sexta-feira, 13 de agosto de 2010

POLÍCIA: 9ª DP-Um caso a ser estudado: um diagnóstico da crise da segurança pública numa cidade do Nordeste.

Natal, no Rio Grande do Norte,  é considerada a "cidade do sol". Cantada em verso e prosa por seus artistas e poetas, a pequena metrópole potiguar vive rodeada de belas paisagens, com sol, praias e dunas, num dos cartões postais mais bonitos do país. Durante o dia, ao seguir para o trabalho, vejo a imensa quantidade de turistas acotovelados em carros de passeio (chamados aqui de buggys) e ônibus de turismo, admirando a extensa paisagem marítima, que alivia o stress do mais angustiado mortal.

Porém, além dessa Natal bela, feérica, produto de reportagens sobre viagens e turismo, existe uma Natal verdadeira, uma cidade real, típica do Nordeste, com todas as mazelas resultantes de um processo de urbanização desenfreado, ausência de políticas sociais e a ignorância de muitos de seus governantes quanto aos reais problemas e necessidades da população, na ganãncia de uma elite provinciana regada a muita água de côco, cerveja gelada, carros importados,  forró e axé-music. Para citar apenas um exemplo da mal formação urbana da cidade, hoje, para uma cidade que se habilitou a ser uma das sedes dos jogos da Copa de 2014, possui-se um anel viário totalmente esgotado, com um trânsito lento, monótono ou estancado, em congestionamentos incríveis que consomem milhas de asfalto, que só fazem lembrar metrópoles de verdade, como a capital paulista. Além disso, os problemas de inundações com as chuvas são corriqueiros, o sistema de telefonia pública é quase todo danificado ou obsoleto e muitos bairros populares reclamam da ausência de ônibus ou na demora em serem atendidos, num transporte coletivo apinhado de gente, com milhares de trabalhadores que saem da zona norte da cidade, em direção a seus empregos subalternos, na base de muito stress, poluição e calor.

Nessa Natal de verdade, que inexiste nos cartões postais, nas proximidades da avenida Bernardo Vieira, onde realmente começa a cidade, encontra-se o marco divisório da grotesca e nítida relação de classes na sociedade potiguar, com a edificação do último templo de consumo, ao se vislumbrar o imponente prédio do shopping Midway Mall. A partir dele, e seguindo pela avenida, num corredor frenético e interminável de carros, ônibus, animais de rua e passantes, chegamos logo na linha do trem, onde se acumula sujeira, pobreza, caos e irresponsabilidade, na quantidade de meninos de rua que podem ser vistos pedindo esmolas nos semáforos, lavando parabrisas dos carros, vendendo penduricalhos ou se entregando ao crime, através de pequenos furtos ou venda de crack. Nesse mesmo local, pode-se ver, durante a noite, esquálidas garotas de programa oferecendo seus maltratados corpos, castigados pela violência doméstica, ou por álcool e drogas. Podemos ver também pequenas vilas e favelas ao se aproximar do rio Potengi, que banha a cidade, onde bandos de vadios ou pequenos gatunos perambulam sem rumo durante a madrugada, alguns se posicionando com canivetes ou utilizando enferrujadas armas de fogo na saída de feiras, caixas eletrônicos, nos pontos de ônibus para assaltar vans e outros transportes alternativos, ou se penduram nos tetos das casas de vizinhanças mais abastadas, a fim de arrombar residências e vender o produto do furto nas diversas bocas de fumo que pululam no local. Nas comunidades, ao se chegar na ponte, em direção ao bairro de Igapó, gangues juvenis promovem algazarras em festas, dias de partidas de futebol, saídas de colégios ou tão e simplesmente em eventos populares, jurando-se um ao outro de morte e engordando as estatísticas oficiais de casos de homicídio, a cada garoto morto que é encontrado pela polícia no dia seguinte, com o odor de seu sangue esparramado ainda a preencher o ambiente; até a chegada do rabecão.

Por falar em polícia, onde é que estão os dignos representantes da segurança pública diante de um quadro social tão dantesco, mas tão normal  no  cotidiano de tantas urbes modernas? A polícia militar, não obstante treinada nos anos recentes sob os parâmetros ideológicos do policiamento comunitário, ainda engatinha a passos tímidos no sentido de promover sua inserção junto à comunidade. As delegacias de polícia ficam repletas de gente, sobretudo nos fins de semana ou segundas-feiras, com a quantidade de problemas corriqueiros de toda DP, desde brigas de vizinhos e perda de documentos, até assaltos, ações organizadas de quadrilhas, violência doméstica, tráfico de drogas e muitos, muitos homicídios. Das unidades policiais que lidam com as ocorrências frequentes dessa Natal real, encontra-se a 9ª DP ou 9º Distrito Policial, no jargão técnico-administrativo instituído pela lei que a criou. É uma das maiores delegacias da capital, tendo em vista a extensão da área de sua circunscrição policial, pegando os bairros que mais sofreram as consequências do abrupto crescimento urbano da cidade, e das mazelas sociais dele decorrentes. São centenas de vilas, povoados, conjuntos residenciais, loteamentos, bairros e pequenas comunidades de trabalhadores mal assalariados ou de baixa renda, totalizando cerca de 200.000 habitantes, com faixas extensas para o aparecimento de cortiços e favelas, com ruas de barro e areia, mal calçadas ou recém asfaltadas, mas com a deficiência típica de serviços públicos, conforme eles vão se distribuindo mais minimamente nas áreas mais paupérrimas da cidade. A 9ª DP lida com um cinturão oblíquo de criminalidade, uma miríade de problemas e circunstâncias que atormentam os moradores da área e intrigam  a mente dos investigadores, nos procedimentos da polícia, em casos indissolúveis ou de difícil solução. A cifra negra da criminalidade está presente na sequência de delitos, que muitos agentes do Estado só descobrem por ouvir dizer, ou por escutar em comentários nas ruas onde moram, porque as vítimas ou interessados não procuram a delegacia para registrar ocorrências.

