Despreparo e paranoia parecem ter sido a combinação perversa que resultou na morte do médico Ricardo Assanome, em uma delegacia no ABC paulista. Assanome, médico pediatra, de 27 anos, tinha ido a delegacia apenas para relatar um acidente de trânsito, e estava registrando um boletim de ocorrência no 2º Distrito Policial de Santo André, quando se iniciou um tiroteio dentro da delegacia, iniciado pelos próprios policiais, e que resultou na morte do pediatra.
No funeral de Ricardo Assanome, a revolta. |
Segundo a versão apurada pela Polícia de São Paulo, tudo não passou de um mal entendido, produzido pelo agente de comunicações, André Bordwell da Silva, que, ao ver um indivíduo de capacete, correndo apressado para dentro da delegacia, pensou estar sendo vítima de um ataque de bandidos e abriu fogo dentro da própria delegacia, contra o suposto invasor. O médico Ricardo acabou sendo atingido mortalmente por uma das balas disparadas pelo policial. Na ocasião, para piorar as coisas, num tumulto generalizado, outros investigadores, colegas do agente André, tiveram que disparar contra o próprio companheiro de trabalho para pará-lo, findando os disparos quando o principal atirador foi ferido em meio ao tiroteio.
Descobriu-se que o pivô da confusão era apenas um policial militar à paisana, que pressentindo a ação de bandidos enquanto trafegava sua motocicleta, na iminência de um assalto, saiu em disparada em direção à delegacia, perseguido por seus algozes, quando entrou esbaforido dentro da unidade policial pedindo ajuda. Ao invés de encontrar o auxílio e a proteção policial de que tanto necessitava, o referido PM acabou sendo recebido por uma saraivada de balas.
Além da instauração de inquérito policial, com a prisão em flagrante do agente André Bordweel, pela acusação de homicídio doloso, após sua saída do hospital, também foi instaurado processo administrativo na Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo. Recorda-se que André foi acusado de homicídio com dolo eventual, uma vez que, sendo um agente público armado, dentro de uma repartição repleta de pessoas, principalmente de populares, que vão à delegacia em busca de atendimento, o policial assumiu o risco de ser responsabilizado penalmente por sua conduta, ao efetuar disparos de arma de fogo dentro do local. Naturalmente a defesa do agente de polícia deverá entrar com a tese da legítima defesa putativa, uma vez que o autor do fato acreditava piamente que estava sendo vítima de uma agressão, que se constatou imaginária.
O problema maior no drama que resultou na morte do médico Ricardo Assanome não é nem tanto a franca responsabilidade de um agente público diante da morte de um inocente, a quem deveria proteger; mas sim o despreparo flagrante de policiais no estado de São Paulo, principalmente em termos psicológicos. A capital paulista e a grande São Paulo são a expressão mais caótica da urbe, com a insegurança e violência criminal típicas de regiões com grande circulação de pessoas e capital. Nessa realidade, é comum policiais trabalharem com altos graus de stress, o que atrapalha seu senso de julgamento em momentos de crise e os levam a ações precipitadas, diante de situações de emergência que envolvem um rápido discernimento.
Muitos dirão, portanto, que se tratou de uma fatalidade, o triste episódio que envolveu a morte do médico paulista em uma delegacia do ABC. "Poderia ter acontecido com qualquer um", poderiam dizer alguns, "azar o dele", poderiam dizer outros mais insensíveis, ou, simplesmente, poderíamos estar afirmando que o médico estava na hora errada e no momento errado e pouco haveria de ser feito. É lamentável que se pense assim. Quando uma sociedade legitima sua polícia, habilitando o Estado a municiar agentes armados para que estes realizem o policiamento, está se pressupondo que tais agentes agirão com responsabilidade, valendo-se da força somente nos casos previstos em lei, de forma moderada e proporcional, principalmente ao se tratar de uma força armada. O grande problema é que, aliado ao despreparo para usar armas, muitos policiais acabam compartilhando a visão do senso comum onde, diante de uma agressão iminente, a melhor postura é sempre se defender atacando, "metendo bala", como se diz no jargão policial. Isso equivale a situações em que o policial não se diferencia em nada do cidadão comum, atemorizado, pois se revela tão e simplesmente um indivíduo com medo, que no desespero pode fazer coisas absurdas, como disparar uma arma num ambiente onde, naturalmente, ele deveria se sentir seguro. Afinal, pessoas procuram uma delegacia ou posto policial para se sentirem seguras, com a convicção de que serão bem atendidas e protegidas, e não o contrário. Infelizmente, a conduta do policial civil do 2º Distrito acabou depondo totalmente contra essa espectativa.
Acredito que somente com uma devida formação nas academias de polícia, e, principalmente, com um forte monitoramento e treinamento sistemático e periódico de policiais, simulando-se situações de perigo e stress com cobrança de pronta reação adequada, será possível se ter um efetivo policial mais qualificado, que não se deixe levar por situações hipotéticas de violência, que acabam redundando na perda inútil de vidas inocentes. Soma-se a isso o quadro de insegurança nas próprias unidades policiais paulistas, vítimas em anos recentes de ações criminosas de organizações como o PCC (Primeiro Comando da Capital), com ataques de bandidos a delegacias, o que deve ter se tornado objeto de temor do policial André Bordwell, que acabou produzindo o triste fato, que ganhou as manchetes nacionais quando aconteceu.
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