terça-feira, 14 de setembro de 2010

POLÍCIA: Em São Conrado, quem se deu bem foi o "Nem".

Quando as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) chegaram ao Rio de Janeiro, parecia que uma lufada de esperança havia chegado ao cidadão carioca, acostumado ao noticiário da Rede Globo alertando todos os dias sobre os perigos de se morar na "cidade maravilhosa". Balas perdidas, tiroteios, assaltos, chacinas, tráfico de drogas, arrastões (hoje substituídos pelos chamados "bondes"), corrupção e truculência policial, policiais usando distintivos como se fossem certidões de óbito.  A realidade do Rio de Janeiro das últimas décadas parecia ser o mote certo para cineastas a la Quentin Tarantino, escritores, sociológos e músicos, alertando para o caos e para a espiral de violência que se tornou a metrópole do Cristo Redentor. No governo de Sérgio Cabral, aparentemente, tudo mudou. A ideia nova, que na verdade rebatizava o velho, realizou nos morros o que todos os especialistas em segurança pública já diziam há mais de dez anos: para se controlar a violência no Rio é preciso ocupar os morros. Mas ocupar não militarmente, mas sim efetivar uma ocupação de efetivas políticas públicas e sociais que livrassem o Rio do desastre. Hoje, em Santa Marta, no Morro da Providência ou na Tijuca, morro virou sinônimo de candura, na tranquilidade mesmo que imposta à base de viaturas, fardas, insígnias e fuzis.O morador do morro acostumado a ver polícia só na hora em que ela mete os pés na porta ou derruba o casebre atrás de traficantes, agora se espantava em acordar pela manhã e buscar o pão, numa rua que não estava mais repleta de traficantes, mas sim de policiais bem humorados, com armas abaixadas, que o comprimentavam com o trivial, quando não espantoso, "bom dia!". Parecia que a segurança pública do Rio estava no rumo certo.

Parecia, ou apenas parece, diante de fatos narrados à exaustão pela mídia (ahh, a mídia, sempre a mídia, com sua cota parte de responsabilidade na propagação da cultura do medo e do sentimento de insegurança coletiva). Desta vez, as imagens captadas por cinegrafistas amadores e vendidas a peso de ouro para os canais de televisão, demonstravam que ainda se estava no Rio de Janeiro, e que ali, além das esplendorosas belezas naturais e femininas, ainda havia muita violência, tiroteio, confusão e medo.

Na última semana de agosto a polícia militar carioca se envolveu num tiroteio com traficantes do morro da Rocinha, em São Conrado, zona norte do Rio, até então um tranquilo bairro de classe média alta. Por suas ruas arborizadas e bem asfaltadas, o circuito interno das câmeras de condomínio, as telas de telefones celulares e fotógrafos podiam ver bem um cenário de filme de ação, com direito a tiros, reféns e correria, mas sem o glamour das películas hollywoodinianas, com seus Stallones e Bruce Willis, quando traficantes fortemente armados trocaram tiros no meio da rua com policiais militares, numa cena que parecia retirada dos anos noventa, no antigo conflito na Bósnia. Passantes que fossem pegos desavisados poderiam levar um tiro na testa, se porventura passassem com seus carros no local, no momento em que ocorreram os tiros. Parecia que ainda não estava perdido na memória o triste episódio de um helicóptero da polícia abatido a tiros no início do ano, numa desastrosa intervenção da polícia em uma das favelas cariocas. No episódio de São Conrado, para completar as tintas inacreditavelmente cinematográficas do fato, os traficantes fugitivos, após trocarem tiros com a polícia pelas ruas, invadiram um hotel e tomaram como reféns cerca de uma centena de hóspedes que estavam no local, participando de um congresso. Ainda bem que desta vez, o secretário de segurança Beltrame pôde anunciar orgulhoso a eficácia da ação policial perante os jornalistas, quando após negociações os reféns foram liberados e todos os criminosos que tomaram de assalto o hotel foram presos, deixando-se  que, entretanto, o princípial líder do grupo. o traficante "Nem", escapasse ileso do local, dando-se bem com mais um drama de impunidade, causado por uma deficiente intervenção policial.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.Nem morto, nem na cadeia. A trajetória do traficante "Nem" assemelha-se a de muitos que nascem, crescem, reproduzem armas e drogas, e morrem em conflitos com a polícia, dentro de presídios em celas fétidas ou baleados em acertos de contas entre bandidos, e que durante sua trajetória iniciam sua jornada como fogueteiros, até se tornarem soldadinhos do tráfico,  crescendo na hierarquia do crime organizado e se tornando verdadeiros barões feudais do crack, da maconha e da cocaína, nos seus castelos de areia construídos à base de muita criminalidade e marginalização social. O narcotráfico no Rio de Janeiro se alimenta da omissão silenciosa dos poderes públicos quanto às políticas sociais (coisa que já estamos carecas de saber), e da ineficiência e corrupção policial, que se torna quase que uma irmã siamesa do crime; pois, para traficar e manter suas "bocas de fumo", os traficantes necessitam de armas, e para obter armas eles conseguem isso através do exército, de integrantes das bandas podres das polícias ou através da fronteira, por meio do contrabando, pela ausência ou debilidade de fiscalização.

