2010 está terminando.Mais um ano que se passa rapidamente, mais mudanças que se esperam na necessária reforma do aparato estatal brasileiro. Começaremos o ano com uma nova presidente, novos governadores, um novo Congresso Nacional e novos legislativos estaduais. Será um ano de preparativos e definições para uma Copa do Mundo que se anuncia daqui há 3 anos e meio, uma Olimpíada que ocorrerá em pouco mais de cinco anos, e pouco tempo para uma avalanche de tranformações que o Estado e a sociedade brasileira necessitam desde a redemocratização, há quase trinta anos, quando a Constituição de 1988 foi finalmente promulgada.
Entre Tropas de Elite, 9mm São Paulo, Forças Tarefa e Federais* da vida vivemos uma realidade que em muito transpõe a ficção da literatura policial. São milhões de brasileiros vivendo uma relação polícial X cidadão, por metro quadrado, que necessitam que as polícias brasileiras atuem sob uma nova perspectiva, revisando velhas práticas imediatistas e anacrônicas, conduzindo a um novo modelo de aparelho policial e uma nova forma de se estabelecer uma política criminal, consentânea à realidade de uma sociedade democrática. Não obstante a desigualdade social, não se pode mais conceber uma polícia de classe, tão somente destinada a cumprir a velha função de controle social somente dos excluídos, dirigindo suas armas e algemas para pretos, pobres e despossuídos. O obsoleto modelo do inquérito policial, na vetusta legislação processua penal brasileira, e a forma de investigação baseada muito mais na informação desencontrada de informantes ou na confissão obtida mediante tortura, nas políticas criminais de "pé na porta" dos tempos autoritários, não pode mais receber guarida em nossas organizações policiais. Mas como mudar isso?
Creio que qualquer iniciativa de mudança acaba por envolver pessoas e mentalidades. São conhecidos na bibliografia criminal, diversas obras que tratam sobre as polícias, dizendo quase sob a forma de um mantra, que a reforma do aparato policial passa por eliminar as velhas práticas, afastando-se os velhos policiais, comprometidos com práticas atrasadas e autoritárias, dando-se espaço a novas concepções de membros da corporação mais jovens. Recordo-me até hoje que, certo dia, logo após ter sido nomeado delegado, reuni-me em uma mesa de bar com um jovem filho de um delegado aposentado, que ficou contrariado comigo quando eu dizia que os policiais da velha geração, por força da cultura vivenciada na época, eram apegados à práticas autoritárias (apesar de dizer que ele não tinha a mínma culpa disso). Parecia quase uma ofensa aos ouvidos dos nossos nobres delegados mais antigos, eu dizer que o modelo de polícia que eles concebiam, não era mais adequado à sociedade de nossos tempos. Havia uma resistência incrível à mudança, a um projeto de transformação social, como se isso significasse uma ameaça à manutenção de privilégios. Eu não estava ali para atacar ninguém, muito pelo contrário, mas tive o atrevimento de abrir minha boca, apenas para dizer o óbvio: a história segue seu curso. Sempre temos que evoluir!
Neste final de ano, conforme as Leis Orgânicas de muitas polícias (especialmente da polícia judiciária), está havendo a formação de novas cúpulas da segurança pública, com novos agentes públicos a exercerem funções de liderança, e, consequemente, haverá a troca de comando nas corporações. No Rio Grande do Norte, recentemente, após um controverso período de adiamentos e incertezas, foi eleito um novo Conselho Superior de Polícia-o Consepol. Trata-se da instãncia máxima e representativa da polícia civil do RN, conforme dispõe a Lei nº 270, de 2004, e através deste órgão colegiado, são discutidas as questões mais relevantes da categoria, assim como são estabelecidas as diretrizes da ação policial para todo o estado potiguar. Criada tardiamente, após mais de vinte anos de lutas, a Lei Orgânica da Polícia Civil do RN introduziu o CONSEPOL, como uma iniciativa de democratizar a instituição policial, marcada por anos de mandonismo, autoritarismo e submissão aos chefes políticos locais. Com o CONSEPOL, a velha cúpula da polícia judiciária, egressa da ditadura militar, não poderia mais dar as cartas de cima para baixo, num velho modelo de aparato policial baseado numa lógica eminentemente repressiva e não investigatória, num jogo desigual de interesses minoritários prevalecendo sobre os majoritários; e toda uma nova geração de delegados, escrivães e agentes pôde se candidatar nos processos eletivos da corporação, podendo conquistar uma vaga no conselho.
O dia 22 de dezembro de 2010 irá figurar na história da polícia civil do Rio Grande do Norte como uma data histórica, quando pela primeira vez, numa eleição da instância máxima da polícia, nenhum integrante remanescente da velha ordem, a chamada "velha polícia", conseguiu se eleger para compor um dos quadros do órgão superior da polícia civil. Agora todas as diretrizes, deliberações, projetos, propostas de transformação e alterações de estrutura da polícia passarão por delegados mais jovens, identificados ideologicamente com um modelo de sociedade que em muito difere daquele pensado pelos integrantes da velha geração. São novos profissionais, já formados sob a cultura jurídica da Constituição de 1988, com uma sólida formação no cumprimento dos preceitos constitucionais, e não mais aqueles venhos integrantes do aparato policial, viciados num conhecimento eminentemente prático e deturpado acerca da atividade policial. Passou-se o tempo da "polícia pé na porta", a "polícia dos calças pretas", e surge a polícia cidadã, a polícia do mandado. Para arrepio daqueles comprometidos apenas com a satisfação de seus próprios interesses, parece que se deu uma renovação geral nos quadros da polícia civil, que se resume nisso: o novo chegou, o velho acabou! Se no final de 2010 cantamos o singelo verso: "Adeus Ano Velho, Feliz Ano Novo...", parece-me que na realidade da polícia do Rio Grande do Norte, o velho está, definitivamente, dando adeus e cedendo espaço ao novo. As coisas são assim! A vida é assim, e, que bom que seja assim!
Para 2011, o novo CONSEPOL tem uma série de desafios, tanto de conteúdo estrutural, como de conteúdo subjetivo, no sentido de arejar mentalidades e construir uma nova cultura policial para o aparato de segurança do Estado. As dificuldades passam desde uma nova sede para a instituição, a reformulação e modernização da academia de polícia, a urgentíssima supressão da necessidade de novos equipamentos, além da efetiva renovação tecnológica do aparato, com a implantação de um sistema moderno, informatizado, de feitura de inquéritos e realização de boletins de ocorrência. Os meios de comunicação precisam ser dinamizados e é mais do que fundamental uma integração maior entre as delegacias e uma coordenação de atividades por meio das diretorias, órgãos administrativos e chefias de divisão. A polícia civil do Rio Grande do Norte é uma das mais jovens do país, e uma das que tem o menor contingente de policiais, e urge a necessidade de novos concursos, novas contratações de delegados, escrivães e agentes, além do cumprimento efetivo, por parte do governo, dos acordos e ajustes salariais para a categoria. Além disso, é necessário quebrar como uma separação hierárquica por vezes autoritária e não funcional, que impedia o acesso dos representantes da base (delegados e agentes que trabalham nas unidades-fim), às decisões da cúpula ou ambientes herméticos, de portas fechadas, que impossibilitavam servidores de serem recebidos por seus superiores. Se o Conselho Superior de Polícia surgiu para democratizar a polícia, é necessário que esse processo de democratização continue e não retroceda, criando a polícia civil extensos canais de diálogo entre seus integranres, e com a própria comunidade. A necessidade de inserção de policiais civis no policiamento comunitário e a criação de novas unidades policiais que atendam as demandas sociais não só de policiamento, mas também na resolução de conflitos diversos, também deve ser uma das preocupações dos novos e jovens dirigentes que a a polícia civil do RN terá a partir de 2011.O horizonte é de muito trabalho, mas, ao menos, trabalho realizado por quem realmente vê o aparato policial com outros olhos.
Sou esperançoso de que, realmente, possamos ter um novo modelo de polícia para a sociedade brasileira nos próximos anos, e talvez não peque pelo excesso de otimismo. Na minha experiência trabalhando em parceria com o governo federal, pude ver a ponta do iceberg de um prometido movimento de reforma policial, através das iniciativas do PRONASCI, com a série de programas que foram desenvolvidos pelo Ministério da Justiça nos últimos anos, e pelo empenho de muitos profissionais sérios na formação e aprimoramento de muitos policiais. Creio que a boa semente foi lançada e alguns de seus pequenos frutos já podem ser colhidos, mas muito, creio que 90% ainda tem que ser feito, até que tenhamos um modelo totalmente desapegado do vetusto panorama institucional que tínhamos até anos recentes. A legislação e a polícia brasileira evoluem a pequenos passos de tartaruga, enquanto que a sociedade moderna avança a galope, em direção ao seu destino democrático, competindo aos governantes e agentes públicos, ampliar seus horizontes para mudanças que efetivamente virão. Quanto aos velhos e mal humorados representantes da velha ordem, creio que só existe um destino: a merecida aposentadoria.
* Filmes e séries de TV de sucesso nacional, retratando o consagrado gênero do filme policial, retratando a realidade das polícias brasileiras (polícia militar, civil e polícia federal).
Nenhum comentário:
Postar um comentário