terça-feira, 24 de outubro de 2017

VIOLÊNCIA E JUVENTUDE: A tragédia de Goiânia nos faz repensar nossas políticas para os jovens, inclusive a política criminal

Não há um brasileiro ou brasileira em seu estado normal de consciência que não fique chocado ou banalize o que ocorreu na escola Goyases, em Goiânia, quando um adolescente de 14 anos (o nome não pode ser revelado por questões legais), munido de uma pistola, matou a tiros os jovens João Vítor Gomes e João Pedro Calembo, ambos de 13 anos, ferindo outros alunos, dentro de uma sala de aula. Parecia que, desde a tragédia de Realengo, há poucos anos atrás, onde também um jovem atirador entrou num colégio desferindo tiros e matando crianças, o Brasil não vivia sua bad trip de atiradores solitários em escolas, como ocorreu no célebre caso da escola em Columbine, nos Estados Unidos. Ledo engano!

A questão dos atiradores em instituições de ensino (colégios ou universidades) e dos "lobos solitários" que da noite para o dia surtam, e armados até os dentes, chacinam a tiros dezenas ou centenas de pessoas (como ocorreu com um aposentado em Las Vegas, EUA, no mês passado), é um dos problemas mais complexos da criminologia e da psicologia criminal. No caso em Goiânia já se cogita que a motivação do autor dos tiros deu-se por bullying. Mas como prevenir condutas terríveis que parecem ser tão imprevisíveis? Como a sociedade e o poder público podem estabelecer medidas ou políticas que impeçam tais infortúnios?

É importante salientar, até para os defensores da liberdade do uso de armas de fogo, que não pretendo satanizar a indústria armamentista; mas sim estabelecer uma crítica segura. É indubitável que fatos tristes como o que ocorreram na escola Goyases estão relacionados ao acesso a armas. No caso de Goiânia, foi amplamente noticiado que o atirador adolescente é filho de um oficial e de uma sargento da Polícia Militar, e a corporação policial a que pertencem os pais do autor do fato já afirmou, por meio de seu porta-voz, que irá instaurar uma sindicância para apurar como o jovem teve acesso a uma pistola calibre .40 (de alto poder destrutivo). Atingidos por tiros a curta distância, das cadeiras onde se encontravam na sala de aula, João Vítor e João Pedro não tiveram a menor chance e morreram na hora. Sucedeu-se a um clima de terror com mais disparos efetuados, e coube a uma heroica funcionária da escola a coragem e a destreza para desarmar o atirador, que agora cumpre medida de internação provisória, decretada pelo juiz da Vara da Infância e Juventude, a pedido do Ministério Público.

O acesso às armas é, sem dúvida, condição objetiva para que tais fatos (no caso de um adolescente, atos infracionais) aconteçam e  se tornem tão preocupantes. Sabe-se que o caso envolvendo o colégio em Goiânia não é isolado, levando-se em conta que, na periferia das grandes cidades, quase que diariamente jovens adolescentes e até mesmo crianças são vítimas fatais de disparos de armas de fogo, seja na violência entre gangues, seja por balas perdidas ou execuções sumárias, feitas por bandidos traficantes ou pela própria ação da polícia. É curioso notar que tais cifras não foram reveladas nas extensas reportagens que tomaram conta da mídia na última semana, acerca da tragédia da escola Goyases, mas, segundo relatório deste ano, do Atlas Nacional da Violência, quase metade das causas de mortes de jovens no Brasil, nos últimos cinco anos (47,8%) foi causada por homicídios face o emprego de armas de fogo. É um triste fato e uma triste realidade, que parece não ser dimensionada por ser tão comum à periferia, mas tão rara a nossa classe média "batedora de panelas", em clima de crise política e institucional.

Pois o fato ocorrido em Goiânia deu-se num colégio particular, com meninos e meninas filhos de famílias de classe média baixa e alta, que amealham seus minguados recursos provenientes da atividade salarial para garantir uma melhor educação para seus filhos, face a precariedade do ensino público. Afirma-se que a escola Goyases era uma das referências da cidade de Goiânia em educação, e jamais nenhum de seus talentosos educadores iria suspeitar que um de seus alunos iria tomar uma atitude tão drástica e aterrorizante, de abater seus colegas de colégio a tiros, por conta de desavenças entre adolescentes. Parece raro, mas isso, na verdade, é uma realidade já comum e para alguns, até banalizadas em algumas instituições de ensino no país, principalmente após alguns meses atrás ter sido relatado pelos meios de comunicação casos recorrentes de agressões de professores por alunos, alguns, inclusive gerando lesões corporais e até mesmo tentativas de homicídio. Será que nossos estudantes estariam, portanto, tornando-se selvagens violentos?

