Tenente Leidson:morto na Vila Cruzeiro(retirado de ipunews.com.br) |
Com muita comoção acompanhei nos últimos dias, na mídia jornalística e nas redes sociais, comentários sobre a trágica morte do Tenente da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Leidson Acácio, de 27 anos, subcomandante da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) do Complexo de Vila Cruzeiro, alvejado na cabeça quando fazia patrulhamento no local, no dia 13 deste mês, ao ser surpreendido por traficantes armados. Rapaz de origem humilde, criado com dificuldades pelas família e que superou a pobreza e as tentações da marginalidade, morando na periferia do Rio até chegar ao oficialato na PM, o policial Leidson, com seu passado e sua história de vida, precocemente tirada pela violência do tráfico, foram retratados à exaustão por seus amigos, familiares e companheiros nas redes sociais, comovendo todo o Brasil. Na rede social Whatsapp, por exemplo, pude ver em alguns grupos e comunidades, comentários repassados por outros grupos, com forte teor corporativo, onde mais uma vez se colocava o policial militar numa condição de vitimização, injustiçado por uma sociedade, uma legislação e um governo que não lhe compreendiam, uma vez que o "pessoal dos direitos humanos" (sempre eles), seriam os responsáveis diretos pela morte de Leidson, uma vez que tais militantes impediriam o trabalho dos profissionais da segurança, ao "defender bandidos", enquanto que "verdadeiros homens de bem" eram alvejados e mortos, no cumprimento do dever. Subliminarmente, foi repassada nessas redes sociais uma mensagem tão exaustivamente difundida por um alienante senso comum, de que todos aqueles que criticam os abusos da polícia (em especial da Polícia Militar), no trato com os bandidos, estariam sendo, no mínimo, omissos ou coniventes com a criminalidade, não permitindo que os "bons policiais" varressem as ruas, colocando os perversos criminosos no seu devido lugar; ou seja, na cova. Por conta disso, sem ter como se defender, indefesos policiais seriam alvo fácil de seus inimigos no crime, vindo a ocorrer mais uma morte de policial em serviço, como a de Leidson, engrossando as estatísticas.
Cena terrível: a morte de Cláudia (diariodopoder.com.br) |
Por outro lado, não obstante estar sensibilizado com a morte do tenente da Polícia Militar carioca, e solidário com sua família, também não pude deixar de lamentar outra triste morte a ocupar as cifras mórbidas da violência urbana no Rio de Janeiro. No caso, foi a horrível morte da auxiliar de serviços gerais, Cláudia da Silva Ferreira, uma mulher negra de 38 anos, moradora da periferia, na localidade de Congonhas, baleada por uma guarnição da Polícia Militar, ao ser confundida com uma bandida. Socorrida às pressas na viatura dos policiais que a abordaram e alvejaram, Cláudia foi levada ao hospital sem a menor condição de proteção e sem o menor respeito, conduzida desmaiada como um pedaço de carne, pendurada no carro daqueles que deveriam "servir e proteger", até despencar do veículo e ser arrastada pelo meio das ruas do Rio de Janeiro, por ao menos 250 metros. A cena forte e dantesca, da viatura dos policiais em alta velocidade, arrastando o corpo da mulher pela rua, foi flagrada e captada pela câmera de um cinegrafista amador e enviada para as telas dos meios de comunicação em todo o Brasil. A barbárie da cena só não é maior que o descaso tão recorrente com o ser humano em comunidades de periferia urbana, onde vivem em sua maioria pretos e pobres, acossados pela criminalidade, e que são confundidos todos os dias pela polícia com marginais, a ponto de levar um tiro a pobre trabalhadora Cláudia, tão e simplesmente porque estava carregando uma garrafa de café!
Aqui é que se cruzam as narrativas paralelas, envolvendo duas vidas tolhidas pela violência, em lados opostos. Temos de um lado o Estado com sua truculência e seu aparelho repressor, na intervenção contra delitos e delinquentes, contando com policiais abnegados como Leidson Acácio, que acabaram sendo atingidos por balas dessa guerra urbana contra o crime; e do outro lado temos a sociedade, em sua faceta menos abastada, nos bairros pobres e periféricos ocupados por trabalhadores subalternos, como a infeliz Cláudia Ferreira, massacrada por agentes do Estado que deveriam figurar como seus protetores e não como seus algozes.
Tristeza e revolta dos colegas no enterro de Leidson (brasil247.com) |
Dentre as postagens críticas enviadas por policiais, amigos ou colegas de farda de Leidson nas redes sociais, encontramos uma em que o interlocutor questiona se seria dada tanta publicidade à morte do tenente da PM na UPP, como foi dada ao pedreiro Amarildo, morto por policiais militares também dentro da área de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Insinua-se que Amarildo, por ser acusado de estar vinculado ao tráfico, teria um fim merecido, como se fosse possível justificar a morte cruel de qualquer um que seja, debaixo de porradas de cacetetes, coturnos e fuzis, e depois ter seu corpo escondido, como quem esconde lixo ou um animal morto. A brutalidade dos crimes realizados por policiais militares contra Amarildo não tem justificativa, assim como não se justifica ter a cabeça fulminada por balas enquanto se encontra em serviço, como aconteceu com a também brutal morte do tenente Leidson Acácio. Coloquemos os pingos nos "is".