A zona norte de Natal atualmente é a maior área de expansão urbana da cidade. Com mais da metade do total de habitantes do município, a região vem sendo disputada enormemente pela classe política nas últimas campanhas eleitorais, em virtude de seu eleitorado vital e crucial para a vítória em uma eleição. É natural que o discurso mais evidente e palavra de ordem na campanha seja o tema da segurança. Entretanto, pouco se tem feito, seja na esfera municipal ou na seara estadual, para debelar os conflitos surgidos de uma má administração e precária racionalização do aparato policial. Aposta-se num discurso cosmético, apenas apoiado no aumento dos efetivos, do que pensar uma lógica gerencial que, se não dirime, ao menos atenua as sucessivas crises que vem se desenvolvendo na manutenção de uma função policial minimamente atuante.

Ao se deparar com a realidade da 9ª DP, o observador mais incauto percebe o câncer social que esta unidade policial tem que lidar ao se constatar, por exemplo, que no ano de 2007, a delegacia registrava mais de 460 inquéritos em andamento, chegando aos dias de hoje com ao menos 600 procedimentos policiais instaurados e a resolver. Desse montante, ao menos 300 dizem respeito a casos de homicídio, revelando a macabra cifra de que pelo menos a cada três dias, alguém vai a óbito por morte violenta nessa parte desolada da cidade. Soma-se a isso a cobrança ininterrupta de providências por parte do Judiciário e do Ministério Público, as sucessivas reclamações pelo não cumprimento de diligências, atrasos de prazo e impotência na descoberta de delitos de autoria desconhecida. Seria necessário um exército de policiais, com um contingente inteiro de delegados, escrivães e investigadores, a fim de suprir deficiências de pessoal e material tão intensas, que para esse mesmo observador que se deparou com uma realidade tão caótica, só resta pensar que se trata de um caso perdido.

A polícia do Rio Grande do Norte é uma polícia doente, assim como doentes são todas as coletividades policiais, onde as políticas traçadas para aproveitamento dos recursos humanos dizem respeito tão somente ao recrutamento de mais e mais policiais para o serviço público. Aprovados nos concursos, os policiais ingressantes logo se deparam com um meio hostil e com a debilidade de uma atividade que deveria ser muito socialmente recompensada. A quantidade de licenças médicas e pedidos de exoneração de servidores que buscam opções melhores de vida, revela uma estrutura incapaz de manter seu próprio pessoal na corporação; e a ausência de investimentos na qualificação, condições de trabalho e preparação psicológica do policial acaba fazendo que ele seja vítima do principal vilão nesse tipo de atividade: o stress. São longas as filas de policiais nos postos de saúde ou na junta médica do Estado, com os mais variados problemas, desde crises hipertensivas até problemas mentais. A incidência do alcoolismo, tabagismo doentio, consumo de drogas ilícitas, depressões, ansiedades e cardiopatias compromete o efetivo dos policiais mais gabaritados e experientes, que numa realidade como a da 9ª DP, ao não se renderem ao jogo mesquinho da corrupção ou da prática da tortura, e ao quererem desempenhar suas funções com o mínimo de dignidade possível, acabam por sofrer na pele as lesões da alma típicas de quem se propôs a atender a população, a serviço do Estado, mas não consegue dar conta da imensa demanda de casos criminais, e acaba sendo subjugado por esse próprio Estado, esmagado pela bota autoritária de um velho e ultrapassado modelo de policiamento, que não corresponde mais aos anseios da sociedade.

Acredito numa realidade diferente para a segurança pública numa sociedade democrática. Acredito na manutenção de valores, na consecução de objetivos e na realização de finalidades a que se competem todos os dignos representantes de um projeto transformador do Estado, como sujeitos históricos que sentem na pele as angústias de uma mãe de família que perdeu brutalmente o seu filho, ou de um honesto trabalhador que viu subtraído todo seu patrimônio adquirido com seu justo esforço. Mas acredito também que um novo modelo só será possível quando a carcomida estrutura de um Estado herdeiro de um modelo fascistóide e ditatorial deixe de existir. Temos toda uma nova geração de policiais legalistas e defensores dos direitos humanos, educados num Estado Democrático de Direito sob as normas da Constituição Federal de 1988, e que acreditam num direito fundamental constitucionalmente assegurado que é a segurança. Segurança essa que, por sua vez, deve ser vista não como um direito em si, mas sim como uma garantia constitucional de um direito que compete a todos, e que não pode jamais ser violado: a liberdade. Liberdade tanto da ânsia gananciosa do crime, como das amarras sufocantes e desprezíveis de um Estado baseado apenas na justiça de classe. Enquanto não formos livres para pensar, repensar, questionar e discutir os novos rumos de nossa segurança e os parâmetros devidos que devem nortear definitivamente uma boa atividade policial, veremos desgraças como a que se presencia na 9ª DP, com seu universo triste de casos mal ou não resolvidos, procedimentos parados e autoridades impotentes, diante de tanto descaso governamental.