Dentre as diversas teorias criminológicas, a teoria da subcultura delinquente de Cohen é apenas uma delas que tenta explicar fenômenos criminais associados à juventude. É claro que existem várias variáveis que devem ser aplicadas ao caso em Goiânia, mas não deixa de ser curioso que o fato criminoso envolvendo a morte de dois estudantes e a agressão a armada a mais uma dezena deles revela determinados traços de inaptidão a determinados rituais de iniciação da adolescência, dentre eles o de integração ou pertencimento a um grupo. Poderia ser aqui também exposta a teoria da anomia de Durkheim, no século XIX, ou a de Robert Merton, no século seguinte, ambas para explicar certo desacerto social ou inadequação de determinados perfis individuais a determinadas regras de convivência no meio social, mas é muito cedo para identificar tendências de comportamento, na análise do caso, uma vez que a identidade de agressor e suas motivações ainda não foram expostas abertamente à imprensa, além dos depoimentos colhidos dos pais dos mortos e agredidos e que chegaram ao conhecimento do público. Entretanto, políticas sociais para a prevenção de tais fatos podem, sim, ser debatidas num momento de tanta tensão e tristeza.

A Constituição Federal, em seu artigo 225, expõe de forma bem clara o dever do Estado, da família e da sociedade, a proteção da criança e do adolescente, assim estabelecendo:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (…)

Ora, não deixa de ser curioso (e até elogiável do ponto de vista cívico), perceber que até mesmo os pais dos adolescentes mortos, em suas declarações na imprensa,  não defenderam um punitivismo puro e simples para o autor do ato que vitimou a perda de seus entes queridos, defendendo, por exemplo, a redução da maioridade penal. Talvez por se tratar de um jovem da mesma classe social de seus filhos, o tempo inteiro o que se via nos meios de comunicação eram pais de alunos referindo-se às vítimas e agressor como "crianças", no lugar das expressões "bandidos" ou "delinquentes juvenis", tão comuns nos nossos meios de comunicação, que estimulando um populismo penal punitivo, desejam colocar na vala comum todos os autores de ilícitos penais, sejam eles adultos ou adolescentes. Na verdade, a meu ver, todo o discurso demagógico presente no parlamento brasileiro acerca da maioridade penal tem a ver com outra teoria criminológica: o labeling aproach ou etiquetamento, onde, determinados autores de ilícitos, dependendo de sua etnia, condição ou classe social, são rotulados ou etiquetados como os indesejáveis realmente merecedores das reprimendas legais, pois na seletividade de um sistema penal excludente,  são eles os destinatários específicos de uma sociedade de classes que naturalmente criminaliza os menos abastados. 

Nesse sentido, de certa forma causa-me espécie quando adolescentes plenamente incluídos socialmente, em ambientes familiares tipicamente "sadios", e em condições econômicas semelhantes, envolvidos em gravíssimo ato de repercussão penal, são tratados devidamente conforme o ditame constitucional, enquanto adolescentes da periferia recebem ou deveriam receber o mesmo tratamento que os adultos, ao menos conforme o vaticínio dos defensores da redução da maioridade penal. O que se revela diante de tamanha incongruência é a necessidade, mais uma vez (e parece o velho batuque do samba cantado tão repetidas vezes), da criação e do estímulo de políticas públicas de prevenção à violência e proteção da juventude, por meio de diversas ações sociais que vão desde o acompanhamento psicológico em escolas, combate ao bullying por meio da conscientização e inclusão de jovens em grupos temáticos de defesa de temas propositivos como meio ambiente, cultura, esporte, política estudantil, oferta de ensino profissionalizante e atividades recreativas. Também merece nota o apoio à escola pública, com erradicação do analfabetismo e combate à evasão escolar e inclusão digital, de forma progressiva, racional e comedida, com a formação tecnológica de redes sociais de apoio e colaboração mútua via internet. Eu também me arriscaria a citar a criação de grupos de aconselhamento, integrados não somente por educadores ou técnicos habilitados, mas também pelos próprios jovens que já passaram (e superaram) determinados traumas de adequação social, cujos relatos poderiam ser úteis aos demais.


