domingo, 5 de dezembro de 2010

OCUPAÇÃO DE MORROS E FAVELAS NO RIO: O que há por trás dessa guerra ao crime?

Vejo estampado em todas as revistas de circulação nacional a extensa operação policial desenvolvida no Rio de Janeiro, na ocupação da favela da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, em resposta às ações criminosas dos últimos dias na cidade, supostamente desencadeadas por lideranças do tráfico de drogas, insatisfeitos com o sucesso das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), instaladas nos morros cariocas e com a atuação enérgica do governo do Rio contra o crime, nas mãos do governador Sérgio Cabral e de seu insubstituível secretário de segurança, José Mariano Beltrame. Afirmou-se em cadeia nacional, em manchetes de jornal e durante todos os dias, numa cobertura extensa da mídia e dos canais de televisão, que o Rio de Janeiro havia vencido a guerra contra o crime.

Como numa ação militar bem sucedida, pudemos ver, nas telas de TV, soldados triunfantes cravando no território ocupado a bandeira do país e do estado do Rio de Janeiro, onde antes funcionava uma boca de fumo ou um reduto de traficantes. Presenciamos nos telejornais jovens traficantes acuados, alguns humilhados, cabisbaixos, ao lado de seus perseguidores, tendo que mostrar seus olhares distantes e desnorteados para a alegria da patuléia, que adora viver de pão e circo. Vimos centenas de tanques e blindados cedidos pelo exército e pela marinha, viaturas, armas pesadas, helicópteros, policiais fortemente armados e bandidos correndo em disparada, numa impressionante cena que parecia ter sido tirada de algum conflito no Oriente Médio ou no Golfo Pérsico: centenas de marginais e traficantes correndo por valas e estradas de barro, desesperados, ante a atuação da polícia e do efetivo bélico do Estado, acuados como baratas expulsas de um bueiro, tentando escapar incólumes do verdadeiro "inseticida" estatal, sob a forma de bombas, metralhadoras, fuzis, pistolas e baionetas. Literalmente ao se falar de guerra contra o crime, o governo do Rio de Janeiro fez com que a cidade maravilhosa se transformasse num cenário bélico. Definitivamente, a tese do Direito Penal do Inimigo foi aplicada a ferro e fogo, contra aqueles considerados inimigos do Estado e da sociedade. Mas toda guerra tem seus indesejáveis efeitos colaterais.

Deixando o discurso fanfarrão e maniqueísta da revista Veja e fora da farra midiática promovida pela TV Globo, procurando mostrar o governador do Rio, seu secretário e toda a polícia carioca como intrépidos servidores públicos, defensores da lei e da ordem contra maléficos marginais, eu tenho aqui comigo algumas teorias conspiratórias, que, se não passam de besteiras ou delírios de alguém com uma forte imaginação, pode ser que façam algum sentido, diante da realidade caótica experimentada pelo Rio de Janeiro nos últimos dias.

Em primeiro lugar, pergunto-me se a violência que acossou o Rio nos últimos dias não foi uma de várias, senão de centenas de ocorrências que envolvem tumulto, quebra-quebra, assaltos, incêndios criminosos de carros e ônibus, tão somente feito por bandidos para chamar a atenção das autoridades. Ora, no Rio de Janeiro, periodicamente é possível ver a ação conjunta e organizada de marginais. O Rio de Janeiro aprendeu cedo a conviver com o crime organizado. Seja na ditadura, sob os tempos de formação do Comando Vermelho, seja nos lenientes governos de Brizola e Garotinho, além do desastre administrativo e das trapalhadas do governo tucano de Marcelo Alencar. Nem mesmo no governo de Moreira Franco (do PMDB do atual governador, Sérgio Cabral), o poder público foi pego de surpresa ou de calças curtas, ao lidar com o complexo sistema de formação da criminalidade no Rio de Janeiro. O Rio não tem nada mais de diferente do que algumas metrópoles, tais como: São Paulo, Bogotá, Cidade do México ou Nova York. Em todos esses lugares há crimes, em todos há traficantes e se desenvolve o crime organizado. Mas no Rio, há a necessidade, vira e mexe, de se colocar efetivos fardados nas ruas. A presença militar (mais do que policial) como um extremo ranço militarista do Estado brasileiro, configura-se na realidade da ação estatal no tocante à segurança pública do Rio. E se tanques, blindados e rapagões fortemente uniformizados não aparecem, aí não se tem combate ao crime.

