O termo "banalidade do mal" foi
empregado pela filósofa Hannah Arendt, no século XX, para definir, entre outros
conceitos, o quanto determinadas condutas sociais minimizam a violência, a
barbárie e o desrespeito completo à dignidade humana, tornando comum o que
deveria ser considerado intolerável. Enquanto escrevo, repercute nas redes
sociais manifestos de apoio a um pedreiro e um tatuador, que, na última
sexta-feira, dia 09 de junho, agarraram à força um suposto adolescente
infrator, com problemas mentais e viciado em drogas, dentro de uma pensão, na
cidade de São Bernardo de Campo, quando este foi flagrado tentando furtar uma
bicicleta. Ao invés de levar o garoto a uma delegacia, ou chamar o responsável
por ele, o tatuador Maycon Carvalho dos Reis e o pedreiro Ronido de Araújo,
decidiram eles mesmos adotar uma reprimenda, no mínimo inusitada, tatuando na
testa do adolescente as palavras: "Eu sou ladrão e vacilão", em bom
português.
O que parecia ser um justiciamento por um crime
contra o patrimônio tornou-se a tônica dos mais variados comentários na
internet, além do fato ter mobilizado a opinião pública e ter sido manchete no
noticiário nacional. Menos do que engraçado, ao ser demonstrada a foto da testa
do adolescente, pareceu mesmo que a imagem era chocante. Não demorou para que
os autores da agressão ao jovem infrator fossem presos em flagrante, acusados
de tortura, e, ao mesmo tempo que se iniciou uma corrente nas redes sociais,
para arrecadar dinheiro e ajudar a família do adolescente torturado a realizar
uma cirurgia, no sentido de retirar as marcas da tatuagem, com o apoio da
Prefeitura de São Bernardo, os acusados também tiveram sua cota de apoio,
grande. Além de manifestações de internautas favoráveis à ação criminosa da
dupla de torturadores, iniciou-se um movimento de arrecadação de contribuições,
para auxiliar nas despesas dos agressores com advogados, apesar destes já
estarem sendo assistidos pela Defensoria Pública.
O que dizer desse triste fato? Sociologicamente
falando, tanto agressores e vítima são moradores da periferia, pessoas de baixa
renda, e, mesmo a vítima inicial, do furto da bicicleta, também é pessoa
humilde: um portador de deficiência física, que pede dinheiro em semáforos, e
que, conforme a narrativa do caso, nem sequer estava em casa quando a tentativa
de furto foi praticada, e quando seus vizinhos de hospedagem decidiram fazer
justiça com as próprias mãos, apenas testemunhou quando um deles exibiu pelo
celular a foto da testa tatuada do jovem agredido, como um troféu pelo
justiciamento feito a um suposto infrator. O próprio proprietário do bem quase
subtraído assustou-se com o que viu.
Não se trata apenas de mais uma triste crônica da
periferia da grande cidade, onde pobres agridem pobres, por total ausência ou
confiança no Estado. A justiça pelas próprias mãos, também chamada
juridicamente de "autotutela" não é permitida no Direito Brasileiro,
nos meios penais, há mais de duzentos anos. Mesmo assim, seja pelos
linchamentos onde há forte participação coletiva, seja nos justiciamentos,
desde os mais simples aos mais sangrentos, o que se vê no ambiente urbano, em
diversas manifestações da população brasileira, é que muitos ainda acham que
prender em postes garotos negros, de periferia, numa corrente, como se fossem
animais, e tatuar a testa de outros, como forma de dar o exemplo, são atitudes
dignas, corretas e até mesmo pedagógicas, se é que podemos chamar isso de uma
certa..... pedagogia da violência! Apesar de nós chamarmos modernos (ou até
pós-modernos, para alguns), com nossa tecnologia de tablets, smartphones e
internet, em termos punitivos nos comportamos muitas vezes de maneira medieval.
A Constituição brasileira veda expressamente as
penas infamantes e cruéis, no seu art. 5º, inciso XLVII, e conforme leitura da
Lei 9.455 (Lei de de Tortura), observa-se que ela diz claramente, no seu art.
1º, inciso III, que "constitui crime de tortura: II-submeter alguém,
sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça,
a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou
medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos".