Naturalmente, todos já foram adolescentes algum dia, e é sabido que tal fase é um período conturbado de descobertas, alterações hormonais e rituais de iniciação que definirão precipuamente o caráter e a personalidade de alguém, e não se pode esquecer disso. Porém, é tarefa dos educadores impedir que essa fase turbulenta transforme-se numa luta selvagem de uns contra todos, como se tudo retornasse a um estado de natureza, onde nossos jovens destruiriam-se a si próprios. Para isso, a atenção de pais, professores é fundamental, e o apelo às entidades públicas (em particular a polícia), deve consistir, realmente, na ultima ratio, torcendo-se para que eventos como ocorreram no colégio em Goiânia dificilmente repitam-se novamente.

sábado, 17 de junho de 2017

COTIDIANO: Tatuar a testa de um adolescente por conta do furto de uma bicicleta revela a paranoia do Brasil Real

O termo "banalidade do mal" foi empregado pela filósofa Hannah Arendt, no século XX, para definir, entre outros conceitos, o quanto determinadas condutas sociais minimizam a violência, a barbárie e o desrespeito completo à dignidade humana, tornando comum o que deveria ser considerado intolerável. Enquanto escrevo, repercute nas redes sociais manifestos de apoio a um pedreiro e um tatuador, que, na última sexta-feira, dia 09 de junho, agarraram à força um suposto adolescente infrator, com problemas mentais e viciado em drogas, dentro de uma pensão, na cidade de São Bernardo de Campo, quando este foi flagrado tentando furtar uma bicicleta. Ao invés de levar o garoto a uma delegacia, ou chamar o responsável por ele, o tatuador Maycon Carvalho dos Reis e o pedreiro Ronido de Araújo, decidiram eles mesmos adotar uma reprimenda, no mínimo inusitada, tatuando na testa do adolescente as palavras: "Eu sou ladrão e vacilão", em bom português.

O que parecia ser um justiciamento por um crime contra o patrimônio tornou-se a tônica dos mais variados comentários na internet, além do fato ter mobilizado a opinião pública e ter sido manchete no noticiário nacional. Menos do que engraçado, ao ser demonstrada a foto da testa do adolescente, pareceu mesmo que a imagem era chocante. Não demorou para que os autores da agressão ao jovem infrator fossem presos em flagrante, acusados de tortura, e, ao mesmo tempo que se iniciou uma corrente nas redes sociais, para arrecadar dinheiro e ajudar a família do adolescente torturado a realizar uma cirurgia, no sentido de retirar as marcas da tatuagem, com o apoio da Prefeitura de São Bernardo, os acusados também tiveram sua cota de apoio, grande. Além de manifestações de internautas favoráveis à ação criminosa da dupla de torturadores, iniciou-se um movimento de arrecadação de contribuições, para auxiliar nas despesas dos agressores com advogados, apesar destes já estarem sendo assistidos pela Defensoria Pública.

O que dizer desse triste fato? Sociologicamente falando, tanto agressores e vítima são moradores da periferia, pessoas de baixa renda, e, mesmo a vítima inicial, do furto da bicicleta, também é pessoa humilde: um portador de deficiência física, que pede dinheiro em semáforos, e que, conforme a narrativa do caso, nem sequer estava em casa quando a tentativa de furto foi praticada, e quando seus vizinhos de hospedagem decidiram fazer justiça com as próprias mãos, apenas testemunhou quando um deles exibiu pelo celular a foto da testa tatuada do jovem agredido, como um troféu pelo justiciamento feito a um suposto infrator. O próprio proprietário do bem quase subtraído assustou-se com o que viu.

Não se trata apenas de mais uma triste crônica da periferia da grande cidade, onde pobres agridem pobres, por total ausência ou confiança no Estado. A justiça pelas próprias mãos, também chamada juridicamente de "autotutela" não é permitida no Direito Brasileiro, nos meios penais,  há mais de duzentos anos. Mesmo assim, seja pelos linchamentos onde há forte participação coletiva, seja nos justiciamentos, desde os mais simples aos mais sangrentos, o que se vê no ambiente urbano, em diversas manifestações da população brasileira, é que muitos ainda acham que prender em postes garotos negros, de periferia, numa corrente, como se fossem animais, e tatuar a testa de outros, como forma de dar o exemplo, são atitudes dignas, corretas e até mesmo pedagógicas, se é que podemos chamar isso de uma certa..... pedagogia da violência! Apesar de nós chamarmos modernos (ou até pós-modernos, para alguns), com nossa tecnologia de tablets, smartphones e internet, em termos punitivos nos comportamos muitas vezes de maneira medieval.