Segundo o antrópologo Luiz Eduardo Soares,  professor da UERJ e ex-secretário nacional de segurança, em entrevista publicada na edição on line da revista Veja, o conflito entre os asseclas de "Nem" e a polícia em São Conrado pode ser explicado sob duas justificativas: se ocorreu uma legítima defesa dos policiais e eles realmente encontraram por acaso os bandidos, ao voltar o traficante Nem de um baile funk e eles terem atirado primeiro, não havia muitas alternativas; agora, se, conforme alguns meios de comunicação publicaram, se havia um planejamento antecipado da ação, e na verdade se tratava de uma operação policial para prender o traficante, aí sim a polícia do Rio cometeu um erro grotesco, dotado da total e completa ausência de percepção nos danos colaterais que poderiam (e foram produzidos) no momento em que a polícia inicia um tiroteio com bandidos numa área residencial ocupada e aberta, com milhares de pessoas potencialmente vítimas de uma bala perdida. É o antipoliciamento, esse o de encarar o conflito com a criminalidade como uma ação bélica, e desse belicismo, já sabemos, resultaram millhares e milhares de vítimas fatais.

Se vivemos sob o slogan de "Guerra contra o Crime", não podemos com isso transformar nossas cidades em praças de guerra. Cada dia vemos policiais mais treinados, mais preparados, mais educados e conscientizados de como se deve fazer um bom policiamento, com danos mínimos à população local, através da fiundação das UPPs e da difusão dos princípios do policiamento comunitário. Porém, muito ainda tem que ser feito. Em entrevista publicada na edição nº 2182, da Revista Veja, de 15 de setembro de 2010, o atual comandante da PM do Rio, coronel Mário Sérgio Duarte, disse que os maus policiais ainda são uma praga na instituição policial, e disso não tenho dúvida, até porque tive a ingrata oportunidade de conviver com alguns deles. O que posso acrescentar à entrevista concedida pelo comandante é que os maus policiais não são apenas aqueles comprometidos com à tortura ou com a corrupção, mas também aqueles que gozam ainda de uma mentalidade eminentemente repressiva e panóptica, signatária dos ideais da Lei de Segurança Nacional, que veem o cidadão como eterno suspeito ou inimigo. Nesse sentido sou partidário da filosofia das UPPs e do entendimento dos atuais administradores da polícia carioca de se empregar nos novos programas de policiamento apenas policiais que recentemente ingressaram na corporação. Acredito que a utilização do lema óbvio e até simplório "O novo é novo", empregado atualmente pela polícia do Rio, reforça a convicção de que os investimentos em termos de pessoal nas polícias tem que ser enfatizados, principalmente, nas novas gerações, a fim de que novas e arejadas cabeças possam desenvolver metodologias modernas de trabalho policial, a fim de dirimir os abusos e incongruências cometidas por aqueles policiais ainda viciados em esquemas anacrônicos e num modelo de segurança repressivo e inadequado para os novos moldes de uma sociedade democrática que vivemos hoje no Brasil.

Em síntese, não dá para continuar trabalhando um policiamento sem planejamento estratégico e inteligência, numa lógica meramente reativa de bangue bangue entre polícia e bandido. Ou a polícia aprende a agir cirurgicamente, com um bom trabalho de investigação e avaliação de danos, ou vamos ter novas praças de guerra sendo contruídas nas grandes urbes, com mais e mais gente ficando de refém não apenas dos bandidos, mas também da ineficácia estatal.

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