Batista, filho do megaempresário Eike Batista, matam ao volante trabalhadores, dirigindo caríssimos caros importados, de valores faraônicos para pobres mortais, sem que sejam aprisionados por isso; ou adolescentes irresponsáveis matam com jet-skys crianças em balneários, porque foram liberados pelos pais permissivos para trafegar com esses veículos, sem que sejam chamados de criminosos ou sequer respondam por um ato infracional. Afinal, repetindo a pergunta, a quem interessa a redução da maioridade penal?
Retornam as sombras do fascismo, o espectro do autoritarismo e de uma visão extremamente alienada ou reaçonária de sociedade, para muitos que, pela internet, com posts ofensivos, defendem ardorosamente a redução da maioridade penal. Pelo senso comum, podemos encontrar centenas de comentários nas redes sociais, tweets, e todo tipo de mensagem exortando a punição de adolescentes, cobrando-lhe maior responsabilização, equivalendo a responsabilidade penal, por exemplo, à responsabilidade eleitoral, facultada aos maiores de 16 anos, que é direito, na verdade, facultado aos mais jovens, como também aos mais velhos, e não obrigação, como é para o eleitor de 18 anos. Comparar o voto com a permissão para dirigir um automóvel ou a responsabilidade de responder criminalmente por uma conduta são argumentos rasos, falaciosos e sem o menor conhecimento técnico ou científico das regras do Direito. O apelo a argumentos inteiramente emocionais, no calor dos acontecimentos explorando-se o sofrimento das vítimas, esconde problemas muito mais graves que o Estado e a sociedade brasileira insistem em não resolver. Pessoas como Victor Deppman e Chintya de Souza foram vítimas de seus algozes, com toda certeza, mas também foram vítimas do descaso de uma sociedade que não lida (ou não quer lidar) com os problemas de sua juventude pobre. Quaisquer atos covardes de violência devem ser seriamente punidos, certamente, mas a punição generalizada de todo um universo de milhares de crianças e adolescentes, que são muito mais violentados por precaríssimas condições de vida, do que autores de crimes bárbaros, deve ser levado em conta ao final, na hora de se defender soluções drásticas, como a redução da maioridade penal. Senão corremos o risco de ser uma sociedade baseada somente na vingança e no medo.
Recordemos que na história, outras sociedades baseadas no discurso do medo acabaram por gerar o pior dos totalitarismos. Na Alemanha, após a I Guerra Mundial, os judeus foram eleitos pelos nazistas como representantes dos males da sociedade alemã. Eram eles, e não as balas dos inimigos, que tinham matado os jovens soldados alemães no front da guerra, e deveriam, por isso, serem penalizados, como foram. Agora, em pleno século XXI, no Brasil queremos eleger os nossos culpados por tanta violência e crimes bárbaros. Os nossos judeus são os jovens pobres, das favelas e periferias brasileiras, penalizados pela draconiana legislação que alguns nazistas no Parlamento querem ver aprovada, para se desfazer do problema de ter de cuidar do futuro de milhares de adolescentes à mercê da criminalidade, totalmente excluídos, rejeitados pela sociedade que os pune, além de excluir. É o surgimento do Estado-penitência no lugar do Estado-providência, segundo os dizeres de pesquisadores como Loic Wacquant.
É por isso que eu prefiro a interlocução com quem tem a capacidade mínima de entender os argumentos expostos acima, de forma racional e fundamentada, do que ouvir palavrões daqueles que acham que, ser contra a redução da maioridade penal é defender a impunidade de bandidos adolescentes. Chega de emocionalismo! Deixemos de ser alienados pela mídia! O debate sobre esse tema é muito sério, e não podemos correr o risco de sofrermos um gravíssimo retrocesso institucional, sepultando a democracia que demoramos quase um século de história republicana para conseguir, rendendo-se aos falaciosos argumentos fascistas dos retrógados defensores da redução da maioridade penal. Eu é que não fico no barco deles!
