Natal, no Rio Grande do Norte, é considerada a "cidade do sol". Cantada em verso e prosa por seus artistas e poetas, a pequena metrópole potiguar vive rodeada de belas paisagens, com sol, praias e dunas, num dos cartões postais mais bonitos do país. Durante o dia, ao seguir para o trabalho, vejo a imensa quantidade de turistas acotovelados em carros de passeio (chamados aqui de buggys) e ônibus de turismo, admirando a extensa paisagem marítima, que alivia o stress do mais angustiado mortal.
Porém, além dessa Natal bela, feérica, produto de reportagens sobre viagens e turismo, existe uma Natal verdadeira, uma cidade real, típica do Nordeste, com todas as mazelas resultantes de um processo de urbanização desenfreado, ausência de políticas sociais e a ignorância de muitos de seus governantes quanto aos reais problemas e necessidades da população, na ganãncia de uma elite provinciana regada a muita água de côco, cerveja gelada, carros importados, forró e axé-music. Para citar apenas um exemplo da mal formação urbana da cidade, hoje, para uma cidade que se habilitou a ser uma das sedes dos jogos da Copa de 2014, possui-se um anel viário totalmente esgotado, com um trânsito lento, monótono ou estancado, em congestionamentos incríveis que consomem milhas de asfalto, que só fazem lembrar metrópoles de verdade, como a capital paulista. Além disso, os problemas de inundações com as chuvas são corriqueiros, o sistema de telefonia pública é quase todo danificado ou obsoleto e muitos bairros populares reclamam da ausência de ônibus ou na demora em serem atendidos, num transporte coletivo apinhado de gente, com milhares de trabalhadores que saem da zona norte da cidade, em direção a seus empregos subalternos, na base de muito stress, poluição e calor.
Nessa Natal de verdade, que inexiste nos cartões postais, nas proximidades da avenida Bernardo Vieira, onde realmente começa a cidade, encontra-se o marco divisório da grotesca e nítida relação de classes na sociedade potiguar, com a edificação do último templo de consumo, ao se vislumbrar o imponente prédio do shopping Midway Mall. A partir dele, e seguindo pela avenida, num corredor frenético e interminável de carros, ônibus, animais de rua e passantes, chegamos logo na linha do trem, onde se acumula sujeira, pobreza, caos e irresponsabilidade, na quantidade de meninos de rua que podem ser vistos pedindo esmolas nos semáforos, lavando parabrisas dos carros, vendendo penduricalhos ou se entregando ao crime, através de pequenos furtos ou venda de crack. Nesse mesmo local, pode-se ver, durante a noite, esquálidas garotas de programa oferecendo seus maltratados corpos, castigados pela violência doméstica, ou por álcool e drogas. Podemos ver também pequenas vilas e favelas ao se aproximar do rio Potengi, que banha a cidade, onde bandos de vadios ou pequenos gatunos perambulam sem rumo durante a madrugada, alguns se posicionando com canivetes ou utilizando enferrujadas armas de fogo na saída de feiras, caixas eletrônicos, nos pontos de ônibus para assaltar vans e outros transportes alternativos, ou se penduram nos tetos das casas de vizinhanças mais abastadas, a fim de arrombar residências e vender o produto do furto nas diversas bocas de fumo que pululam no local. Nas comunidades, ao se chegar na ponte, em direção ao bairro de Igapó, gangues juvenis promovem algazarras em festas, dias de partidas de futebol, saídas de colégios ou tão e simplesmente em eventos populares, jurando-se um ao outro de morte e engordando as estatísticas oficiais de casos de homicídio, a cada garoto morto que é encontrado pela polícia no dia seguinte, com o odor de seu sangue esparramado ainda a preencher o ambiente; até a chegada do rabecão.
Por falar em polícia, onde é que estão os dignos representantes da segurança pública diante de um quadro social tão dantesco, mas tão normal no cotidiano de tantas urbes modernas? A polícia militar, não obstante treinada nos anos recentes sob os parâmetros ideológicos do policiamento comunitário, ainda engatinha a passos tímidos no sentido de promover sua inserção junto à comunidade. As delegacias de polícia ficam repletas de gente, sobretudo nos fins de semana ou segundas-feiras, com a quantidade de problemas corriqueiros de toda DP, desde brigas de vizinhos e perda de documentos, até assaltos, ações organizadas de quadrilhas, violência doméstica, tráfico de drogas e muitos, muitos homicídios. Das unidades policiais que lidam com as ocorrências frequentes dessa Natal real, encontra-se a 9ª DP ou 9º Distrito Policial, no jargão técnico-administrativo instituído pela lei que a criou. É uma das maiores delegacias da capital, tendo em vista a extensão da área de sua circunscrição policial, pegando os bairros que mais sofreram as consequências do abrupto crescimento urbano da cidade, e das mazelas sociais dele decorrentes. São centenas de vilas, povoados, conjuntos residenciais, loteamentos, bairros e pequenas comunidades de trabalhadores mal assalariados ou de baixa renda, totalizando cerca de 200.000 habitantes, com faixas extensas para o aparecimento de cortiços e favelas, com ruas de barro e areia, mal calçadas ou recém asfaltadas, mas com a deficiência típica de serviços públicos, conforme eles vão se distribuindo mais minimamente nas áreas mais paupérrimas da cidade. A 9ª DP lida com um cinturão oblíquo de criminalidade, uma miríade de problemas e circunstâncias que atormentam os moradores da área e intrigam a mente dos investigadores, nos procedimentos da polícia, em casos indissolúveis ou de difícil solução. A cifra negra da criminalidade está presente na sequência de delitos, que muitos agentes do Estado só descobrem por ouvir dizer, ou por escutar em comentários nas ruas onde moram, porque as vítimas ou interessados não procuram a delegacia para registrar ocorrências.