Que Deus tenha piedade da população da zona norte de Natal e que proteja os que estão por trás das paredes da 9ª DP!! Isso tem que mudar!!

terça-feira, 10 de agosto de 2010

CRIMES NO TRÂNSITO: Na derrapada do destino, "a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".

O filme O quarto do filho, do ator, cineasta e ativista italiano Nanni Moretti, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2001, retrata da forma mais fiel possível a dor e o sofrimento dos pais pela perda de um descendente. Talvez não exista dor maior no mundo do que perder um filho, sobretudo de forma violenta. É uma mutilação da alma que nunca cicatriza. É como perder uma parte do corpo: o braço, a perna, os olhos, ou pior, o coração.


Imagino esse tipo de sofrimento, também tão bem escrito e cantado na voz de Chico Buarque, na canção Pedaço de Mim, ao tratar da dor da atriz global Cissa Guimarães, que continua chorando a perda de seu filho mais novo, o jovem guitarrista e estudante Rafael Mascarenhas. Como já é sabido pela imprensa, Rafael estava junto com os amigos brincando de skate em um túnel interditado do bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, quando foi atropelado por um dos veículos participantes de um racha. O condutor do veículo, também jovem e de classe média como Rafael, nem chegou a prestar socorro, limitando-se a chamar ajuda por uma ambulância.  Mas o pior ainda estava por vir com o flagrante de inoperância e corrupção policial, quando os policiais que presenciaram a saída do veículo avariado do local da colisão, sequer tomaram as providências legais que os obrigam numa hora dessas, tais como apreender o veículo ou deter o motorista. Na verdade, os policiais agiram de forma contrária: liberando o veículo e o suposto assassino do volante, para incredulidade e espanto geral da população, nas cenas captadas em vídeo pelo circuito interno de fiscalização da Companhia de Engenharia do Tráfego do Rio.

Pior que lamentar a morte do filho de Cissa é ver a sequência de erros que revela uma prática macabra e cotidiana no asfalto ensaguentado das ruas e avenidas deste país. Diariamente, milhares de pessoas são vítimas fatais do trânsito nas ruas das grandes cidades ou rodovias brasileiras, sem que se consiga identificar os infratores ou responsabilizar quem quer seja por essa chacina rodoviária. É profundamente triste vislumbrar o que ocorreu com Cissa  pela morte de seu filho, mas não se deixa de notar que tal fato somente ganhou a repercussão que teve por conta da popularidade de alguém envolvido numa tragédia e o ineditismo de ter sido ceifada a vida do filho de uma pessoa famosa. No país inteiro, delegacias de polícia ficam apinhadas de inquéritos e processos não resolvidos envolvendo desastres automobilísticos e não tem Código de Trânsito Brasileiro que dê jeito.


Por falar em Código, em 23 de setembro de 1997 foi publicada a Lei nº 9.503, que institui o novo Código de Trânsito, ainda em vigor, e que estabelece em sua parte especial, a partir do artigo 302: as condutas que são definidas como crimes de trânsito, com severas sanções, dependendo do tipo de infração cometida. O primeiro artigo, acima citado, trata exatamente do homicídio culposo na direção de um veículo automotor, impondo uma pena de detenção de 2 a 4 anos, devendo ainda ser estabelecida a suspensão ou proibição de se obter permissão ou dirigir veículo automotor, sob pena de prisão.
O caso de Rafael ainda se mistura a outro, mais macabro ainda, ocorrido no ano passado, no Paraná, quando o então deputado estadual, de 25 anos, Fernando Ribas Carli Filho, visivelmente embriagado, acabou com a vida de dois estudantes universitários ao voltar de uma farra num restaurante em Curitiba, numa colisão tão medonha que chegou a decepar a cabeça de um dos infelizes jovens que estavam no veículo colidido. Após renunciar ao mandato de deputado, Carli Filho poderá ser submetido a jurí popular, caso a decisão da justiça paranaense entenda que ele agiu dolosamente, uma vez que assumiu o risco de matar alguém ao dirigir um veículo alcoolizado.