No mesmo mês a dentista Chintya foi queimada viva no seu consultório. |
Em relação à mídia, ahhh, a grande mídia. Em seu livro, A Realidade dos Meios de Comunicação, o já falecido e renomado sociólogo alemão, Niklas Luhmann, já dizia que o sistema dos meios de comunicação trabalha com a notícia, operando seletivamente com a informação. Isso significa dizer que meios de comunicação como jornais e TV só vão se importar com a informação que lhes interesse, dentro da lógica do que seu próprio sistema interno entende como informação ou não. É lógico que numa sociedade capitalista, ao se acoplar com o sistema econômico, os meios de comunicação, constituídos por empresas, irão privilegiar a informação como fonte de lucro, como forma de acúmulo de capital, e, nesse sentido, só vai interessar a informação que possa ser vendida como notícia; ou seja, que possa atrair leitores e telespectadores, dando audiência, e assim garantindo anunciantes. É por isso que, segundo Luhmann, a mesma informação (que pode não conter conhecimento algum sobre a verdade dos fatos), pode ser requentada e repassada como notícia, num grau de ineditismo forjado, apenas para que se seja despertada a atenção do ouvinte ou leitor, e assim o sistema opera de acordo com função que nasceu para fazer: o de comunicar, mesmo comunicando uma inverdade. O descompromisso com a verdade é a tônica natural dos meios de comunicação, visto que eles não se importam (e nem foram feitos) para propagar verdades ou difundir conhecimento (objeto de uma necessária reflexão crítica racionalizada), mas sim foram equipados simplesmente para transmitir notícias. E nisso, o populismo penal ganha seu principal catalisador, pois a notícia sobre o crime é o principal estopim de um discurso cuja base é o emocionalismo e a irracionalidade, na proposição de alternativas aos fenômenos criminais, e não o produto de uma discussão racional entre especialistas e experts.
É por isso que a opinião pública é tão radicalmente favorável à redução da maioridade penal, todas as vezes em que os meios de comunicação propagam notícias envolvendo fatos escabrosos, criminalmente reprováveis, praticados por adolescentes. Enquanto isso, na universidade, os estudiosos e boa parte da comunidade de intelectuais e pesquisadores rechaça essa proposta, tendo em vista que a discussão sobre a maioridade deixa de se fundar no sentimentalismo e passa a ganhar contornos racionalizantes. Em primeiro lugar, o discurso racional por meio do debate científico procura desconstruir o discurso inflamado do populismo, sobre a necessidade de redução da maioridade para se punir penalmente adolescentes, atingindo uma de suas premissas principais: a notícia veiculada insistentemente nos meios de comunicação, de que crimes violentos dolosos contra à vida são praticados diariamente por adolescentes por conta de sua faixa etária, e que a não responsabilização penal desses jovens infratores como adultos, pela prática de seus atos, na forma do Código Penal, seria uma impunidade. Ora, em primeiro lugar, não é verdade que a grande maioria dos atos infracionais praticados por adolescentes infratores no país seja de crimes violentos, principalmente de crimes contra a vida. Para se dizer a verdade, não obstante o respeito ao luto e à tristeza dos familiares das vítimas de atos tão tristes e terríveis quanto aqueles que tiraram a vida de Victor Deepman ou do menino João Hélio, no Brasil, adolescentes infratores matam muito pouco!
Para que o leitor não fique chocado com a assertiva acima, basta que tenha acesso aos dados fornecidos pelo UNICEF, no seu relatório do ano de 2007 sobre atos infracionais praticados por adolescentes, ou observar o levantamento feito pelo ILANUD (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinquente), o mais respeitável órgão internacional acerca das políticas criminais globais de prevenção à violência, nos anos de 2000 a 2001 sobre atos infracionais praticados por adolescentes na cidade de São Paulo. Observa-se que, dos 2.100 adolescentes acusados, naquele período, da prática de atos assemelhados a crimes, 58,9% das acusações eram de furtos, roubos e portes de arma, enquanto que os homicídios não representavam sequer 2% dos atos violentos praticados por adolescentes. Ora, isso não significa dizer, de forma alguma, que os autores desses crimes ficarão impunes, uma vez que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, apelido da Lei nº 8.069/1990) prevê punição para adolescentes autores de atos infracionais, dos mais leves aos mais violentos, e o que deve se discutir, na verdade, é a correta aplicabilidade do ECA, inclusive se é caso de estender o prazo das medidas sócio-educativas de internamento, no caso da prática de atos infracionais cometidos com violência ou grave ameaça (como os homícidios), com um prazo maior, e não o exíguo prazo de 3 (três) anos que é previsto na lei. Para isso, é claro, as instituições protetivas encarregadas da detenção (e reinserção social) dos adolescentes, deveriam estar, obrigatoriamente, munidas de condições para que esses jovens permanecessem nesses locais como forma de dedicação ao trabalho e ao aprendizado, e não apenas lá permanecessem como escolas do crime.
