terça-feira, 10 de agosto de 2010

CRIMES NO TRÂNSITO: Na derrapada do destino, "a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".

O filme O quarto do filho, do ator, cineasta e ativista italiano Nanni Moretti, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2001, retrata da forma mais fiel possível a dor e o sofrimento dos pais pela perda de um descendente. Talvez não exista dor maior no mundo do que perder um filho, sobretudo de forma violenta. É uma mutilação da alma que nunca cicatriza. É como perder uma parte do corpo: o braço, a perna, os olhos, ou pior, o coração.


Imagino esse tipo de sofrimento, também tão bem escrito e cantado na voz de Chico Buarque, na canção Pedaço de Mim, ao tratar da dor da atriz global Cissa Guimarães, que continua chorando a perda de seu filho mais novo, o jovem guitarrista e estudante Rafael Mascarenhas. Como já é sabido pela imprensa, Rafael estava junto com os amigos brincando de skate em um túnel interditado do bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, quando foi atropelado por um dos veículos participantes de um racha. O condutor do veículo, também jovem e de classe média como Rafael, nem chegou a prestar socorro, limitando-se a chamar ajuda por uma ambulância.  Mas o pior ainda estava por vir com o flagrante de inoperância e corrupção policial, quando os policiais que presenciaram a saída do veículo avariado do local da colisão, sequer tomaram as providências legais que os obrigam numa hora dessas, tais como apreender o veículo ou deter o motorista. Na verdade, os policiais agiram de forma contrária: liberando o veículo e o suposto assassino do volante, para incredulidade e espanto geral da população, nas cenas captadas em vídeo pelo circuito interno de fiscalização da Companhia de Engenharia do Tráfego do Rio.

Pior que lamentar a morte do filho de Cissa é ver a sequência de erros que revela uma prática macabra e cotidiana no asfalto ensaguentado das ruas e avenidas deste país. Diariamente, milhares de pessoas são vítimas fatais do trânsito nas ruas das grandes cidades ou rodovias brasileiras, sem que se consiga identificar os infratores ou responsabilizar quem quer seja por essa chacina rodoviária. É profundamente triste vislumbrar o que ocorreu com Cissa  pela morte de seu filho, mas não se deixa de notar que tal fato somente ganhou a repercussão que teve por conta da popularidade de alguém envolvido numa tragédia e o ineditismo de ter sido ceifada a vida do filho de uma pessoa famosa. No país inteiro, delegacias de polícia ficam apinhadas de inquéritos e processos não resolvidos envolvendo desastres automobilísticos e não tem Código de Trânsito Brasileiro que dê jeito.


Por falar em Código, em 23 de setembro de 1997 foi publicada a Lei nº 9.503, que institui o novo Código de Trânsito, ainda em vigor, e que estabelece em sua parte especial, a partir do artigo 302: as condutas que são definidas como crimes de trânsito, com severas sanções, dependendo do tipo de infração cometida. O primeiro artigo, acima citado, trata exatamente do homicídio culposo na direção de um veículo automotor, impondo uma pena de detenção de 2 a 4 anos, devendo ainda ser estabelecida a suspensão ou proibição de se obter permissão ou dirigir veículo automotor, sob pena de prisão.
O caso de Rafael ainda se mistura a outro, mais macabro ainda, ocorrido no ano passado, no Paraná, quando o então deputado estadual, de 25 anos, Fernando Ribas Carli Filho, visivelmente embriagado, acabou com a vida de dois estudantes universitários ao voltar de uma farra num restaurante em Curitiba, numa colisão tão medonha que chegou a decepar a cabeça de um dos infelizes jovens que estavam no veículo colidido. Após renunciar ao mandato de deputado, Carli Filho poderá ser submetido a jurí popular, caso a decisão da justiça paranaense entenda que ele agiu dolosamente, uma vez que assumiu o risco de matar alguém ao dirigir um veículo alcoolizado.

