sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

CHACINAS, MASSACRES,TIROTEIO EM ESCOLAS: por detrás de um jovem desequilibrado, o difícil cotidiano das nações industrializadas diante de sua cultura armamentista

O atirador em uma foto da infância: a inocência que viria a
dar lugar ao terror.
Por serem tão recorrentes, o grande risco de se deparar com mais uma chacina em colégios norte-americanos, como a praticada pelo atirador Adam Lanza, de 20 anos,  na última semana, num colégio na pacata cidade de Newtown, Connecticut, nos EUA, matando 27 pessoas, é o de permanecer indiferente diante de tragédias tão corriqueiras. Para alguns, o sentimento que fica acerca de Lanza, que matou, além de sua mãe, uma dezena de crianças,  é o da banalização da violência; sobretudo se esta se dá em escolas. Lanza é mais  um dos jovens que entram nas estatísticas criminais globais como um assassino desequilibrado, portador de sérios problemas de sociabilidade, que, diante da facilidade e do acesso ao mundo das armas, acabou por produzir mais uma tragédia, matando crianças e pessoas inocentes, além de dar fim à  vida de si próprio.

Há pouco mais de um ano, tivemos nossa cota de tragédia, entrando na triste estatistica global de atiradores em escolas, através  da ação de  Wellington de Oliveira, que ingressou num colégio no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, e lá matou a tiros de revólver 12 crianças e adolescentes, antes de dar fim a própria vida com um tiro na cabeça. Poucos anos antes, em 2007, na Universidade Virgínia Tech, em Blacksburg, também nos Estados Unidos, o estudante sul-coreano, Seung-Hui Cho, praticou a maior chacina em unidades de ensino que se tem notícia, matando 32 pessoas, incluindo um estudante brasileiro de pós-graduação. Todos esses crimes tem fatores em comum: jovens desequilibrados e dissociados da realidade, de difícil socialização e afetivamente frustrados, que, mediante o fácil acesso a armas de fogo, acabam produzindo as horripilantes cenas de massacre de pessoas que nem sequer tiveram a oportunidade de conhecer melhor a vida. Pergunta-se no ambiente criminológico: por que?


Saldo do massacre:mais de duas dezenas de mortos, além
de centenas de crianças e uma sociedade inteira aterrorizada.
Casos de atiradores em shoppings, cinemas, colégios e lanchonetes são comuns na crônica criminal do hemisfério norte, principalmente após sua  industrialização e crises econômicas no século vinte, sobretudo no pós-guerra. Ocorre que crimes dessa natureza passaram a ser celebrizados, a partir do massacre de professores e estudantes nos Estados Unidos, em uma escola em Columbine, no estado do Colorado, no ano de 1999. Naquela época, os adolescentes Eric Harris e Dylan Klebold, mostrados a partir das câmeras do circuito interno do colégio, invadiram o lugar, vestidos de preto, imitando os personagens do filme Matrix (muito famoso na época), e fortemente armados com armas automáticas, produziram um massacre de treze mortos e vinte e quatro feridos. O massacre gerou o filme Tiros em Columbine, do cineasta e ativista de esquerda, Michael Moore, que ganhou o Oscar no ano seguinte de melhor documentário. A tragédia em Columbine e o filme de Moore serviram para acender o debate sobre o uso de armas em larga escala por uma sociedade, e a ascensão de uma cultura armamentista diante de uma juventude crescentemente desajustada. Apesar dos apelos, todas as iniciativas legislativas e governamentais para reduzir o número de armas no Estados Unidos foram extremamente tímidas ou inexistentes. No Brasil, em 2005 foi aprovado um referendo, em votação popular em todo o país, optando-se pelo "não", em que se vetava um projeto de lei que versasse sobre a proibição completa e irrestrita da venda de armas a particulares no país. Naquele ano a mídia local ficou dividida, e alguns veículos de comunicação, como a Rede Globo de um lado, e a Revista Veja de outro, pregavam, cada qual a seu modo, a defesa aberta e irrestrita do uso de armas ou de sua proibição, diante do alarmismo e da cultura da violência e do medo que se desenvolveu na sociedade brasileira, principalmente nos grandes centros urbanos.

