Li recentemente a clássica obra de Dworkin, O Império do Direito, notável e célebre jusfilósofo norte-americano, um dos grandes nomes do pensamento jurídico moderno, assim como é também seu colega de vida acadêmica, o magistrado e professor Raul Eugênio Zaffaroni, ministro da suprema corte Argentina e louvado juspenalista. Na juventude, Dworkin trabalhou muitos anos na assessoria de juizes e tribunais, sendo um profundo crítico e teórico sobre o papel da magistratura. Na escrita de Dworkin posso ver a solene referência aos juízes, como os soberanos do direito. Ora, para Dworkin, se os tribunais são os palácios do direito, os juízes são os seus príncipes.
Temo que alguns ilustres e estudiosos bacharéis em direito compreendem mal a asssertiva de Dworkin ou interpretam de forma bem limitada a frase acima, comportando-se mais como reis autoritários e absolutistas, do que como efetivos representantes do Estado Demócrático de Direito. Acredito que os cacoetes do positivismo júrídico e do formalismo-individualista do Estado liberal-burguês contribuíram para isso; mas não deixo de notar a forma quase egoística como alguns magistrados se apegam ao cargo, e ao entender de forma incompleta ou parcialmente distorcida o direito, acabam por utilizar as leis e as prerrogativas que elas lhes conferem, para se transformarem em verdadeiros monstros togados a assombrar os operadores jurídicos. Já tivemos nossos "Lalaus" e Rocha Matos da vida, mas, independente dos juízes vendedores de sentença, estes sim autênticos criminosos de colarinho-branco, temo muito mais aqueles qeu julgam mal não porque estejam comprometidos com a corrupção ou envolvidos em atividades criminosas. Temo os juízes que julgam mal por ideologia!
Uma amiga minha, jovem advogada, reclama que em sua experiência forense, os juízes de sua comarca atuam como se fossem chefes dos advogados. Não obstante o Estatuto da OAB prever que não existe hierarquia alguma entre promotores, juízes e advogados, e que todos eles devem se comportar junto ao outro de forma respeitosa e civilizada, entendo que muitos juízes ainda se acham superiores: seja por que estudaram mais, e passaram num rigoroso e extenuante concurso; seja porque agora exercem um cargo de autoridade, de notável e reconhecido status social. Sei disso, porque já advoguei, e quando jovem percebi bem a empáfia de certos senhores, apesar de já ter encontrado também nobres e muito dignos profissionais do direito, presentes na magistratura. Creio que o machismo, o racismo, o preconceito social, o reaçonarismo, o conservadorismo latente e a arbitrariedade, não sejam atributos apenas de juízes ou de outras autoridades do Estado, mas estejam presentes em diversos setores e profissões de nossa sociedade. Mas o quão impactante é para mim pensar que vivemos num regime democrático, num Estado Constitucional de Direito, e ainda podemos ver tantos abusos, desmandos e ilegalidades cometidas em prol do direito, por aqueles a quem o direito deveria ser alvo de sua proteção.
Ouvi falar que um certo juiz, famoso pelas decisões de sua lavra, ao contrário de ser um ferrenho defensor da constitucionalidade ( como que lhe compete por força constitucional, pois o Judiciário é o responsável pelo controle difuso da Constituição), acabou por cometer atos flagrantemente inconstitucionais, como a determinação da identificação criminal de suspeitos de crimes, sem que sequer inquéritos tenham sido instaurados contra essas pessoas. É o primeiro (e grave) sintoma de uma doença que ataca a magistratura, principalmente a brasileira, a "juizite", o descambo para o abuso de autoridade, o uso da toga como símbolo máximo e onipresente de poder, não do Estado, não da sociedade, não da lei, mas de uma pessoa, de um ser togado, que se acha acima do bem e do mal.
Há alguns anos, conheci num encontro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), em São Paulo, um juiz do Maranhão, que por mais simpático, falante e brincalhão que fosse, revelou-me algo bem típico daquilo que os sociólogos do direito e a criminologia crítica entendem como "metanorma"; ou seja, uma forma pré-concebida de julgar, baseada muitas vezes em estereótipos ou estigmatizações. Ele me disse em tom de galhofa, que costumava já atribuir a pena do condenado, antes do julgamento, só de olhar pra ele. Disse-me que quando via o sujeito entrar na sala de audiências, pela cara dele, ele já calculava em sua mente: "esse vai pegar 12, 20, 30 anos", e que fazia isso sem cerimônia, porque, no entender dele, após as diversas firulas da acusação e dos advogados de defesa, ele já tinha sua sentença definida na cabeça.