E quanto ao caso do filho de Cissa Guimarães? Ora,se eu fosse aqui advogar a tese da defesa do condutor do veículo que o atropelou, eu poderia levantar teses sustentadas na teoria da imputação objetiva e saber até que ponto houve ou não uma imputação objetiva do resultado, pelo crime de trânsito praticado, ou se houve aqui algo que envolvesse o âmbito de responsabilidade da vítima. Traduzindo em leigas linhas: o que compete dizer é até que ponto a vítima concorreu ou não para o resultado delituoso; ou se o transcurso do tempo entre a conduta realizada pelo acusado e o resultado foi suficiente para se estabelecer se o risco produzido pelo acusado foi aquele mesmo que resultou no dano sofrido pela vítima, e que, portanto, o dano só pudesse ocorrer por causa disso. Explico: a via de acesso onde ocorreu o fato trata-se de um túnel interditado à frequentação pública; ou seja, era proibido que alguém estivesse ali, e, portanto, não poderia haver pessoas no local, seja de skate ou munido de qualquer outro meio de transporte como bicicletas, carros ou caminhões.
Porém, prosseguindo com meu raciocínio, imagino o quanto a inoperância e tolerância dos poderes públicos concorre aqui (adotando uma perspectiva de concorrência de riscos) para o infortúnio de origem criminosa que vitimou o filho de Cissa Guimarães. Durante meses o citado túnel continuou sendo visitado por populares, principalmente adolescentes, por se tratar de um local ideal para a prática de skate. É bem verdade que a Prefeitura deveria designar locais específicos para a difusão dessa modalidade esportiva; mas foi justamente ali, no bairro da Gávea, repleto de uma classe média adolescente, jovem, doida para ter uma diversão perto de casa, que meninos como Rafael se dirigiram para brincar um pouco. Ora, quem é que nunca foi adolescente e faria isso? Eu mesmo, quando garoto, morando em Brasília, adorava andar de skate, mesmo com a série de hematomas e escoriações que levei, além das repreensões de minha mãe, por brincar numa via pública e quase ser atropelado por isso.
Por outro lado, existe uma conduta muito mais arriscada e criminalizável do ponto de vista penal, relacionada com a ação do motorista que atropelou Rafael, identificado também como outro Rafael, desta vez Rafael Bussamra, também jovem, carioca e de classe média, que acabou por ser envolvido num dos mais tristes episódios de corrupção policial. Segundo a imprensa, após ter cometido o atropelamento, acompanhado pelo pai, Roberto Bussamra, um dia após o atropelamento, ambos ofereceram propina aos policiais que detiveram inicialmente o carro de Bussamra, e pagaram a eles R 1.000,00 pelo silêncio dos policiais quanto ao incidente, apesar de, segundo a polícia, os policiais terem pedido R$ 10.000,00 inicialmente. Pois é! A vida humana de um atropelado, hoje em dia, nas grandes metrópoles, só vale mil reais!!!

Mas voltando ao aspecto penal do fato, e ainda incorrendo pela teoria da imputação objetiva, vejo que quanto ao resultado, não poderia se falar em não-criminalização da conduta atribuída a Rafael Bussamra. Afinal, como disse, no túnel da Gávea era proibido pessoas trafegarem pelo local, seja de skate ou não, e se o Rafael vítima errou ao entrar no local junto com seus colegas, o Rafael atropelador errou mais ainda, ao entrar no local com seu veículo e ainda participar de um "pega" num racha de veículos, produzindo o mórbido resultado de sua grotesca irresponsabilidade.

Jovens são movidos a hormônios, chegam a ser reféns deles; e muitos deles os utilizam numa série de condutas que podem muito bem ser questionadas no aspecto criminal. Alguns sublimam suas paixões juvenis e desejos intensos namorando ou praticando esportes, uns, como Rafael Mascarenhas, dedicavam-se à música ou andavam de skate, enquanto que outros, como Rafael Bussamra, preferem participar de rachas. De qualquer forma, a conduta de Bussamra pode ser altamente questionada juridicamente no momento em que, ao participar do racha, o atropelador participou, segundo o entendimento do jurista Claus Roxin, de um "risco tipico"; ou seja, o que ele produziu ao entrar no túnel da Gávea em alta velocidade com seu veículo já estava enquadrado no âmbito do ilícito, pois, pela "teoria do incremento do risco", uma vez que fica comprovado que o autor de um ilícito produz um risco desaprovado, este deve ser atribuído como produção do resultado delituoso. Em curtas palavras: Rafael Bussamra errou ao entrar no túnel interditado, e pelo que aconteceu graças a sua entrada, deve ser responsabilizado por isso!