E quanto ao caso do filho de Cissa Guimarães? Ora,se eu fosse aqui advogar a tese da defesa do condutor do veículo que o atropelou, eu poderia levantar teses sustentadas na teoria da imputação objetiva e saber até que ponto houve ou não uma imputação objetiva do resultado, pelo crime de trânsito praticado, ou se houve aqui algo que envolvesse o âmbito de responsabilidade da vítima. Traduzindo em leigas linhas: o que compete dizer é até que ponto a vítima concorreu ou não para o resultado delituoso; ou se o transcurso do tempo entre a conduta realizada pelo acusado e o resultado foi suficiente para se estabelecer se o risco produzido pelo acusado foi aquele mesmo que resultou no dano sofrido pela vítima, e que, portanto, o dano só pudesse ocorrer por causa disso. Explico: a via de acesso onde ocorreu o fato trata-se de um túnel interditado à frequentação pública; ou seja, era proibido que alguém estivesse ali, e, portanto, não poderia haver pessoas no local, seja de skate ou munido de qualquer outro meio de transporte como bicicletas, carros ou caminhões.
Porém, prosseguindo com meu raciocínio, imagino o quanto a inoperância e tolerância dos poderes públicos concorre aqui (adotando uma perspectiva de concorrência de riscos) para o infortúnio de origem criminosa que vitimou o filho de Cissa Guimarães. Durante meses o citado túnel continuou sendo visitado por populares, principalmente adolescentes, por se tratar de um local ideal para a prática de skate. É bem verdade que a Prefeitura deveria designar locais específicos para a difusão dessa modalidade esportiva; mas foi justamente ali, no bairro da Gávea, repleto de uma classe média adolescente, jovem, doida para ter uma diversão perto de casa, que meninos como Rafael se dirigiram para brincar um pouco. Ora, quem é que nunca foi adolescente e faria isso? Eu mesmo, quando garoto, morando em Brasília, adorava andar de skate, mesmo com a série de hematomas e escoriações que levei, além das repreensões de minha mãe, por brincar numa via pública e quase ser atropelado por isso.
Por outro lado, existe uma conduta muito mais arriscada e criminalizável do ponto de vista penal, relacionada com a ação do motorista que atropelou Rafael, identificado também como outro Rafael, desta vez Rafael Bussamra, também jovem, carioca e de classe média, que acabou por ser envolvido num dos mais tristes episódios de corrupção policial. Segundo a imprensa, após ter cometido o atropelamento, acompanhado pelo pai, Roberto Bussamra, um dia após o atropelamento, ambos ofereceram propina aos policiais que detiveram inicialmente o carro de Bussamra, e pagaram a eles R 1.000,00 pelo silêncio dos policiais quanto ao incidente, apesar de, segundo a polícia, os policiais terem pedido R$ 10.000,00 inicialmente. Pois é! A vida humana de um atropelado, hoje em dia, nas grandes metrópoles, só vale mil reais!!!

Mas voltando ao aspecto penal do fato, e ainda incorrendo pela teoria da imputação objetiva, vejo que quanto ao resultado, não poderia se falar em não-criminalização da conduta atribuída a Rafael Bussamra. Afinal, como disse, no túnel da Gávea era proibido pessoas trafegarem pelo local, seja de skate ou não, e se o Rafael vítima errou ao entrar no local junto com seus colegas, o Rafael atropelador errou mais ainda, ao entrar no local com seu veículo e ainda participar de um "pega" num racha de veículos, produzindo o mórbido resultado de sua grotesca irresponsabilidade.

Jovens são movidos a hormônios, chegam a ser reféns deles; e muitos deles os utilizam numa série de condutas que podem muito bem ser questionadas no aspecto criminal. Alguns sublimam suas paixões juvenis e desejos intensos namorando ou praticando esportes, uns, como Rafael Mascarenhas, dedicavam-se à música ou andavam de skate, enquanto que outros, como Rafael Bussamra, preferem participar de rachas. De qualquer forma, a conduta de Bussamra pode ser altamente questionada juridicamente no momento em que, ao participar do racha, o atropelador participou, segundo o entendimento do jurista Claus Roxin, de um "risco tipico"; ou seja, o que ele produziu ao entrar no túnel da Gávea em alta velocidade com seu veículo já estava enquadrado no âmbito do ilícito, pois, pela "teoria do incremento do risco", uma vez que fica comprovado que o autor de um ilícito produz um risco desaprovado, este deve ser atribuído como produção do resultado delituoso. Em curtas palavras: Rafael Bussamra errou ao entrar no túnel interditado, e pelo que aconteceu graças a sua entrada, deve ser responsabilizado por isso!

Isso ocorre porque a lei exige que alguém se porte corretamente em determinadas situações, evitando a produção de riscos desnecessários, que são desaprovados pela norma. É a velha questão dos riscos permitidos e não-permitidos. No momento em que ajo com dolo ( a intenção consciente de fazer ou deixar de fazer algo ou assumir o risco de que algo seja feito), eu me responsabilizo pelo risco que produzi, quando, por exemplo, entro em alta velocidade numa estrada, próximo à saída de um colégio, cheios de crianças, que sei pelo horário que estão de saída, vindo a atropelar e matar alguém. Não há de se falar em âmbito de responsabilidade da vítima ou concorrência da vítima nos riscos, visto que ela nem sequer tinha ideia de que algo pudesse acontecer. Tá certo que alguns aqui podem me dizer que o Rafael skatista podia saber do risco que estava tomando quando entrou de skate num túnel interditado, mas o risco maior foi o do outro Rafael, atropelador, que sabendo dos riscos de dirigir em alta velocidade, sobretudo num local proibido ao acesso de qualquer veículo, além de não agir com cautela, assumiu o risco de atropelar alguém, sobretudo porque o lapso de tempo entre o risco produzido e o resultado danoso permiti deduzir que outra lesão não saíria do local senão aquela resultante da ação desaprovada do autor do fato, no caso Rafael Bussamra. E tenho dito!