Posso citar diversos outros casos, como o de um juiz do trabalho que mandava ficarem calados os advogados, pois não admitia questionamentos em suas audiências; ou de um juiz famoso pela peculiaridade como atendia belas advogadas, principalmente se elas estivessem bem vestidas, perfumadas e maquiadas, usando minúsculas saias ou vestidos, enquanto a fila de causídicos empacava no corredor judicial. Ainda me recordo de outros juízes, parciais até as sandálias, ao concederem liminares para ricos empreendedores ou latifundiários, egressos de sua mesma classe social, seja para conceder alvarás de soltura em processos criminais, ou para determinar a desocupação de terras e bens imóveis, na expulsão de sem-teto ou trabalhadores do campo. Dura lex sede lex, poderão dizer muitos deles. Pois é, a lei é dura, mas não pode endurecer o direito!
A juizite é um dos principais males de nossa democracia. Um rebento autoritário nascido antes do apogeu de nossas ditaduras, formado numa sociedade estratificada, fechada, excludente, totalitária, segmentada e tradicionalista, que se era adequada no mais visível feudalismo, não mais se coaduna com a realidade dos dias de hoje. É impressionante ver o quanto alguns senhores julgadores são cegos quanto ao desenvolvimento de fenômenos sociais, quanto à crise e a falência de modelos estatais ultrapassados, e o quanto continuam a fundar suas decisões muito mais pautados por opiniões pessoais ou preconceitos, do que propriamente numa visão real e holística das situações fáticas e dos fenômenos jurídicos. Não dá pra se resolver o problema da segurança pública, por exemplo, da morosidade da persecução penal e do encalhe de inquéritos policiais nas delegacias, tão e simplesmente atribuindo multas a delegados, pela não conclusão dos prazos, como se eles fossem os únicos responsáveis pelo desmantelamento de uma estrutura estatal que tem pouco a oferecer, para quem quer realmente solucionar delitos. É impressionante a dissonância, discordância e receio que alguns membros do Ministério Público tem ao se relacionar com os juízes, na obtenção de mandados de prisão, busca e apreensão ou escutas telefônicas, pela visão totalmente monolítica que tem alguns doutos julgadores, de considerar que somente sua opinião é a que basta, e que quem manda no processo é ele, por ser o responsável por seu julgamento.
A juizite é totalmente diferente do espírito da magistratura. Este sim, digno de nota e respeitável como um autêntico princípio do direito, norteador da atividade dos juízes numa democracia. O espírito da magistrura norteia a arte de julgar, com sabedoria, acuidade social e compromisso ético. Os juízes não são apenas mandantes de ordens, magnânimas autoridades encasteladas no ar-condicionado de seus gabinetes ou salas de audiência. Os juízes, para Dworkin, são autênticos autores de transformações sociais, judicializam a política; mas isso não se confunde com os desmandos autoritários ou com o ativismo típico daqueles que se consideram o próprio direito, e, como dizia meu professor no doutorado, o célebre jurista Lenio Streck: " não pode um juiz pé de chinelo querer virar um município de cabeça pro ar, por conta de uma liminar". O juiz não deve se ater somente à frieza do Código, mera ferramenta, ou a solução anódina proposta pela legislação extravagante. O bom "juiz Hércules", proposto por Dworkin, deve ser aquele paladino da justiça, que conhece a realidade social, pois se considera inserido nela. É sabedor dos meandros e da crise do Estado, e por isso é capaz de inovar com decisões inteligentes, que tem o dom de melhorar e não de piorar as précarias condições do sistema estatal. É sobretudo o representante de homens e mulheres, de crianças e velhos, de saudáveis e enfermos, de negros, brancos e pardos e todas as classes e segmentos sociais. O juiz soberano é aquele que entende, permeado pelo espírito da magistratura, que as melhores decisões podem ser dadas pela equidade, pela justa medida, de acordo com seu entendimento e sensibilidade acerca do real quadro de caos social.
Acredito sim numa nova ordem social mais justa, com justos e sábios juízes, pois apesar da tristeza de ter me deparado com muitos magistrados ruins, tive também o prazer e a gloria de conhecer e interpretar os julgados de fabulosos julgadores. A juizite tem sim, cura, e a cura para tal enfermidade ideológica talvez seja o incentivo ao amplo debate, ao estudo realizado com afinco na beleza da ciência jurídica, e no conhecimento filosófico da política e do Estado. Acredito que cada colega juiz que faço, nos cursos de pós-graduação em direito ou ciências sociais, interessado muito mais na mais fina discussão sobre assuntos do direito, do que no aumento de seu contracheque e nos benefícios corporativos de sua categoria profissional, nos jantares de seus semelhantes, é uma lufada de esperança nova que me vem ao pensamento, no projeto revolucionário de transformação do direito. Bem aventurados sejam os sedentos de justiça, pois serão saciados, já dizia o versículo bíblico. Bem aventurada a Justiça brasileira quando se ver liberta dos males da juizite. Um grande abraço aos grandes e verdadeiros juízes, cujas decisões são cumpridas não só por obediência à legalidade, mas, sobretudo, pelo reconhecimento da legimitidade do julgador! Juiz bom não é o que manda, é o que escuta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário