quinta-feira, 15 de maio de 2014

DESPREPARO: Entrar numa delegacia para levar tiro de policiais. É isso que se chama de "servir e proteger"?

Despreparo e paranoia parecem ter sido a combinação perversa que resultou na morte do médico Ricardo Assanome, em uma delegacia no ABC paulista. Assanome, médico pediatra, de 27 anos, tinha ido a delegacia apenas para relatar um acidente de trânsito, e estava registrando um boletim de ocorrência no 2º Distrito Policial de Santo André, quando se iniciou um tiroteio dentro da delegacia, iniciado pelos próprios policiais, e que resultou na morte do pediatra.

No funeral de Ricardo Assanome, a revolta.
Segundo a versão apurada pela Polícia de São Paulo, tudo não passou de um mal entendido, produzido pelo agente de comunicações, André Bordwell da Silva, que, ao ver um indivíduo de capacete, correndo apressado para dentro da delegacia, pensou estar sendo vítima de um ataque de bandidos e abriu fogo dentro da própria delegacia, contra o suposto invasor. O médico Ricardo acabou sendo atingido mortalmente por uma das balas disparadas pelo policial. Na ocasião, para piorar as coisas, num tumulto generalizado, outros investigadores, colegas do agente André, tiveram que disparar contra o próprio companheiro de trabalho para pará-lo, findando os disparos quando o principal atirador foi ferido em meio ao tiroteio.

Descobriu-se que o pivô da confusão era apenas um policial militar à paisana, que pressentindo a ação de bandidos enquanto trafegava sua motocicleta, na iminência de um assalto, saiu em disparada em direção à delegacia, perseguido por seus algozes, quando entrou esbaforido dentro da unidade policial pedindo ajuda. Ao invés de encontrar o auxílio e a proteção policial de que tanto necessitava, o referido PM acabou sendo recebido por uma saraivada de balas.

Além da instauração de inquérito policial, com a prisão em flagrante do agente André Bordweel, pela acusação de homicídio doloso,  após sua saída do hospital, também foi instaurado processo administrativo na Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo. Recorda-se que André foi acusado de homicídio com dolo eventual, uma vez que, sendo um agente público armado, dentro de uma repartição repleta de pessoas, principalmente de populares, que vão à delegacia em busca de atendimento, o policial assumiu o risco de ser responsabilizado penalmente por sua conduta, ao efetuar disparos de arma de fogo dentro do local. Naturalmente a defesa do agente de polícia deverá entrar com a tese da legítima defesa putativa, uma vez que o autor do fato acreditava piamente que estava sendo vítima de uma agressão, que se constatou imaginária. 

O problema maior no drama que resultou na morte do médico Ricardo Assanome não é nem tanto a franca responsabilidade de um agente público diante da morte de um inocente, a quem deveria proteger; mas sim o despreparo flagrante de policiais no estado de São Paulo, principalmente em termos psicológicos. A capital paulista e a grande São Paulo são a expressão mais caótica da urbe, com a insegurança e violência criminal típicas de regiões com grande circulação de pessoas e capital. Nessa realidade, é comum policiais trabalharem com altos graus de stress, o que atrapalha seu senso de julgamento em momentos de crise e os levam a ações precipitadas, diante de situações de emergência que envolvem um rápido discernimento. 