Agora, no que tange à política criminal, apenas um adendo: não sou partidário das teorias do rigor punitivo, apenas idenfico riscos que podem ou não ser tolerados. Se eu trabalho a expectativa em relação ao outro de não ser molestado no trânsito enquanto trafego ou caminho enquanto pedestre, então é legítimo exigir dos poderes públicos o mínimo de responsabilidade na hora de vedar locais de acesso ao público: se é para um túnel ficar fechado, que permaneça fechado e pronto! Se é para motoristas irresponsáveis serem detidos ou terem, no mínimo, seus carros apreendidos, quando promovem nefastas manobras perigosas que atentam contra a vida dos outros, que sejam detidos ou apreendidos seus carros! A equação parece logicamente fácil quando se trata de povos civilizados, mas parece que no Brasil, segundo o entendimento do antrópologo carioca Roberto da Matta, a sociabilidade fundada no "sabe com quem está falando" acaba por atrapalhar a objetividade da aplicação da lei penal. Em resumo: quem tem, paga pra não ser indiciado, e assim, a ciranda da impunidade não perde seu ritmo!

Ocorre que numa sociedade consumista como a nossa, o irresistível frenesi do automóvel se torna um possante fator criminógeno. Como gigantes de aço e rodas, vemos veículos serem transformados por seus donos em autênticas extensões de seu falo, e nessa virilidade exercida ao volante, vemos que jazem pelo asfalto vítimas e mais vítimas de uma cidade que não valoriza o transporte coletivo, fator de convivialidade, e sim viabiliza na linha de montagem da produção capitalista motoristas individualistas, egoístas, hipócritas seguidores das leis de trânsito, em seus bólidos inflamados de testosterona e falta de respeito com o próximo. Vemos isso nas buzinadas inconsequentes, no arremesso de latinhas, piubas de cigarro e até escarradas pelas janelas dos carros, pela água borrifada no pedestre em dia de chuva no passar ligeiro dos pneus dos carros em alta velocidade pelas poças d'água, assim como vemos a barbárie automotiva no motorista que atravessa a faixa, que entra em local proibido, que dirige o tempo inteiro em alta velocidade, que não respeita ninguém, a não ser o prazer próprio de dirigir, e que acaba por matar, sem dó nem piedade. Assim como no desenho de Walt Dysney, a figura do personagem Pateta transforma-se do senhor andante para o senhor volante, numa metamorfose violenta em que pacatos cidadãos transformam-se em monstros, em verdadeiros lobisomens da autoestrada, quando assumem a direção de um veículo. Foi por um desses jovens lobisomens que Rafael Mascarenhas perdeu a vida. É por um desses que você ainda pode vir a ser atropelado, a não ser que você se transforme em um deles. Vai encarar?

Agora, enquanto o autor desse triste episódio não foi devidamente responsabilizado (se é que vai ser), só resta, infelizmente, por enquanto, a nós que esperamos Justiça e a Cissa Guimarães a música do Chico:

"Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti

Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada

No membro que já perdi".

Pergunto, usando o velho lugar comum: Até quando????

domingo, 8 de agosto de 2010

MANUAL DO ADVOGADO CRIMINALISTA: PARTE I

Se eu fosse tratar a tituto de apresentação, diria que a iniciativa deste blog já foi mais do que externada para aqueles que se deram o tempo de ler minhas porcas e tortas linhas. De qualquer forma, abro uma nova perspectiva de encarar o fenômeno criminal agora bancando o Lair Ribeiro da criminalística. O guru da autoajuda de muitos jovens advogados que querem lidar com um dos setores mais nobres e mais tradicionais da ciência jurídica que é o Direito Penal. Mas antes de lidar com o processo penal, precisamos lidar com pessoas, lidar com a sociedade, encarar fatos e situações que envolvem crimes e criminosos. Desta forma, nesse singelo manual que agora trago ao conhecimento do público, vão aqui algumas dicas, sugestões e contribuições de quem já advogou, pretende voltar a advogar e gosta de lecionar sobre como advogar nessa pitoresca seara que é a área criminal.

IDENTIFICANDO O CENÁRIO:

Um bom advogado crimminalista trata de identificar a realidade com a qual vai trabalhar. Analisa o comportamento de juízes, promotores, outros advogados da área, além de traçar um perfil de vítimas e criminosos. Toma conhecimento do funcionamento dos cartórios, passa a conhecer os funcionários e estabelecer contatos pessoais por meio de um agendamento de telefones e e-mails. É fundamental que ele saiba, por exemplo, qual é a maior frequência de lides penais na comarca em que vai atuar e quais são as decisões majoritárias tomadas pelos tribunais locais, em nível de jurisprudência, acerca de temas penais específicos. O advogado criminalista tem seu próprio "fio de Ariadne" que o guia através do labirinto de processos e casos jurídico-criminais, sempre tendo debaixo do braço um exemplar do Diário Oficial, ou acessa pela internet os julgados criminais mais recentes, para não ser atacado pelo Minotauro do fracasso profissional.