Surge a fome com a vontade de comer! Um governo que sabe que não é novidade a ação dos bandidos, e que dispõe de um aparato repressivo e militarizado, totalmente a sua disposição, no momento em que o sinal de alerta acende e se anuncia a hora de botar o bloco do terror na rua. Sob a lógica do governante é importante mostrar quem manda de verdade, e no retorno do Leviatã, representado pela poderosa bota estatal, urge que comunidades inteiras, repletas de seus desajustados e marginais, saiba quem é que vai entoar o coro da lei e da ordem. É isso mesmo! Lei e ordem a qualquer preço!Paz, só que a paz no sentido da pax romana de obter o consenso pela obediência, pela subjugação, pela derrota do inimigo epor sua completa subjugação diante do terreno ocupado. Sem meias palavras: a paz se consegue pela guerra.

Porém, sinto que a política criminal "pacifista" adotada pelo governo do Rio não tem por objetivo principal atacar o problema do tráfico de drogas, mas sim seu mais deletério efeito colateral: o tráfico de armas. A meu ver o problema do Rio nunca esteve diretamente relacionado ao tráfico, já que sempre se traficou na cidade maravilhosa. O problema do Rio são as armas carregadas para as bocas de fumo e sedes das quadrilhas, grupos e líderes que sustentam o comércio ilegal de drogas, e que com isso transformam seus barracões em verdadeiros bunkers, com um arsenal repleto de fuzis, granadas e metralhadoras; reproduzindo bem a cultura belicista já desenvolvida na segurança pública fluminense, para lidar com o fenômeno criminal.

O problema de toda intervenção bélica é que ela gera sempre o risco de efeitos colaterais indesejados como a perda da vida de civis, e o completo desrespeito a direitos fundamentais. Num cenário de guerra, casas são invadidas, pessoas recebem balas perdidas ou safanões de soldados, porque (pela sua condição de pobres) são identificados como suspeitos, além de imóveis e estabelecimentos serem destruídos. O pequeno patrimônio de muitos vira poeira debaixo de uma saraivada de armas de grosso calibre, com o uso de granadas, tiros, explosões e a destruição de casas, ruelas e pequenos pontos comerciais. Na guerra confunde-se autoridade com força, e é somente pelo emprego da brutalidade, no exercício dessa força, é que se consegue aniquiliar ou desestabilizar o inimigo. Na lógica de video game dos defensores de medidas severas e coercitivas contra a bandidagem, no melhor estilo law & order, violência se responde com violência.

Diz-se pela mídia que o objetivo principal dos bandidos, ao queimarem carros e atacarem postos policiais, nos dias que antecederam à megaoperação que resultou na ocupação do Complexo do Alemão, foi o de atingir as UPPs. Ora, conveniente foi agora a ocupação extremamente midiática, de um efetivo exército em um dos grotões mais emblemáticos da criminalidade no Rio, para que se reivindique, com bem menos atraso do envio de recursos, a instalação de uma UPP nos locais atualmente ocupados. Para mim, pareceu uma jogada de mestre após o período eleitoral, ter tantos criminosos cometendo a burrice de mobilizar todo o aparato repressivo do Estado contra si próprio; justificando de imediato à implementação de mais recursos e repasses do governo federal, para que as novas UPPs sejam instaladas em tempo recorde. Parece-me que acabou se tornando uma boa ideia colocar soldados, blindados e armamentos nos morros cariocas, como uma forma de manter a presença desses efetivos naqueles lugares, sem cometer os erros de outrora, baseados na tática de ocupação e posterior retirada imediata.  Num primeiro momento, parece razoável que a população queria soluções espartanas, a fim de seja debelado o cotidiano de tiroteios, terror e desmandos de traficantes. Porém, não é só disso que a população pobre, trabalhadora e favelada do Rio deseja, visto que até uma criança de 10 anos, que frequenta o período letivo escolar, sabe que não é só polícia que vai trazer pão, carne, água, gás de cozinha, esgotos, médicos, remédios, enfermeiros, professores e empregos para as comunidades do morro.


As UPPs são uma experiência padrão por que definitivamente deram certo, dentro de sua proposta de ocupar militarmente para pacificiar. Isso não é novidade e durante muitos governos anteriores ao atual, diversos teóricos e pesquisadores já se debruçavam sobre táticas adequadas de ocupação dos morros cariocas, a fim de reduzir os índices de violência e criminalidade. As UPPs são muito boas nisso, no tocante a reduzir o clima de violência e insegurança, dando uma sensação maior de tranquilidade ao morador da comunidade suburbana carioca; mas não devem se resumir a isso. Como bem disse o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL do RJ), se é para o Estado manter uma tática militarizada a fim de lidar com a criminalidade, já que a ocupação se iniciou, não dá mais para voltar atrás. Entretanto, somente o emprego da força com o uso da violência estatal para expulsar traficantes, não será suficiente para reduzir os graves problemas sociais e de inércia governamental, que fizeram crescer a violência e a criminalidade no Rio de Janeiro. É apenas o primeiro passo, de uma caminhada que deve ser feita várias vezes. Conforme artigo da criminóloga e professora da UNIRIO, Elizabeth Sussekind, o ideal para os traficantes que se encontram no morro é a rendição, antes da ocupação, pela possibildade que o Estado tem a oferecer legitimamente a quem deve ser responsabilizado por seus atos, de se entregar e se sujeitar à persecução estatal, com a garantida do devido processo legal e de um julgamento justo. Teimo em dizer que o que vence a violência é muito mais um trabalho de inteligência do que de uso da força. E não tenho a menor vergonha de expor esse ponto de vista, mesmo debaixo de uma saraivada de críticas, de quem acredita que problema de bandido tem que ser resolvido na porrada mesmo.