A Constituição brasileira veda expressamente as penas infamantes e cruéis, no seu art. 5º, inciso XLVII, e conforme leitura da Lei 9.455 (Lei de de Tortura), observa-se que ela diz claramente, no seu art. 1º, inciso III,  que "constitui crime de tortura: II-submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos".  Vale salientar que, após a redemocratização, o Brasil só veio a ter uma lei específica a tratar de tortura no ano de 1997, mesmo após ter assinado  tratados internacionais comprometendo-se a reprimir esta prática muitos anos antes, desde a celebração da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), há quase cinquenta anos. Muitos subentendiam que tortura era coisa de ditadura, uma prática atribuída somente a agentes de Estado. Entretanto, tomando emprestado o termo "fascismo social", utilizado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, no Brasil, nos nossos fascismos cotidianos, qualquer um pode ser torturador.

Na verdade, o que mais me espanta não foi a atitude dos agressores (que agora, presos, confessam-se arrependidos) mas sim a atitude dos inúmeros anônimos das redes sociais, entre os intolerantes de plantão, que não apenas aplaudiram a conduta do torturador, mas consideraram a punição feita ao suposto adolescente infrator como correta. Revela-se os traços de uma sociedade doentia, ou, ao menos, fora do nosso padrão civilizacional ocidentalizado, nos discursos de alguns pretensos indignados, vítimas da violência urbana cotidiana, especialmente aquela cometida por adolescentes, que acham que medidas mais prósperas para prevenir o crime seja por meio da adoção de tortura. Ao menos que um dos defensores dessa tese entenda que sua prática sequer pode ser chamada de tortura. Mas por que não tortura? Se eu entendo que torturar é infligir ilegalmente algum tipo de sofrimento físico ou mental a alguém, eu acredito que tatuar na testa desse alguém que ele é bandido, malandro, vagabundo ou prostituta, não é só uma forma de humilhação, mas uma forma de torturar também. É um tipo de tortura onde as frases depreciativas não ofendem só a pele, riscada grosseiramente por um tatuador, mas também frases que penetram na alma, no interior do corpo do torturado, demonstrando para ele e para os outros o quanto ele é inferior ou inferiorizado, e o quanto deve continuar assim, pela ação de seus algozes, tidos por eles mesmos como superiores ao suposto infrator bestializado. Para os "homens de bem", vítimas da violência criminal, o direito de fazer justiça, nem que seja pela tortura (um direito de torturar). Já para os "vagabundos", seja de qualquer idade, credo ou classe social, a tortura como remédio social, seja por meio de tapas, socos, chutes, a privação da liberdade amarrando-o a um poste ou mesmo a tortura pura e simples, tatuando-se a testa de um suposto criminoso.

Lembro-me de uma célebre vítima da ditadura que sucumbiu ao seu próprio sofrimento após ter sido torturado: Frei Tito. Frei Tito de Alencar Lima foi um frade dominicano, preso e torturado por agentes da ditadura, acusado de acobertar e proteger subversivos. Submetido a todo tipo de sofrimento e maus tratos na prisão, ao ser libertado, após movimentação da Igreja Católica, ele foi exilado para a França, mas ali não conseguia o devido sossego, pois vivia em paranoia, assombrado pelos fantasmas de seus torturadores, vendo um suposto agressor a cada momento. Tito acabou se suicidando, enforcando-se numa árvore, nas proximidades do convento onde havia buscado refúgio.

Essa e outras histórias é apenas um recorte da triste vida dos torturados, daqueles que, acusados de algo, mesmo que sejam seus legítimos autores, são submetidos a um tipo de sofrimento que desvirtua a racionalidade de qualquer ordem jurídica. Defender um meio social mais seguro, cobrando a responsabilidade do Estado por prover segurança, não se confunde em defender um ambiente mais repressivo, onde todos sejam legitimados a torturar seus desafetos ou infratores. Que seja exemplar a reprimenda legal aos autores da tatuagem na testa do menino acusado de furtar uma bicicleta. Que sejam punidos, sem ser torturados, mas que a condenação por tortura revele o quão insana pode ser uma atitude dessas dentro de uma sociedade com tantas doenças sociais. E que isso sirva de lição também para os haters de ocasião. Afinal, já passamos do modelo da escravidão, onde escravos ladrões eram gravados com ferro em brasa, apesar de ainda haver muitos capitães do mato pelo caminho.