DAS RELAÇÕES COM OS CLIENTES

Clientela é fundamental para qualquer profissional liberal, que o diga da advocacia e, naturalmente, está diretamente relacionada à condição sócio-econômica da população. Segundo o historiador John Gillissen, os advogados como se conhece hoje surgiram na Era Moderna no período de ascensão da burguesia, quando era necessário que causídicos defendessem os interesses da classe emergente de comerciantes contra a atrasada jurisdição feudal, e por isso, eram remunerados por tal tarefa. Apesar da expressão honorários estar até hoje relacionada com o caráter honorífico e a tarefa honrosa de se defender judicialmente alguém, no sistema capitalista os honorários passarram a significar não apenas a virtude do exercício de uma nobre profissão, mas sim um potencial fator de acumulaçáo de riqueza para os advogados. Na área criminal não deixaria de ser diferente, e os advogados criminalistas são os que mais lucram, dependendo do ãmbito de infrações penais que se debruçam a trabalhar. Alguns advogados se tornam habilidosíssimos defensores do tribunal do júri, enquanto que outros se dão melhor assessorando empresas, em funções de consultoria, proporcionando defesas em crimes econômicos ou ambientais. Ainda existem aqueles que advogam para o crime organizado, patrocinando causas de traficantes e chefes de quadrilhas, ou aqueles que se debruçam a defender funcionários públicos acusados de corrupção, em processos criminais ou procedimentos disciplinares administrativos. Na relação com o cliente o advogado criminal sempre tem que levar em conta o seguinte lema:" posso não gostar do sujeito, mas todo cidadão tem direito a uma boa defesa". É esse o slogan que o advogado criminalista iniciante deve transformar num verdadeiro mantra, mostrando porque é importante a advocacia, valorizando seu trabalho profissional, ao mesmo tempo em que auxilia no patrocínio da justiça.

DAS RELAÇÕES COM A POLÍCIA

Um bom advogado criminalista sempre mantém uma estreita relação com os órgãos da repressão estatal, especialmente com as polícias, seja ele militar ou civil. Há advogados que se relacionam melhor com policiais militares, pois, vira e mexe, conseguem estabelecer uma boa rede de contatos nos comandos ou nas corregedorias, advogando para policiais militares eventualmente presos, acusados de tortura, corrupção ou desvio disciplinar. Outros advogados aproximam-se mais da polícia civil, e por terem os delegados como seus colegas de formação, por serem bacharéis em direito, tendem a manter uma sólida rede de amizades e cooperações, no sentido de descobrir casos e advogar para suspeitos indiciados em inquéritos policiais. É fundamental que o advogado consiga se fazer respeitar nas delegacias sem que isso implique em intervenção nas tarefas dos delegados, e não podem eles tão e simplesmente funcionar como promotores, realizando um controle externo, querendo participar das açóes policiais e diligências. O advogado criminalista tem que saber que no teatro criminal ele desempenha um papel semelhante a de um jogador de xadrez, onde a polícia e o Estado figuram do lado adversário, querendo imputar uma conduta criminosa  a seu cliente, e ele, por outro lado, age com as peças dentro desse tabuleiro, também realizando sua tarefa investigativa, que podemos chamar de "contrainvestigação". Para dar somente um exemplo, vamos ao caso das interceptações telefônicas. É claro, lógico e translúcido, que um delegado de polícia jamais revelaria ao advogado de um suspeito investigado, que estaria monitorando com autorização judicial os telefones utilizados por seu cliente. Por outro lado, sabedor das ligações do cliente, o advogado participa do jogo, orientando seu cliente de como falar ao telefone, sugerindo que determinadas conversas só sejam feitas pessoalmente e em locais reservados, ou pelo uso da internet, atráves da utlização de caixas postais, por meio de correio eletrônico. Nas reconstituições, pela própria norma processual penal, o advogado sabe que seu cliente não é obrigado a produzir prova contra si próprio, e por isso recomenda, por vezes, que ele não participe da reprodução simulada do fato delituoso que se envolveu. Nos interrogatórios, devido à precariedade do caráter probatório do inquérito, o advogado crimnalista também sabe orientar devidamente seus clientes nos interrogatórios, sempre tomando o cuidado de obter acesso aos depoimentos alheios, úteis à investigação, para já na fase pré-processual ele possa desenvolver sua linha de defesa. Assim como a polícia trabalha com informantes, é bom que o advogado também possua os seus, que lhe façam permitir que seu cliente se antecipe aos passos da polícia, não dê motivo para investigações ou perseguições infundadas, e que mantenha sempre o máximo de discrição e reserva possíveis. O advogado criminalista consegue se antecipar ao inquérito quando consegue que seu cliente, já no momento da redação dos famigerados boletins individuais e de vida pregressa, apareça formalmente aos olhos da polícia como o mais pacato e inofensivo dos seres. É importante para isso orientar a vida social do cliente de modo que ele venha a trabalhar com álibis ou lhe seja possível dissipar suspeitas, dependendo dos lugares e atividades que o cliente realiza. O advogado criminalista, em síntese, funciona para o acusado como um escudo contra a intervenção da polícia.