Muitos dirão, portanto, que se tratou de uma fatalidade, o triste episódio que envolveu a morte do médico paulista em uma delegacia do ABC. "Poderia ter acontecido com qualquer um", poderiam dizer alguns, "azar o dele", poderiam dizer outros mais insensíveis, ou, simplesmente, poderíamos estar afirmando que o médico estava na hora errada e no momento errado e pouco haveria de ser feito. É lamentável que se pense assim. Quando uma sociedade legitima sua polícia, habilitando o Estado a municiar agentes armados para que estes realizem o policiamento, está se pressupondo que tais agentes agirão com responsabilidade, valendo-se da força somente nos casos previstos em lei, de forma moderada e proporcional, principalmente ao se tratar de uma força armada. O grande problema é que, aliado ao despreparo para usar armas, muitos policiais acabam compartilhando a visão do senso comum onde, diante de uma agressão iminente, a melhor postura é sempre se defender atacando, "metendo bala", como se diz no jargão policial. Isso equivale a situações em que o policial não se diferencia em nada do cidadão comum, atemorizado, pois se revela tão e simplesmente um indivíduo com medo, que no desespero pode fazer coisas absurdas, como disparar uma arma num ambiente onde, naturalmente, ele deveria se sentir seguro. Afinal, pessoas procuram uma delegacia ou posto policial para se sentirem seguras, com a convicção de que serão bem atendidas e protegidas, e não o contrário. Infelizmente, a conduta do policial civil do 2º Distrito acabou depondo totalmente contra essa espectativa.


Acredito que somente com uma devida formação nas academias de polícia, e, principalmente, com um forte monitoramento e treinamento sistemático e periódico de policiais, simulando-se situações de perigo e stress com cobrança de pronta reação adequada, será possível se ter um efetivo policial mais qualificado, que não se deixe levar por situações hipotéticas de violência, que acabam redundando na perda inútil de vidas inocentes. Soma-se a isso o quadro de insegurança nas próprias unidades policiais paulistas, vítimas em anos recentes de ações criminosas de organizações como o PCC (Primeiro Comando da Capital), com ataques de bandidos a delegacias, o que deve ter se tornado objeto de temor do policial André Bordwell, que acabou produzindo o triste fato, que ganhou as manchetes nacionais quando aconteceu.

domingo, 4 de maio de 2014

BARBÁRIE: O linchamento do Guarujá e a internet como fomento da multidão delinquente

Quando o filósofo inglês, Thomas Hobbes, escreveu o Leviatã, em  1651, ele estabelecia que "o homem era lobo do próprio homem". Isso implicava em dizer que, num estado de natureza, em que os homens se encontrassem nas condições mais primitivas, eles não seriam diferentes de outros animais selvagens, e, diante da necessidade ou seduzidos por seus impulsos, poderiam cometer as maiores violências e atrocidades.

Foi num retorno ao estado de natureza que eu concebi o triste episódio envolvendo a jovem dona de casa, Fabiane Maria de Jesus, de trinta e três e anos, no subúrbio de  Morrinhos, na pequena cidade de Guarujá, no estado de São Paulo. Fabiane foi linchada na rua por populares, acusada de um crime que não cometeu, que sequer pode ter existido e que ela nem sabia que estava acontecendo. Fabiane tinha uma vida pacata, junto com o marido e as duas filhas, religiosa, costumava carregar uma bíblia com a foto das filhas guardadas em seu interior,  e talvez seu único erro (se é que dá pra se falar nisso), no fatídico dia 3 de maio, que causou a sua morte, foi ter pintado seus cabelos de loiro!!!

Aconteceu que, no mesmo dia em que Fabiane saiu à rua para se dirigir ao supermercado, após sair da casa de uma amiga, circulava nas redes sociais da cidade a notícia sem fundamento de que uma mulher de cabelos cacheados e loiros, com aparência semelhante a de Fabiane, estaria andando pela cidade, sequestrando crianças, matando-as e as utilizando em rituais de magia negra. A comoção do fato divulgado na internet espalhou-se pela comunidade, e diante de sentimentos primários de medo, ódio e insegurança, descrentes da ação do Estado e da efetiva ação policial na captura da misteriosa criminosa, dezenas de moradores de Morrinhos resolveram sair às ruas e fazer justiça por conta própria. No seu caminho, encontraram Fabiane, e no caminho dela, ela veio encontrar a morte, da forma mais estúpida e brutal possível.

Confundida com a suposta abusadora de crianças, Fabiane foi pega de surpresa e não teve sequer condições de reagir, atingida na boca antes mesmo que pudesse pedir socorro, sendo agredida repetidamente e violentamente por uma multidão ensandecida de pessoas que a espancaram, mediante pedradas, socos e pontapés. Socorrida ainda com vida e levada a atendimento médico, Fabiane entrou em coma com traumatismo craniano e não resistiu aos ferimentos, morrendo no hospital.