Outra inverdade, que os meios de comunicação não exploram, pois não tem o compromisso com isso, é o da prática sistemática de crimes por adolescentes em concurso com adultos, sendo que, na imensa maioria dos casos, os adolescentes não são os executores ou autores imediatos dessas práticas, mas sim meros acompanhantes de seus comparsas adultos, que os corromperam ou intimidaram para participar de delitos. No caso da morte da dentista Chyntia, há poucas semanas, em São Bernardo, a polícia local já descobriu que o adolescente apreendido, envolvido no crime, não foi aquele que ateou fogo no corpo da dentista, segundo relatório do delegado responsável pela investigação do delito. Na verdade, segundo o que foi apurado pela polícia, foi um dos adultos, e não o adolescente, quem apertou um isqueiro, após ter jogado álcool na vítima, e a incendiou, após ter ficado nervoso quando a vítima disse que só tinha trinta reais na conta bancária para dar aos assaltantes. É comum em crimes de adultos praticados com o auxílio de adolescentes, os primeiros se valerem dos segundos como escudo ou como antídotos para uma suposta impunidade, fazendo com que os mais jovens respondam diretamente pela acusação das condutas mais graves, para que os criminosos adultos (os verdadeiros autores) sejam penalizados menos. Essa utilização de adolescentes, recrutando-os para práticas criminosas, com técnicas de dissuasão ou franca intimidação, assemelha-se muito ao que os criminosos de guerra fazem nos conflitos na África, onde crianças e adolescentes são recrutados para segurar pistolas e metralhadoras, e assim, exterminando sua infância, possam brincar de "polícia e ladrão", com munição de verdade, em alvos reais. A utilização criminosa de crianças e adolescentes para o crime é que deveria ser a conduta punível a ser discutida no debate público, uma vez que milhares de adolescentes pobres, da periferia das grandes cidades, são menos autores de crimes do que vítimas, e não existe passeatas para eles, nas avenidas dos grandes centros, quando anualmente o Ministério da Justiça anuncia o Mapa da Violência, onde, em 2010, 8.600 crianças e adolescentes foram mortos por maus tratos praticados por adultos, somente nas grandes cidades do Brasil. Isso não seria suficiente para se questionar quem beneficia o que com a redução da maioridade penal?
O discurso da redução da maioridade penal não se sustenta pelo velho argumento da prevenção geral negativa de que, com isso, a violência seria reduzida pela intimidação do adolescente com os efeitos da pena, por saber que pode ser responsabilizado como adulto, correndo o risco de se submeter às penas do Código Penal e consequentemente ir para a prisão, cumprindo vários anos de um período de segregação juntamente com outros presos adultos. A violência do crime não se combate com a violência da pena, uma vez que, o que está em jogo, em termos de política criminal, não é a criminalidade em si, e sim suas origens.No Brasil, está mais do que comprovado por estudos e estatísticas, que aqui, como em outros países, os problemas da violência não estão relacionados com a perversão individual ou maldade humana, mas sim com fatores externos como desigualdade social, exclusão, deficiências graves na educação escolar e familiar, além da exortação de valores capitalistas deturpados, como o individualismo e o consumismo excessivo. Tudo isso faz com que um jovem da periferia, ao entregar sua mão de obra a um traficante, prefira empunhar uma arma do que arrumar um emprego regular, visto que esse emprego é impossível, por nunca ter sido oferecido ou estimulado pelo Estado, ou por que a ausência do poder público na formação da juventude da periferia é tão grande, que muitos jovens de comunidades pobres não tem acesso sequer a uma quadra de esportes, a uma banda de música, a espetáculos de teatro, ou mesmo o direito a uma lúdica ida ao cinema com a namorada. Numa sociedade baseada no "ter" e no lucro, o espaço para políticas sociais de inclusão sempre foi deixado de lado, em prol do empreendedorismo e da lógica da redistribuição social por meio da geração de empregos na iniciativa privada, algo que nunca acontece numa sociedade cuja economia vive ciclos repentinos de crise, recessão e desemprego, como é a sociedade capitalista.