DA RELAÇÃO COM OS JUÍZES E COM OS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O advogado criminalista compõe com promotor e juiz uma tríade assimétrica e equidistante. Se de um lado os membros do ministério público representam a acusação no processo penal, o advogado simboliza a defesa, enquanto que o juiz mantém uma distância de ambos, posicionando-se acima, com uma formal neutralidade, que sabemos que só existe de maneira formal na literalidade da lei. Graças à contribuição da criminologia crítica, sabemos que o julgamento dos juízes são sempre valorativos e o sistema penal funciona mediante uma seletividade, onde necessariamente juízes e promotores escolhem aqueles que merecem, segundo sua lógica de classe, receber a punição penal. Advogados criminalsitas não são ingênuos de achar que a justiça é igualmente promovida a todos, e sabem que do mito positivista da igualdade formal de todos perante a lei, o que sobra é tão somente a aplicação da lei penal para os menos abonados economicamente. Nesse sentido, no jogo de cena do cenário criminal, é interessante que ele consiga transformar seu cliente, aos olhos do Judiciário e da acusação, no mais pobre, mas também no mais íntegro dos homens, trabalhando a ideia de que ali se encontra no processo mais uma vítima do sistema e não tão somente um pobre diabo que optou pelo crime.No processo penal, face a herança racionalista, ainda é conferido um grande peso e valorização da prova pericial, e, nesse sentido, é interessante ao advogado criminalista sempre trabalhar com novas perícias ou com o questionamento das perícias anteriormente realizadas, sempre trabalhando para produzir novos meios de prova, cientificamente apuráveis. A possibilidade da contratação de peritos extraoficiais, assim como a consulta a profissionais e técnicos de outras áreas do conhecimento, de relevante contribuição social ou de elevado status ou prestígio profissional, também serve como uma relevante ferramente para aqueles que querem exercer uma boa advocacia durante o processo criminal. É natural que a desclassificação delitiva ou a negativa de autoria são as duas linhas-mestre de qualquer boa e qualificada defesa criminal.

Em síntese, esses foram uns primeiros apontamentos daquilo que espero que sirva como um pitoresco retrato de como eu vislumbro a advocacia criminal e de como me proponho, como profissional da área, a trabalhar esses temas e debatê-los aqui com pessoas tão interessadas quanto eu. Não é necessário concordar ou discordar das teses apontadas acima, mas o diálogo e a contribuição através da crítica, estabelecendo algum comentário, sáo sempre bem vindos. Como disse antes, a proposta é construir conjuntamente ideias, mais do que informar, e no momento em que estes escritos produzirem ecos, creio que parte da missão já estará cumprida. Até a próxima parte!!

domingo, 1 de agosto de 2010

O QUE O CASO BRUNO E O DE MÉRCIA NAKASHIMA TEM EM COMUM? A POLÍCIA QUE FINGE SER POLÍCIA.

Mercia Nakashima era uma bela e jovem advogada, descendente de orientais, que teve sua vida ceifada abruptamente na margem da represa Nazaré Paulista. Também bonita, e também tragicamente desaparecida, Eliza Samudio foi sequestrada, torturada, morta e esquartejada para que seu corpo não fosse encontrado, segundo tese da polícia de Minas Gerais, expressa no relatório final do inquérito que apura a responsabilidade dos autores de um sórdido crime. Em ambos os casos vemos trágicas semelhanças: ambas eram mulheres, bonitas e jovens, assassinadas supostamente por seus namorados ou amantes, e as duas foram mortas de forma planejada, premeditada, numa resolução de caso difícil, em que os indícios colhidos na investigação criminal foram falhos, fluidos, frágeis, quase que um presente para os advogados de defesa; pois em ambos os casos torna-se difícil condenar os acusados, seja por falta de provas quanto a autoria do crime, seja pela inexistência de um corpo. Como prender Misael, ex-namorado de Mércia, supostamente o autor dos tiros e do afogamento que tiraram a vida da advogada? Como responsabilizar Bruno, seus asseclas Macarrão e Bola, além de sua mulher e outra ex-amante, pelo suposto assassinato de Eliza? Por que é tão difícil condenar quem possivelmente praticou de fato os delitos de que são acusados, já que não existe prova suficiente para isso? Por que as investigações não foram tão eficazes? Por que agora o julgamento de ambos os supostos assassinos terá que ser feito pela opiniião pública e não pelas provas produzidas no processo penal?

A polícia brasileira age conforme uma ânsia midiática. Dos poderes públicos, aquele que é mais movido à mídia trata-se do executivo, através de suas secretarias de segurança. De que adianta mostrar na TV novos prédios de escolas construídas, novos hospitais ou novas ambulâncias, quando o que dá patrocinador e chama anunciantes nos programas televisivos são viaturas, pistolas, coletes e metralhadoras, além de uma polícia que prende, atirando primeiro e perguntando depois? Para que uma investigação criminal paulatinamente séria, austera, isenta, científica, racional, se o que o povão quer é a indicação dos culpados, o big show da hora do almoço, onde as câmeras se esforçam em focar um ex-ídolo do futebol caminhando a passos trôpegos para a cadeia, algemado, com seus trajes de presidiário? Para que se defender um duo process of law, traduzindo, um devido processo legal, se o que interessa é ver um Misael acuado, ao lado de seu atônito advogado, irritado com as perguntas de um delegado de polícia, mas totalmente à vontade na sua impunidade, porque é difícil comprovar e punir um cruel assassinato?

