Quando o filósofo inglês, Thomas Hobbes, escreveu o Leviatã, em 1651, ele estabelecia que "o homem era lobo do próprio homem". Isso implicava em dizer que, num estado de natureza, em que os homens se encontrassem nas condições mais primitivas, eles não seriam diferentes de outros animais selvagens, e, diante da necessidade ou seduzidos por seus impulsos, poderiam cometer as maiores violências e atrocidades.
Foi num retorno ao estado de natureza que eu concebi o triste episódio envolvendo a jovem dona de casa, Fabiane Maria de Jesus, de trinta e três e anos, no subúrbio de Morrinhos, na pequena cidade de Guarujá, no estado de São Paulo. Fabiane foi linchada na rua por populares, acusada de um crime que não cometeu, que sequer pode ter existido e que ela nem sabia que estava acontecendo. Fabiane tinha uma vida pacata, junto com o marido e as duas filhas, religiosa, costumava carregar uma bíblia com a foto das filhas guardadas em seu interior, e talvez seu único erro (se é que dá pra se falar nisso), no fatídico dia 3 de maio, que causou a sua morte, foi ter pintado seus cabelos de loiro!!!
Aconteceu que, no mesmo dia em que Fabiane saiu à rua para se dirigir ao supermercado, após sair da casa de uma amiga, circulava nas redes sociais da cidade a notícia sem fundamento de que uma mulher de cabelos cacheados e loiros, com aparência semelhante a de Fabiane, estaria andando pela cidade, sequestrando crianças, matando-as e as utilizando em rituais de magia negra. A comoção do fato divulgado na internet espalhou-se pela comunidade, e diante de sentimentos primários de medo, ódio e insegurança, descrentes da ação do Estado e da efetiva ação policial na captura da misteriosa criminosa, dezenas de moradores de Morrinhos resolveram sair às ruas e fazer justiça por conta própria. No seu caminho, encontraram Fabiane, e no caminho dela, ela veio encontrar a morte, da forma mais estúpida e brutal possível.
Confundida com a suposta abusadora de crianças, Fabiane foi pega de surpresa e não teve sequer condições de reagir, atingida na boca antes mesmo que pudesse pedir socorro, sendo agredida repetidamente e violentamente por uma multidão ensandecida de pessoas que a espancaram, mediante pedradas, socos e pontapés. Socorrida ainda com vida e levada a atendimento médico, Fabiane entrou em coma com traumatismo craniano e não resistiu aos ferimentos, morrendo no hospital.
A localidade do Guarujá nem de longe hoje espelha o que era nos anos oitenta do século passado, quando milhares de turistas dirigiam-se para lá, no litoral paulista, como um badalado balneário frequentado por surfistas, estrelas de TV e jogadores de futebol. Atingida pela crise econômica no setor de turismo, nos últimos anos, o Guarujá viu aumentar uma população de periferia e baixa renda, com baixa escolaridade, e responsável pela mão de obra subalterna no setor de serviços nos hotéis e restaurantes ainda presentes na região.
A agressão sofrida por Fabiane espelha bem o quadro de histeria e insegurança coletiva que vem atormentando a sociedade brasileira nos últimos anos, principalmente na periferia dos grandes centros urbanos. No mês anterior, a imagem de um adolescente negro, espancado e despido, acorrentado no meio da rua por uma trava de bicicleta numa barra de ferro no Rio de Janeiro, revelou ao Brasil e ao mundo o quanto esse sentimento de insegurança e temor ao crime levou parte da população a adotar soluções extremas, ilegais, degradantes e terrivelmente banalizadoras da violência. Junto a isso, somou-se o apoio mesquinho dos meios de comunicação, quando a telejornalista do SBT, Rachel Sheherazade, aumentou a polêmica ao comentar na TV com desdém a situação do jovem negro espancado, justificando a conduta de seus algozes, sugerindo aos que reclamavam da agressão a adoção do lema: "adote um preso".