Quando intelectuais da direita brasileira, como o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ocupam os meios de comunicação de forma hipócrita e oportunista, para defender a redução da maioridade penal, baseados na tese do livre arbítrio do indivíduo, eles estão apenas requentando o velho pensamento liberal, dos primórdios da criminologia clássica, de achar que todos os indivíduos respondem igualmente por seus atos, por já terem discernimento para isso. É a velha tese da culpabilidade defendida pelo positivismo burguês, de linha liberal e individualista que já foi contrariado pela história há mais de um século. O desmantelamento do Estado liberal diante da violência da criminalidade é consequência justamente de uma visão individualista do "salve-se quem puder" ou do "cada um com seus problemas", que faz com que um ignore sempre o outro, até que o outro lhe incomoda com uma arma encostada em sua cabeça. Aumentar os cárceres dos presídios com novos apenados adolescentes apenas aumentaria o gravíssimo problema da superlotação carcerária, agravando um drama eterno do sistema prisional, que funciona apenas como o efeito colateral da ausência de políticas sociais compensatórias por parte do Estado.
Reclamamos da violência, mas fazemos alguma coisa por essas crianças? |
Retornam as sombras do fascismo, o espectro do autoritarismo e de uma visão extremamente alienada ou reaçonária de sociedade, para muitos que, pela internet, com posts ofensivos, defendem ardorosamente a redução da maioridade penal. Pelo senso comum, podemos encontrar centenas de comentários nas redes sociais, tweets, e todo tipo de mensagem exortando a punição de adolescentes, cobrando-lhe maior responsabilização, equivalendo a responsabilidade penal, por exemplo, à responsabilidade eleitoral, facultada aos maiores de 16 anos, que é direito, na verdade, facultado aos mais jovens, como também aos mais velhos, e não obrigação, como é para o eleitor de 18 anos. Comparar o voto com a permissão para dirigir um automóvel ou a responsabilidade de responder criminalmente por uma conduta são argumentos rasos, falaciosos e sem o menor conhecimento técnico ou científico das regras do Direito. O apelo a argumentos inteiramente emocionais, no calor dos acontecimentos explorando-se o sofrimento das vítimas, esconde problemas muito mais graves que o Estado e a sociedade brasileira insistem em não resolver. Pessoas como Victor Deppman e Chintya de Souza foram vítimas de seus algozes, com toda certeza, mas também foram vítimas do descaso de uma sociedade que não lida (ou não quer lidar) com os problemas de sua juventude pobre. Quaisquer atos covardes de violência devem ser seriamente punidos, certamente, mas a punição generalizada de todo um universo de milhares de crianças e adolescentes, que são muito mais violentados por precaríssimas condições de vida, do que autores de crimes bárbaros, deve ser levado em conta ao final, na hora de se defender soluções drásticas, como a redução da maioridade penal. Senão corremos o risco de ser uma sociedade baseada somente na vingança e no medo.
Recordemos que na história, outras sociedades baseadas no discurso do medo acabaram por gerar o pior dos totalitarismos. Na Alemanha, após a I Guerra Mundial, os judeus foram eleitos pelos nazistas como representantes dos males da sociedade alemã. Eram eles, e não as balas dos inimigos, que tinham matado os jovens soldados alemães no front da guerra, e deveriam, por isso, serem penalizados, como foram. Agora, em pleno século XXI, no Brasil queremos eleger os nossos culpados por tanta violência e crimes bárbaros. Os nossos judeus são os jovens pobres, das favelas e periferias brasileiras, penalizados pela draconiana legislação que alguns nazistas no Parlamento querem ver aprovada, para se desfazer do problema de ter de cuidar do futuro de milhares de adolescentes à mercê da criminalidade, totalmente excluídos, rejeitados pela sociedade que os pune, além de excluir. É o surgimento do Estado-penitência no lugar do Estado-providência, segundo os dizeres de pesquisadores como Loic Wacquant.
É por isso que eu prefiro a interlocução com quem tem a capacidade mínima de entender os argumentos expostos acima, de forma racional e fundamentada, do que ouvir palavrões daqueles que acham que, ser contra a redução da maioridade penal é defender a impunidade de bandidos adolescentes. Chega de emocionalismo! Deixemos de ser alienados pela mídia! O debate sobre esse tema é muito sério, e não podemos correr o risco de sofrermos um gravíssimo retrocesso institucional, sepultando a democracia que demoramos quase um século de história republicana para conseguir, rendendo-se aos falaciosos argumentos fascistas dos retrógados defensores da redução da maioridade penal. Eu é que não fico no barco deles!
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