sábado, 17 de junho de 2017

COTIDIANO: Tatuar a testa de um adolescente por conta do furto de uma bicicleta revela a paranoia do Brasil Real

O termo "banalidade do mal" foi empregado pela filósofa Hannah Arendt, no século XX, para definir, entre outros conceitos, o quanto determinadas condutas sociais minimizam a violência, a barbárie e o desrespeito completo à dignidade humana, tornando comum o que deveria ser considerado intolerável. Enquanto escrevo, repercute nas redes sociais manifestos de apoio a um pedreiro e um tatuador, que, na última sexta-feira, dia 09 de junho, agarraram à força um suposto adolescente infrator, com problemas mentais e viciado em drogas, dentro de uma pensão, na cidade de São Bernardo de Campo, quando este foi flagrado tentando furtar uma bicicleta. Ao invés de levar o garoto a uma delegacia, ou chamar o responsável por ele, o tatuador Maycon Carvalho dos Reis e o pedreiro Ronido de Araújo, decidiram eles mesmos adotar uma reprimenda, no mínimo inusitada, tatuando na testa do adolescente as palavras: "Eu sou ladrão e vacilão", em bom português.

O que parecia ser um justiciamento por um crime contra o patrimônio tornou-se a tônica dos mais variados comentários na internet, além do fato ter mobilizado a opinião pública e ter sido manchete no noticiário nacional. Menos do que engraçado, ao ser demonstrada a foto da testa do adolescente, pareceu mesmo que a imagem era chocante. Não demorou para que os autores da agressão ao jovem infrator fossem presos em flagrante, acusados de tortura, e, ao mesmo tempo que se iniciou uma corrente nas redes sociais, para arrecadar dinheiro e ajudar a família do adolescente torturado a realizar uma cirurgia, no sentido de retirar as marcas da tatuagem, com o apoio da Prefeitura de São Bernardo, os acusados também tiveram sua cota de apoio, grande. Além de manifestações de internautas favoráveis à ação criminosa da dupla de torturadores, iniciou-se um movimento de arrecadação de contribuições, para auxiliar nas despesas dos agressores com advogados, apesar destes já estarem sendo assistidos pela Defensoria Pública.

O que dizer desse triste fato? Sociologicamente falando, tanto agressores e vítima são moradores da periferia, pessoas de baixa renda, e, mesmo a vítima inicial, do furto da bicicleta, também é pessoa humilde: um portador de deficiência física, que pede dinheiro em semáforos, e que, conforme a narrativa do caso, nem sequer estava em casa quando a tentativa de furto foi praticada, e quando seus vizinhos de hospedagem decidiram fazer justiça com as próprias mãos, apenas testemunhou quando um deles exibiu pelo celular a foto da testa tatuada do jovem agredido, como um troféu pelo justiciamento feito a um suposto infrator. O próprio proprietário do bem quase subtraído assustou-se com o que viu.

Não se trata apenas de mais uma triste crônica da periferia da grande cidade, onde pobres agridem pobres, por total ausência ou confiança no Estado. A justiça pelas próprias mãos, também chamada juridicamente de "autotutela" não é permitida no Direito Brasileiro, nos meios penais,  há mais de duzentos anos. Mesmo assim, seja pelos linchamentos onde há forte participação coletiva, seja nos justiciamentos, desde os mais simples aos mais sangrentos, o que se vê no ambiente urbano, em diversas manifestações da população brasileira, é que muitos ainda acham que prender em postes garotos negros, de periferia, numa corrente, como se fossem animais, e tatuar a testa de outros, como forma de dar o exemplo, são atitudes dignas, corretas e até mesmo pedagógicas, se é que podemos chamar isso de uma certa..... pedagogia da violência! Apesar de nós chamarmos modernos (ou até pós-modernos, para alguns), com nossa tecnologia de tablets, smartphones e internet, em termos punitivos nos comportamos muitas vezes de maneira medieval.