Vale salientar que, após a redemocratização, o Brasil só veio a ter uma lei
específica a tratar de tortura no ano de 1997, mesmo após ter assinado
tratados internacionais comprometendo-se a reprimir esta prática muitos anos
antes, desde a celebração da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de
San José da Costa Rica), há quase cinquenta anos. Muitos subentendiam que
tortura era coisa de ditadura, uma prática atribuída somente a agentes de
Estado. Entretanto, tomando emprestado o termo "fascismo social",
utilizado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, no Brasil, nos
nossos fascismos cotidianos, qualquer um pode ser torturador.
Na verdade, o que mais me espanta não foi a
atitude dos agressores (que agora, presos, confessam-se arrependidos) mas sim a
atitude dos inúmeros anônimos das redes sociais, entre os intolerantes de
plantão, que não apenas aplaudiram a conduta do torturador, mas consideraram a
punição feita ao suposto adolescente infrator como correta. Revela-se os traços
de uma sociedade doentia, ou, ao menos, fora do nosso padrão civilizacional
ocidentalizado, nos discursos de alguns pretensos indignados, vítimas da
violência urbana cotidiana, especialmente aquela cometida por adolescentes, que
acham que medidas mais prósperas para prevenir o crime seja por meio da adoção
de tortura. Ao menos que um dos defensores dessa tese entenda que sua prática
sequer pode ser chamada de tortura. Mas por que não tortura? Se eu entendo que
torturar é infligir ilegalmente algum tipo de sofrimento físico ou mental a
alguém, eu acredito que tatuar na testa desse alguém que ele é bandido,
malandro, vagabundo ou prostituta, não é só uma forma de humilhação, mas uma
forma de torturar também. É um tipo de tortura onde as frases depreciativas não
ofendem só a pele, riscada grosseiramente por um tatuador, mas também frases
que penetram na alma, no interior do corpo do torturado, demonstrando para ele
e para os outros o quanto ele é inferior ou inferiorizado, e o quanto deve
continuar assim, pela ação de seus algozes, tidos por eles mesmos como
superiores ao suposto infrator bestializado. Para os "homens de bem",
vítimas da violência criminal, o direito de fazer justiça, nem que seja pela
tortura (um direito de torturar). Já para os "vagabundos", seja de
qualquer idade, credo ou classe social, a tortura como remédio social, seja por
meio de tapas, socos, chutes, a privação da liberdade amarrando-o a um poste ou
mesmo a tortura pura e simples, tatuando-se a testa de um suposto criminoso.
Lembro-me de uma célebre vítima da ditadura que
sucumbiu ao seu próprio sofrimento após ter sido torturado: Frei Tito. Frei
Tito de Alencar Lima foi um frade dominicano, preso e torturado por agentes da
ditadura, acusado de acobertar e proteger subversivos. Submetido a todo tipo de
sofrimento e maus tratos na prisão, ao ser libertado, após movimentação da
Igreja Católica, ele foi exilado para a França, mas ali não conseguia o devido
sossego, pois vivia em paranoia, assombrado pelos fantasmas de seus
torturadores, vendo um suposto agressor a cada momento. Tito acabou se
suicidando, enforcando-se numa árvore, nas proximidades do convento onde havia
buscado refúgio.
Essa e outras histórias é apenas um recorte da
triste vida dos torturados, daqueles que, acusados de algo, mesmo que sejam
seus legítimos autores, são submetidos a um tipo de sofrimento que desvirtua a
racionalidade de qualquer ordem jurídica. Defender um meio social mais seguro,
cobrando a responsabilidade do Estado por prover segurança, não se confunde em
defender um ambiente mais repressivo, onde todos sejam legitimados a torturar
seus desafetos ou infratores. Que seja exemplar a reprimenda legal aos autores
da tatuagem na testa do menino acusado de furtar uma bicicleta. Que sejam
punidos, sem ser torturados, mas que a condenação por tortura revele o quão
insana pode ser uma atitude dessas dentro de uma sociedade com tantas doenças
sociais. E que isso sirva de lição também para os haters de ocasião.
Afinal, já passamos do modelo da escravidão, onde escravos ladrões eram
gravados com ferro em brasa, apesar de ainda haver muitos capitães do mato pelo
caminho.
Magnífico!!!
ResponderExcluirQue o ser humano seja melhor para que um dia haja um mundo melhor, onde as pessoas se respeitem! Que o Estado e a sociedade sejam civilizados e com isso, façam fluir a educação, a moral, a ética e a paz social.