A zona norte de Natal atualmente é a maior área de expansão urbana da cidade. Com mais da metade do total de habitantes do município, a região vem sendo disputada enormemente pela classe política nas últimas campanhas eleitorais, em virtude de seu eleitorado vital e crucial para a vítória em uma eleição. É natural que o discurso mais evidente e palavra de ordem na campanha seja o tema da segurança. Entretanto, pouco se tem feito, seja na esfera municipal ou na seara estadual, para debelar os conflitos surgidos de uma má administração e precária racionalização do aparato policial. Aposta-se num discurso cosmético, apenas apoiado no aumento dos efetivos, do que pensar uma lógica gerencial que, se não dirime, ao menos atenua as sucessivas crises que vem se desenvolvendo na manutenção de uma função policial minimamente atuante.
Ao se deparar com a realidade da 9ª DP, o observador mais incauto percebe o câncer social que esta unidade policial tem que lidar ao se constatar, por exemplo, que no ano de 2007, a delegacia registrava mais de 460 inquéritos em andamento, chegando aos dias de hoje com ao menos 600 procedimentos policiais instaurados e a resolver. Desse montante, ao menos 300 dizem respeito a casos de homicídio, revelando a macabra cifra de que pelo menos a cada três dias, alguém vai a óbito por morte violenta nessa parte desolada da cidade. Soma-se a isso a cobrança ininterrupta de providências por parte do Judiciário e do Ministério Público, as sucessivas reclamações pelo não cumprimento de diligências, atrasos de prazo e impotência na descoberta de delitos de autoria desconhecida. Seria necessário um exército de policiais, com um contingente inteiro de delegados, escrivães e investigadores, a fim de suprir deficiências de pessoal e material tão intensas, que para esse mesmo observador que se deparou com uma realidade tão caótica, só resta pensar que se trata de um caso perdido.
A polícia do Rio Grande do Norte é uma polícia doente, assim como doentes são todas as coletividades policiais, onde as políticas traçadas para aproveitamento dos recursos humanos dizem respeito tão somente ao recrutamento de mais e mais policiais para o serviço público. Aprovados nos concursos, os policiais ingressantes logo se deparam com um meio hostil e com a debilidade de uma atividade que deveria ser muito socialmente recompensada. A quantidade de licenças médicas e pedidos de exoneração de servidores que buscam opções melhores de vida, revela uma estrutura incapaz de manter seu próprio pessoal na corporação; e a ausência de investimentos na qualificação, condições de trabalho e preparação psicológica do policial acaba fazendo que ele seja vítima do principal vilão nesse tipo de atividade: o stress. São longas as filas de policiais nos postos de saúde ou na junta médica do Estado, com os mais variados problemas, desde crises hipertensivas até problemas mentais. A incidência do alcoolismo, tabagismo doentio, consumo de drogas ilícitas, depressões, ansiedades e cardiopatias compromete o efetivo dos policiais mais gabaritados e experientes, que numa realidade como a da 9ª DP, ao não se renderem ao jogo mesquinho da corrupção ou da prática da tortura, e ao quererem desempenhar suas funções com o mínimo de dignidade possível, acabam por sofrer na pele as lesões da alma típicas de quem se propôs a atender a população, a serviço do Estado, mas não consegue dar conta da imensa demanda de casos criminais, e acaba sendo subjugado por esse próprio Estado, esmagado pela bota autoritária de um velho e ultrapassado modelo de policiamento, que não corresponde mais aos anseios da sociedade.
Acredito numa realidade diferente para a segurança pública numa sociedade democrática. Acredito na manutenção de valores, na consecução de objetivos e na realização de finalidades a que se competem todos os dignos representantes de um projeto transformador do Estado, como sujeitos históricos que sentem na pele as angústias de uma mãe de família que perdeu brutalmente o seu filho, ou de um honesto trabalhador que viu subtraído todo seu patrimônio adquirido com seu justo esforço. Mas acredito também que um novo modelo só será possível quando a carcomida estrutura de um Estado herdeiro de um modelo fascistóide e ditatorial deixe de existir. Temos toda uma nova geração de policiais legalistas e defensores dos direitos humanos, educados num Estado Democrático de Direito sob as normas da Constituição Federal de 1988, e que acreditam num direito fundamental constitucionalmente assegurado que é a segurança. Segurança essa que, por sua vez, deve ser vista não como um direito em si, mas sim como uma garantia constitucional de um direito que compete a todos, e que não pode jamais ser violado: a liberdade. Liberdade tanto da ânsia gananciosa do crime, como das amarras sufocantes e desprezíveis de um Estado baseado apenas na justiça de classe. Enquanto não formos livres para pensar, repensar, questionar e discutir os novos rumos de nossa segurança e os parâmetros devidos que devem nortear definitivamente uma boa atividade policial, veremos desgraças como a que se presencia na 9ª DP, com seu universo triste de casos mal ou não resolvidos, procedimentos parados e autoridades impotentes, diante de tanto descaso governamental.
Que Deus tenha piedade da população da zona norte de Natal e que proteja os que estão por trás das paredes da 9ª DP!! Isso tem que mudar!!
Seu espaço para discussões e debates voltados para os temas da segurança pública, criminologia, direito penal e política criminal. Sempre com um olhar crítico e corajoso sobre as coisas que deveriam ser ditas, mas muitos se amedrontam em não dizer. Porque não temos medo de viver e receio de lutar por um mundo novo. Afinal, o mundo é muito "bão", como diz o matuto, quando alguém tenta ser "bastião", como diria o ativista, defendendo a fortaleza do direito da invasão do tédio e da mediocridade.
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