Não sou contra as UPPs, pelo contrário, e nem sou contra a atual intervenção policial do governo carioca, com as espetaculares cenas de vitória, numa ocupação estatal de um terreno minado pela criminalidade, e que viu a luz do dia seguinte raiar num mar de tranquilidade. O que critico é o uso demagógico disso, na afirmação de que foi vencida uma luta contra o crime e que a via militar é a melhor solução no combate à violência criminal. Na verdade, como já disse, desconfio muito dos preparativos dos atos criminosos realizados no Rio após a eleição, e a imediata (e eficiente) repressão do aparato estatal, logo que tais fatos aconteceram. Diferente do quadro aterrador de total inércia em São Paulo, quando o governo paulista foi realmente pego de surpresa e assistiu atônito as ações criminosas do PCC, no Rio de Janeiro não me saí da cabeça que a secretaria de segurança já tinha um script montado, pronto para ser aplicado, assim que estouraram os primeiros focos de violência, supostamente atribuídos ao crime organizado. Não foi à toa que a megaoperação da polícia carioca foi feita para se tornar manchete nos jornais do mundo inteiro, principalmente na época e para um país que abrigará uma Copa do Mundo, e uma cidade que será sede de uma vindoura Olimpíada.

Chamem-me de chato humanista, mas ainda prefiro me somar ao coro (minoritário?), de integrantes da sociedade que vê a operação da polícia do Rio não com descrédito, mas com cautela. Acima de tudo, defendo a manutenção dos direitos fundamentais dos moradores dos morros e sou completamente contra qualquer tipo de abuso ou arbitrariedade, sob a justificativa de se estar fazendo uma "guerra ao crime". Nesse sentido, tomei a liberdade de transcerver abaixo manifesto da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), lançada recentemente, de acordo com os últimos acontecimentos vivenciados no quadro de violência que se deu no Rio de Janeiro. Em relação ao que pregam os dignos magistrados (com "M"maiúsculo) que integram a citada associação, estou com eles e não abro, quanto à condenação de quaisquer atos abusisvos que possam surgir no exercício do poder de polícia do Estado, no tocante à iniciativa governamental de ocupação dos morros cariocas. POLÍCIA SIM! ARBITRARIEDADE, NUNCA! Com vocês, a palavra da AJD:

"À MARGEM DA LEI TODOS SÃO MARGINAIS
A ASSOCIAÇÃO JUIZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental
e sem fins corporativos, fundada em 1991, que tem por finalidade
estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do
Estado Democrático de Direito, em consideração às operações policiais e
militares em curso no Rio de Janeiro, vem manifestar preocupação com a
escalada da violência, tanto estatal quanto privada, em prejuízo da
população que suporta intenso sofrimento.


Para além da constatação do fracasso da política criminal relativamente
às drogas ilícitas no país, bem como da violência gerada em razão da
opção estatal pelo paradigma bélico no trato de diversas questões
sociais que acabam criminalizadas, o Estado ao violar a ordem
constitucional, com a defesa pública de execuções sumárias por membros
das forças de segurança, a invasão de domicílios e a prisão para
averiguação de cidadãos pobres perde a superioridade ética que o
distingue do criminoso.
A AJD repudia a naturalização da violência ilegítima como forma de
contenção ou extermínio da população indesejada e também com a abordagem
dada aos acontecimentos por parcela dos meios de comunicação de massa
que, por vezes, desconsidera a complexidade do problema social, como
também se mostra distanciada dos valores próprios de uma ordem
legal-constitucional.
O monopólio da força do Estado, através de seu aparato policial, não
pode se degenerar num Estado Policial que produz repressão sobre parcela
da população, estimula a prestação de segurança privada, regular e
irregularmente, e dá margem à constituição de grupos variados
descomprometidos com a vida, que se denominam esquadrões da morte, mãos
brancas, grupos de extermínio, matadores ou milícias.

Por fim, a AJD reafirma que só há atuação legítima do Estado, reserva da
razão, quando fiel à Constituição da República."

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