A polícia, em particular a polícia judiciária, ao menos no Brasil atua de forma diferente das suas congêneres de outros países ou regiões. Adota-se uma única linha de investigação, de preferência a mais rápida, a mais cômoda, a que "cole mais rápido", para se dar satisfação ao grande público, num interesse, como disse, muito mais midiático do que processual. Não interessa à polícia brasileira auxiliar na promoção da justiça, mas sim satisfazer interesses: seja dos poderosos, do grande público, dos récordes de audiência ou da sanha dos anunciantes. O policial civil brasileiro, o investigador, joga pra plateia, muito mais do que acreditando no seu próprio potencial, no seu faro investigativo, e por isso, deixa perder muitas luzes que a sabedoria de sua própria investigação poderia conduzir, sem pressões, sem tropeços ou atropelos. Infelizmente, na pressa de querer dar satisfação à mídia, esse mesmo policial pode acabar chutando uma bola fora!

E de bolas fora foi o que acompanhamos no já esquecido caso do Bar Bodega, narrado em livro pelo jornalista Carlos Dorneles (Editora Globo, 2007); onde, num começo de anos noventa, a classe média paulistana acordou assombrada com o desfecho de um crime simbolizado num assalto desastrado a um popular botequim em Moema, pertencente a atores globais, que  resultou na morte de uma estudante de odontologia e de um dentista, ambos baleados, e que gerou um movimento raivoso de caça aos criminosos, onde nove pé-rapados da periferia paulista foram presos e torturados, mesmo sem ter relação alguma com o crime, para que confessassem ser os autores do homicídio de Adriana Ciola. Deveu-se somente a atuação de um promotor consciente, de convicções firmes e respeitador dos príncípios da legalidade e do devido processo penal, a verdadeira resolução do caso,  uma vez que foi possível desmascarar a farsa montada pela polícia paulista e descobrir os verdadeiros autores dos latrocínios, sem, contudo, que antes fossem produzidas mazelas psicológicas inimigáveis no corpo surrado e torturado dos nove jovens que conheceram  injustamente a prisão. A polícia paulista fez um trabalho feio, muito feio, e parece não ser diferente o que vem sendo produzido na apuração de casos como o de Mércia ou do desaparecimento da amante do ex-goleiro Bruno. Mas, afinal, até quando tanta incompetência?

Como receita de bolo eu prevejo, em primeiro lugar, a extinção do inquérito policial, ao menos na forma como se encontra hoje, e uma verdadeira reformulação da investigação criminal, do papel da polícia, do judiciário e do ministério público na resolução de delitos. Precisamos ter promotores mais atuantes, ou seja, mais próximos da policia, assim como devemos ter realmente uma polícia mais subordinada aos interesses do judiciário na coleta de provas, sem medo de se submeter ao titular da ação penal, já que cabe ao ministério público processar os autores de crimes, e, assim como se dá no processo norte-americano, e que podemos ver em seriados de TV, tais como o Lei e Ordem, a polícia atua como uma efetiva colaboradora das promotorias, que dão a linha da investigação, competindo aos policiais, não ouvir burocraticamente na forma de depoimento aqueles que investigam, mas sim de produzir, efetivamente, provas contra eles. É permitido o contraditório, assim como em todo e qualquer processo civilizado de persecução penal. Faz parte das regras do jogo, mas enquanto advogados de defesa tentam resguardar teses e provas para seus clientes, policiais fazem seu trabalho identificando suspeitos, testando variáveis, desenvolvendo várias linhas de pensamento, desdobradas da tese centr:al da acusação, e vão à luta. De forma bem diferente que a atabalhoada apuração do caso Bruno, que mesmo com toda uma pirotecnia, com a utilização de biólogos, peritos e até analistas das fezes dos cães da raça rotwelleir, que teriam supostamente devorado os restos de Eliza, ainda não foram capazes de demonstrar onde está o corpo ou o que sobrou de um cadáver que simplesmente não apareceu. Aí eu pergunto: como é que se faz a materialidade de um crime de homícidio, sem corpo?

E o caso Mércia? Até o presente momento não se reuniram provas suficientes para demonstrar que foi realmente Misael quem matou ou mandou matar sua ex-namorada, apesar das evidências trabalharem em direção a ele. Mas que evidências? Segundo o processualista Aury Lopes Jr., professor da PUC de Porto Alegre, evidência não se confunde com prova, pois que o se mostra evidente, claro, aberto, à luz dos olhos, pode ser desmanchado com uma boa defesa, quando predomina o contraditório, e na fase de livre produção de provas, a mais contundente acusação pode ser derrubada, quando os advogados do réu tão e simplesmente indicam uma prova com uma contra-prova: como é que você consegue provar que fui eu que matei se você não tem prova disso? Ora, na conduta criminosa, existem dois componentes básicos: um subjetivo e um objetivo, que se chamam dolo e ação. Numa explicação simples, eu tenho que provar que no meio desse interregno alguém realmente quis fazer alguma coisa e efetivamente o fez. Esse é o problema na investigação das supostas autorias de Bruno e Misael. Essa é a bandeja que é dada de presente a qualquer bom e inteligente advogado criminalista, até que a polícia consiga o milagre de fazer o corpo de Eliza reaparecer ou de demonstrar eficazmente que foi Misael quem desferiu os tiros mortais que acabaram com Mércia, ou se foi alguém a mando dele. Parece tão fácil, não?!Mas ao mesmo tempo ficou tão difícil. Acoooordaaaa polícia judiciária!!