A localidade do Guarujá nem de longe hoje espelha o que era nos anos oitenta do século passado, quando milhares de turistas dirigiam-se para lá, no litoral paulista, como um badalado balneário frequentado por surfistas, estrelas de TV e jogadores de futebol. Atingida pela crise econômica no setor de turismo, nos últimos anos, o Guarujá viu aumentar uma população de periferia e baixa renda, com baixa escolaridade, e responsável pela mão de obra subalterna no setor de serviços nos hotéis e restaurantes ainda presentes na região.

A agressão sofrida por Fabiane espelha bem o quadro de histeria e insegurança coletiva que vem atormentando a sociedade brasileira nos últimos anos, principalmente na periferia dos grandes centros urbanos. No mês anterior, a imagem de um adolescente negro, espancado e despido, acorrentado  no meio da rua por uma trava de bicicleta numa barra de ferro no Rio de Janeiro, revelou ao Brasil e ao mundo o quanto esse sentimento de insegurança e temor ao crime levou parte da população a adotar soluções extremas, ilegais, degradantes e terrivelmente banalizadoras da violência. Junto a isso, somou-se o apoio mesquinho dos meios de comunicação, quando a telejornalista do SBT, Rachel Sheherazade, aumentou a polêmica ao comentar na TV com desdém a situação do jovem negro espancado, justificando a conduta de seus algozes, sugerindo aos que reclamavam da agressão a adoção do lema: "adote um preso".

Ora, suscitar a violência como a citada apresentadora de telejornal suscitou nos meios de comunicação, ou a ação irresponsável de pessoas na internet divulgando falsos crimes e criando um crime de alarde, a ponto de mobilizar pessoas nas ruas a promover linchamentos, apenas me faz recordar os primeiros capítulos da obra de Hobbes, que após quase quatrocentos anos ainda ganha impressionante atualidade. Jogando para fora as regras mínimas de civilidade, as populações da periferia, carentes de políticas públicas do Estado, ainda tímidas aos mais pobres como educação e segurança, acabam por promover a autotutela, promovendo justiciamentos precipitados, atacando pessoas erradas, ou mesmo simplesmente valendo-se de uma violência que não lhes é autorizado utilizar. O Estado moderno e constitucional surgiu para mediar e conter conflitos, aplicar a lei e promover a Justiça, resguardando-se de princípios de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando o contraditório, e nunca se valendo da força bruta sem fundamento algum. No momento em que uma comunidade não confia no Estado e na sua polícia, não procura os agentes públicos para apurar denúncias, e saí às ruas por conta própria atrás de culpados, vivemos um tempo difícil e tenebroso de insegurança causada não apenas pela criminalidade comum e tradicional nos grandes centros urbanos, mas de medo do outro, numa terrível situação de termos de nos proteger uns dos outros.

Onde está a civilização e onde fica a barbárie, em episódios como esse, como o do linchamento da pobre Fabiane de Jesus? Qual a responsabilidade dos meios de comunicação nisso, e como responsabilizar autores anônimos na internet, ocultos, que mediante visões radicalmente equivocadas e reaçonárias pregam um discurso e uma política do ódio, que acabava por insuflar parte da população? Ao invés de prevenir crimes, esses arautos da discórdia na verdade estão transformando cidadãos inocentes em criminosos, preparando o ovo da serpente, e são poucos os que podem se opor a isso, dentro da ignorância do senso comum a iludir mal informados e mal cuidados cidadãos da periferia. Mesmo com a eventual responsabilização dos assassinos de Fabiane, temo que novas Fabianes possam aparecer por aí, talvez tão ou mais violentadas, como foi a triste dona de casa paulista. Em todo e qualquer linchamento, está na hora de olharmos intimamente para a nossa consciência, e pregar a Justiça no lugar da revolta, e ao pensar na primeira, lembre-se de nunca atirar a primeira pedra!