Ora, suscitar a violência como a citada apresentadora de telejornal suscitou nos meios de comunicação, ou a ação irresponsável de pessoas na internet divulgando falsos crimes e criando um crime de alarde, a ponto de mobilizar pessoas nas ruas a promover linchamentos, apenas me faz recordar os primeiros capítulos da obra de Hobbes, que após quase quatrocentos anos ainda ganha impressionante atualidade. Jogando para fora as regras mínimas de civilidade, as populações da periferia, carentes de políticas públicas do Estado, ainda tímidas aos mais pobres como educação e segurança, acabam por promover a autotutela, promovendo justiciamentos precipitados, atacando pessoas erradas, ou mesmo simplesmente valendo-se de uma violência que não lhes é autorizado utilizar. O Estado moderno e constitucional surgiu para mediar e conter conflitos, aplicar a lei e promover a Justiça, resguardando-se de princípios de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando o contraditório, e nunca se valendo da força bruta sem fundamento algum. No momento em que uma comunidade não confia no Estado e na sua polícia, não procura os agentes públicos para apurar denúncias, e saí às ruas por conta própria atrás de culpados, vivemos um tempo difícil e tenebroso de insegurança causada não apenas pela criminalidade comum e tradicional nos grandes centros urbanos, mas de medo do outro, numa terrível situação de termos de nos proteger uns dos outros.
Onde está a civilização e onde fica a barbárie, em episódios como esse, como o do linchamento da pobre Fabiane de Jesus? Qual a responsabilidade dos meios de comunicação nisso, e como responsabilizar autores anônimos na internet, ocultos, que mediante visões radicalmente equivocadas e reaçonárias pregam um discurso e uma política do ódio, que acabava por insuflar parte da população? Ao invés de prevenir crimes, esses arautos da discórdia na verdade estão transformando cidadãos inocentes em criminosos, preparando o ovo da serpente, e são poucos os que podem se opor a isso, dentro da ignorância do senso comum a iludir mal informados e mal cuidados cidadãos da periferia. Mesmo com a eventual responsabilização dos assassinos de Fabiane, temo que novas Fabianes possam aparecer por aí, talvez tão ou mais violentadas, como foi a triste dona de casa paulista. Em todo e qualquer linchamento, está na hora de olharmos intimamente para a nossa consciência, e pregar a Justiça no lugar da revolta, e ao pensar na primeira, lembre-se de nunca atirar a primeira pedra!
Foi num retorno ao estado de natureza que eu concebi o triste episódio envolvendo a jovem dona de casa, Fabiane Maria de Jesus, de trinta e três e anos, no subúrbio de Morrinhos, na pequena cidade de Guarujá, no estado de São Paulo. Fabiane foi linchada na rua por populares, acusada de um crime que não cometeu, que sequer pode ter existido e que ela nem sabia que estava acontecendo. Fabiane tinha uma vida pacata, junto com o marido e as duas filhas, religiosa, costumava carregar uma bíblia com a foto das filhas guardadas em seu interior, e talvez seu único erro (se é que dá pra se falar nisso), no fatídico dia 3 de maio, que causou a sua morte, foi ter pintado seus cabelos de loiro!!!
Aconteceu que, no mesmo dia em que Fabiane saiu à rua para se dirigir ao supermercado, após sair da casa de uma amiga, circulava nas redes sociais da cidade a notícia sem fundamento de que uma mulher de cabelos cacheados e loiros, com aparência semelhante a de Fabiane, estaria andando pela cidade, sequestrando crianças, matando-as e as utilizando em rituais de magia negra. A comoção do fato divulgado na internet espalhou-se pela comunidade, e diante de sentimentos primários de medo, ódio e insegurança, descrentes da ação do Estado e da efetiva ação policial na captura da misteriosa criminosa, dezenas de moradores de Morrinhos resolveram sair às ruas e fazer justiça por conta própria. No seu caminho, encontraram Fabiane, e no caminho dela, ela veio encontrar a morte, da forma mais estúpida e brutal possível.
Confundida com a suposta abusadora de crianças, Fabiane foi pega de surpresa e não teve sequer condições de reagir, atingida na boca antes mesmo que pudesse pedir socorro, sendo agredida repetidamente e violentamente por uma multidão ensandecida de pessoas que a espancaram, mediante pedradas, socos e pontapés. Socorrida ainda com vida e levada a atendimento médico, Fabiane entrou em coma com traumatismo craniano e não resistiu aos ferimentos, morrendo no hospital.