Cláudia:mais uma vítima da violência policial (blogueirasfeministas.com) |
O que se dizer da morte de Cláudia Ferreira? Ela também mereceu morrer? O problema da morte da auxiliar de serviços gerais é o problema de milhares de cidadãos pobres que moram na periferia das grandes cidades: estar o tempo todo no lugar errado nas horas erradas. Confundida com uma criminosa ou mesmo acusada de estar "dando cafézinho a traficantes", Cláudia também teve um fim que não merecia. Ao mesmo tempo em que encontro postagens nas redes sociais enaltecendo a figura de Leidson, criticando as organizações de defesa dos direitos humanos, e mesmo apresentando um certo ressentimento da corporação fardada com a população do morro, eu não encontrei qualquer mensagem esdrúxula desse mesmo segmento justificando a conduta atrapalhada dos policiais que atiraram em Cláudia, e que a arrastaram pelas ruas, sob o olhar público de milhares de pessoas. O corpo desfalecido da faxineira Claúdia, dilacerado no concreto em pele, ossos e dignidade, não encontrou ainda quem o justificasse, mas não deixa de ser paradoxal o pensamento comum na deturpada subcultura policial de que matar um PM em serviço é uma injustiça, mas um PM matar um civil por engano é somente um "vacilo". É por conta dos vacilos de policiais como os que mataram Claudia que as estatísticas oficiais estão cheias de casos macabros, envolvendo truculência, brutalidade policial e abuso de autoridade, e não o contrário. Os registros de mortes de policiais em serviço são inversamente proporcionais à quantidade de casos de violência policial, mas isso não vem ao caso. O que é mais importante é constatar que tanto Leidson quanto Claúdia, em lugares, funções e papéis sociais diferentes, foram vítimas do mesmo sistema, um sistema que destrói tanto a vida de policiais quanto de moradores de áreas periféricas.
A meu ver, Leidson e Cláudia são vítimas.Vítimas de uma política criminal fajuta e anacrônica, que além de não dar resultados eficazes em termos de policiamento, não consegue a adesão da população. As UPPs foram criadas no governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, para tentar dar fim à violência ostensiva do crime organizado que dominava os morros, e ao mesmo tempo forjar uma nova imagem da PM, vista com tanta desconfiança e temor por membros da comunidade, visto o histórico de truculência, tortura, e trocas de tiros entre policiais e bandidos, com balas perdidas que sempre alvejavam os moradores dos bairros mais pobres. Em sua primeira aparição as UPPs pareciam um sucesso, com reportagens na mídia e altos índices de popularidade, que levaram, inclusive, o governador à reeleição. Entretanto, a ausência de continuidade da intervenção social do Estado, com políticas públicas que sedimentassem as UPPs, acabaram por colocar tudo a perder. Primeiro foi o escandaloso caso de Amarildo, imensamente divulgado não só no Brasil mas no mundo inteiro, seguindo-se de novos confrontos entre policiais e traficantes, nas áreas outrora ocupadas e que voltaram a se tornar um teatro de guerra. A morte do tenente Leidson é apenas mais um capítulo dessa saga manchada com sangue e violência. A manutenção da subcultura excludente do corporativismo policial e a permanência da desconfiança entre policiais e moradores foi a fórmula cujos ingredientes combinados resultaram na morte de Cláudia Ferreira. Afinal, confundir morador do morro ou favela com bandido é comum no cotidiano da atividade policial, que atua num sistema penal cuja seletividade leva a identificar pobres como criminosos. O problema é quando, com base nessa confusão, pessoas são alvejadas inadvertidamente por guarnições policiais, e transportadas como sacos, arrastadas pelas ruas, como aconteceu na triste morte da auxiliar de serviços gerais, baleada enquanto segurava uma garrafa de café.
A despedida dos familiares de Cláudia (g1.globo.com) |
Sem tomar partido nem do tráfico e nem de policiais criminosos, eu prefiro adotar nos casos relatados a mesma ótica adotada pelo cineasta João Moreira Sales, em seu famoso documentário Notícias de uma Guerra Particular. Na película é demonstrando tanto o cotidiano de policiais quanto de moradores de favelas, traficantes e vítimas da violência policial. No final do filme, em cenas emblemáticas, vemos o enterro de um adolescente, vítima da violência policial e das balas perdidas entre policiais e bandidos, como também vemos o funeral de um policial militar, com direito a salva de tiros e todas as honras militares. A violência decorrente da ausência e ineficácia estatal atinge tanto agentes do Estado quanto populares, sem distinção. Aos familiares de Leidson e de Cláudia eu só desejo consolo, nesse momento tão difícil da perda de entes queridos. Ao Estado e a seus governantes eu desejo consciência e vergonha na cara, com a participação intensa de representantes nobres da polícia e da sociedade civil, para que sejam formuladas políticas de policiamento que ao mesmo tempo protejam policiais em serviço, assim como protejam trabalhadores, moradores das áreas ocupadas. Estamos todos no mesmo barco e do jeito que a canoa vem sendo guiada, com a displicência governamental de antes, tudo indica que essa embarcação tem tudo pra afundar. Tomara que eu não esteja dentro dela quando isso acontecer!
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