Isso ocorre porque a lei exige que alguém se porte corretamente em determinadas situações, evitando a produção de riscos desnecessários, que são desaprovados pela norma. É a velha questão dos riscos permitidos e não-permitidos. No momento em que ajo com dolo ( a intenção consciente de fazer ou deixar de fazer algo ou assumir o risco de que algo seja feito), eu me responsabilizo pelo risco que produzi, quando, por exemplo, entro em alta velocidade numa estrada, próximo à saída de um colégio, cheios de crianças, que sei pelo horário que estão de saída, vindo a atropelar e matar alguém. Não há de se falar em âmbito de responsabilidade da vítima ou concorrência da vítima nos riscos, visto que ela nem sequer tinha ideia de que algo pudesse acontecer. Tá certo que alguns aqui podem me dizer que o Rafael skatista podia saber do risco que estava tomando quando entrou de skate num túnel interditado, mas o risco maior foi o do outro Rafael, atropelador, que sabendo dos riscos de dirigir em alta velocidade, sobretudo num local proibido ao acesso de qualquer veículo, além de não agir com cautela, assumiu o risco de atropelar alguém, sobretudo porque o lapso de tempo entre o risco produzido e o resultado danoso permiti deduzir que outra lesão não saíria do local senão aquela resultante da ação desaprovada do autor do fato, no caso Rafael Bussamra. E tenho dito!

Agora, no que tange à política criminal, apenas um adendo: não sou partidário das teorias do rigor punitivo, apenas idenfico riscos que podem ou não ser tolerados. Se eu trabalho a expectativa em relação ao outro de não ser molestado no trânsito enquanto trafego ou caminho enquanto pedestre, então é legítimo exigir dos poderes públicos o mínimo de responsabilidade na hora de vedar locais de acesso ao público: se é para um túnel ficar fechado, que permaneça fechado e pronto! Se é para motoristas irresponsáveis serem detidos ou terem, no mínimo, seus carros apreendidos, quando promovem nefastas manobras perigosas que atentam contra a vida dos outros, que sejam detidos ou apreendidos seus carros! A equação parece logicamente fácil quando se trata de povos civilizados, mas parece que no Brasil, segundo o entendimento do antrópologo carioca Roberto da Matta, a sociabilidade fundada no "sabe com quem está falando" acaba por atrapalhar a objetividade da aplicação da lei penal. Em resumo: quem tem, paga pra não ser indiciado, e assim, a ciranda da impunidade não perde seu ritmo!

Ocorre que numa sociedade consumista como a nossa, o irresistível frenesi do automóvel se torna um possante fator criminógeno. Como gigantes de aço e rodas, vemos veículos serem transformados por seus donos em autênticas extensões de seu falo, e nessa virilidade exercida ao volante, vemos que jazem pelo asfalto vítimas e mais vítimas de uma cidade que não valoriza o transporte coletivo, fator de convivialidade, e sim viabiliza na linha de montagem da produção capitalista motoristas individualistas, egoístas, hipócritas seguidores das leis de trânsito, em seus bólidos inflamados de testosterona e falta de respeito com o próximo. Vemos isso nas buzinadas inconsequentes, no arremesso de latinhas, piubas de cigarro e até escarradas pelas janelas dos carros, pela água borrifada no pedestre em dia de chuva no passar ligeiro dos pneus dos carros em alta velocidade pelas poças d'água, assim como vemos a barbárie automotiva no motorista que atravessa a faixa, que entra em local proibido, que dirige o tempo inteiro em alta velocidade, que não respeita ninguém, a não ser o prazer próprio de dirigir, e que acaba por matar, sem dó nem piedade. Assim como no desenho de Walt Dysney, a figura do personagem Pateta transforma-se do senhor andante para o senhor volante, numa metamorfose violenta em que pacatos cidadãos transformam-se em monstros, em verdadeiros lobisomens da autoestrada, quando assumem a direção de um veículo. Foi por um desses jovens lobisomens que Rafael Mascarenhas perdeu a vida. É por um desses que você ainda pode vir a ser atropelado, a não ser que você se transforme em um deles. Vai encarar?

Agora, enquanto o autor desse triste episódio não foi devidamente responsabilizado (se é que vai ser), só resta, infelizmente, por enquanto, a nós que esperamos Justiça e a Cissa Guimarães a música do Chico:

"Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti

Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada

No membro que já perdi".

Pergunto, usando o velho lugar comum: Até quando????

2 comentários:

  1. Professor gostaria que me dissesse se a área criminal é uma área rendosa para quem deseja fazer meia carreira, estou para me aposentar em alguns anos. grato. Luiz Santos.luizes007@gmil.com

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