A localidade do Guarujá nem de longe hoje espelha o que era nos anos oitenta do século passado, quando milhares de turistas dirigiam-se para lá, no litoral paulista, como um badalado balneário frequentado por surfistas, estrelas de TV e jogadores de futebol. Atingida pela crise econômica no setor de turismo, nos últimos anos, o Guarujá viu aumentar uma população de periferia e baixa renda, com baixa escolaridade, e responsável pela mão de obra subalterna no setor de serviços nos hotéis e restaurantes ainda presentes na região.
A agressão sofrida por Fabiane espelha bem o quadro de histeria e insegurança coletiva que vem atormentando a sociedade brasileira nos últimos anos, principalmente na periferia dos grandes centros urbanos. No mês anterior, a imagem de um adolescente negro, espancado e despido, acorrentado no meio da rua por uma trava de bicicleta numa barra de ferro no Rio de Janeiro, revelou ao Brasil e ao mundo o quanto esse sentimento de insegurança e temor ao crime levou parte da população a adotar soluções extremas, ilegais, degradantes e terrivelmente banalizadoras da violência. Junto a isso, somou-se o apoio mesquinho dos meios de comunicação, quando a telejornalista do SBT, Rachel Sheherazade, aumentou a polêmica ao comentar na TV com desdém a situação do jovem negro espancado, justificando a conduta de seus algozes, sugerindo aos que reclamavam da agressão a adoção do lema: "adote um preso".
Ora, suscitar a violência como a citada apresentadora de telejornal suscitou nos meios de comunicação, ou a ação irresponsável de pessoas na internet divulgando falsos crimes e criando um crime de alarde, a ponto de mobilizar pessoas nas ruas a promover linchamentos, apenas me faz recordar os primeiros capítulos da obra de Hobbes, que após quase quatrocentos anos ainda ganha impressionante atualidade. Jogando para fora as regras mínimas de civilidade, as populações da periferia, carentes de políticas públicas do Estado, ainda tímidas aos mais pobres como educação e segurança, acabam por promover a autotutela, promovendo justiciamentos precipitados, atacando pessoas erradas, ou mesmo simplesmente valendo-se de uma violência que não lhes é autorizado utilizar. O Estado moderno e constitucional surgiu para mediar e conter conflitos, aplicar a lei e promover a Justiça, resguardando-se de princípios de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando o contraditório, e nunca se valendo da força bruta sem fundamento algum. No momento em que uma comunidade não confia no Estado e na sua polícia, não procura os agentes públicos para apurar denúncias, e saí às ruas por conta própria atrás de culpados, vivemos um tempo difícil e tenebroso de insegurança causada não apenas pela criminalidade comum e tradicional nos grandes centros urbanos, mas de medo do outro, numa terrível situação de termos de nos proteger uns dos outros.
Onde está a civilização e onde fica a barbárie, em episódios como esse, como o do linchamento da pobre Fabiane de Jesus? Qual a responsabilidade dos meios de comunicação nisso, e como responsabilizar autores anônimos na internet, ocultos, que mediante visões radicalmente equivocadas e reaçonárias pregam um discurso e uma política do ódio, que acabava por insuflar parte da população? Ao invés de prevenir crimes, esses arautos da discórdia na verdade estão transformando cidadãos inocentes em criminosos, preparando o ovo da serpente, e são poucos os que podem se opor a isso, dentro da ignorância do senso comum a iludir mal informados e mal cuidados cidadãos da periferia. Mesmo com a eventual responsabilização dos assassinos de Fabiane, temo que novas Fabianes possam aparecer por aí, talvez tão ou mais violentadas, como foi a triste dona de casa paulista. Em todo e qualquer linchamento, está na hora de olharmos intimamente para a nossa consciência, e pregar a Justiça no lugar da revolta, e ao pensar na primeira, lembre-se de nunca atirar a primeira pedra!
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