A Constituição brasileira veda expressamente as penas infamantes e cruéis, no seu art. 5º, inciso XLVII, e conforme leitura da Lei 9.455 (Lei de de Tortura), observa-se que ela diz claramente, no seu art. 1º, inciso III,  que "constitui crime de tortura: II-submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos".  Vale salientar que, após a redemocratização, o Brasil só veio a ter uma lei específica a tratar de tortura no ano de 1997, mesmo após ter assinado  tratados internacionais comprometendo-se a reprimir esta prática muitos anos antes, desde a celebração da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), há quase cinquenta anos. Muitos subentendiam que tortura era coisa de ditadura, uma prática atribuída somente a agentes de Estado. Entretanto, tomando emprestado o termo "fascismo social", utilizado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, no Brasil, nos nossos fascismos cotidianos, qualquer um pode ser torturador.

Na verdade, o que mais me espanta não foi a atitude dos agressores (que agora, presos, confessam-se arrependidos) mas sim a atitude dos inúmeros anônimos das redes sociais, entre os intolerantes de plantão, que não apenas aplaudiram a conduta do torturador, mas consideraram a punição feita ao suposto adolescente infrator como correta. Revela-se os traços de uma sociedade doentia, ou, ao menos, fora do nosso padrão civilizacional ocidentalizado, nos discursos de alguns pretensos indignados, vítimas da violência urbana cotidiana, especialmente aquela cometida por adolescentes, que acham que medidas mais prósperas para prevenir o crime seja por meio da adoção de tortura. Ao menos que um dos defensores dessa tese entenda que sua prática sequer pode ser chamada de tortura. Mas por que não tortura? Se eu entendo que torturar é infligir ilegalmente algum tipo de sofrimento físico ou mental a alguém, eu acredito que tatuar na testa desse alguém que ele é bandido, malandro, vagabundo ou prostituta, não é só uma forma de humilhação, mas uma forma de torturar também. É um tipo de tortura onde as frases depreciativas não ofendem só a pele, riscada grosseiramente por um tatuador, mas também frases que penetram na alma, no interior do corpo do torturado, demonstrando para ele e para os outros o quanto ele é inferior ou inferiorizado, e o quanto deve continuar assim, pela ação de seus algozes, tidos por eles mesmos como superiores ao suposto infrator bestializado. Para os "homens de bem", vítimas da violência criminal, o direito de fazer justiça, nem que seja pela tortura (um direito de torturar). Já para os "vagabundos", seja de qualquer idade, credo ou classe social, a tortura como remédio social, seja por meio de tapas, socos, chutes, a privação da liberdade amarrando-o a um poste ou mesmo a tortura pura e simples, tatuando-se a testa de um suposto criminoso.

Lembro-me de uma célebre vítima da ditadura que sucumbiu ao seu próprio sofrimento após ter sido torturado: Frei Tito. Frei Tito de Alencar Lima foi um frade dominicano, preso e torturado por agentes da ditadura, acusado de acobertar e proteger subversivos. Submetido a todo tipo de sofrimento e maus tratos na prisão, ao ser libertado, após movimentação da Igreja Católica, ele foi exilado para a França, mas ali não conseguia o devido sossego, pois vivia em paranoia, assombrado pelos fantasmas de seus torturadores, vendo um suposto agressor a cada momento. Tito acabou se suicidando, enforcando-se numa árvore, nas proximidades do convento onde havia buscado refúgio.

Essa e outras histórias é apenas um recorte da triste vida dos torturados, daqueles que, acusados de algo, mesmo que sejam seus legítimos autores, são submetidos a um tipo de sofrimento que desvirtua a racionalidade de qualquer ordem jurídica. Defender um meio social mais seguro, cobrando a responsabilidade do Estado por prover segurança, não se confunde em defender um ambiente mais repressivo, onde todos sejam legitimados a torturar seus desafetos ou infratores. Que seja exemplar a reprimenda legal aos autores da tatuagem na testa do menino acusado de furtar uma bicicleta. Que sejam punidos, sem ser torturados, mas que a condenação por tortura revele o quão insana pode ser uma atitude dessas dentro de uma sociedade com tantas doenças sociais. E que isso sirva de lição também para os haters de ocasião. Afinal, já passamos do modelo da escravidão, onde escravos ladrões eram gravados com ferro em brasa, apesar de ainda haver muitos capitães do mato pelo caminho.

Um comentário:

  1. Magnífico!!!
    Que o ser humano seja melhor para que um dia haja um mundo melhor, onde as pessoas se respeitem! Que o Estado e a sociedade sejam civilizados e com isso, façam fluir a educação, a moral, a ética e a paz social.

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