Nos olhos inocentes de uma criança: um horror indescritível
diante de mais uma absurda matança nos EUA.
Mas o que há por detrás de tragédias que, anualmente nos assombram, como o massacre em Newtown? Em primeiro lugar, podemos associar dois fatores distintos, que se diferenciam mas se comunicam: o fator individual e o fator social. Numa perspectiva eminentemente sociológica, podemos dizer que o caso de Adam Lanza é tipicamente encontrado em teorias como a da anomia, iniciada no século XIX pelo pensador francês Emile Durkheim e continuada no século XX por pesquisadores como o norte-americano Robert Merton. Por essa teoria, por não conseguirem adequar-se a determinados padrões ou expectativas sociais, determinados indivíduos tendem a ter condutas errantes, até mesmo violentas, podendo vir a praticar delitos, ou mesmo massacres, por seu completo desajustamento social. Isso ocorreria em sociedades capitalistas, bem industrializadas e urbanizadas, onde os imperativos da livre concorrência, do lucro e do sucesso a qualquer preço, criam uma camada de losers, indivíduos deslocados da luta social por riqueza, que, fragilizados diante de uma sociedade que prioriza o darwinismo social pela supremacia do mais forte, permanecem alijados economicamente e socialmente da cadeia produtiva, por serem considerados "não aptos". Diante disso, o acúmulo da frustração individual e o consequente ódio direcionado ao outro, poderiam levar o indivíduo a praticar crimes, dentre eles o assassinato.

Já em relação ao ambiente social, pode também vigorar uma abordagem crítica quanto ao excessivo caráter armamentista da sociedade norte-americana, derivado de sua ideologia burguesa e do pensamento liberal-individualista. O liberalismo levado radicalmente até suas profundezas é fundado no adágio popular "minha casa, meu castelo", que em sua tradução quer dizer que é lícito e legítimo defender sua liberdade e sua propriedade, valendo-se da autodefesa, inclusive com o emprego de armas, como uma forma de garantir a liberdade individual. Nesse sentido, já que a proteção de cada um só é atribuída em caráter secundário ao Estado, cabe ao indivíduo, primeiramente, cuidar de sua segurança, armando-se para que outros não venham atacar o seu direito à liberdade. É um pouco da perspectiva hobbesiana do "homem lobo do próprio homem", em que num primitivo estado de natureza, caberia a qualquer um defender o que é seu, armando-se para isso.

Nancy, mãe de Adam: morta brutalmente
pelo próprio filho no começo da chacina.
Ocorre que, na lógica capitalista, alguém sempre tem que lucrar financeiramente com algo, acumulando capital. É o caso da poderosa indústria das armas, que diante de uma sociedade que prioriza o uso da arma de fogo, como um adereço pessoal tão ou mais significativo de sua identidade quanto portar uma carteira, é muito fácil vender a ideia de que, para se ter uma maior segurança pessoal, convém sempre comprar uma arma de fogo. É por isso que em determinados lugares nos Estados Unidos, como supermercados e até em bancos, é possível ver que a compra de armas faz parte do cotidiano de um povo que se viu, desde sua independência e ascensão econômica como a nação mais poderosa do mundo, ameaçado por inimigos externos ou internos. A mãe de Adam Lanza, Nancy, era entusiasta das armas de fogo e possuía uma coleção dentro de casa, que não parava de crescer, por acreditar de forma paranoica que algum dia os Estados Unidos seriam invadidos. Foram algumas dessas armas, da coleção particular da mãe, que Adam pegou para matar sua própria genitora, enquanto ela estava dormindo, e depois seguir para a escola onde passou boa parte da vida estudando, para descontar sua fúria e frustração em dezenas de crianças que sequer o conheciam.

Diante do massacre o presidente Obama chorou, e cobrou uma legislação
mais restritiva do porte de armas nos EUA.
Os jovens da recente sociedade capitalista globalizada estão cada vez mais afastados do convívio humano direto, e priorizam as relações virtuais. Adam Lanza era um desses garotos, que desconfiado dos outros e acentuadamente antissocial, preferia a companhia dos computadores e das comunidades virtuais, como uma forma de expressar suas fraquezas e delírios. Na década de 50 do século passado, criminólogos como Cohen estabeleceram a teoria da subcultura delinquente, para explicar o comportamento criminal de dezenas de jovens que se associavam em gangues e pequenos grupos de delinquentes e arruaceiros, dentro do desemprego e do descrédito da juventude do pós-guerra. Ocorre que, diferente dos delinquentes juvenis subsocializados da obra de Cohen; hoje, a delinquência se exprime de forma mais sutil e imprevisível, através de jovens brancos, de famílias de classe média baixa, em sociedades industrializadas e pequenas áreas urbanizadas, que invadem colégios em pleno dia, fortemente armados, matando todos a seu redor, como também a si próprios.É um comportamento completamente distinto de quem age em grupo, tendo em vista que, com exceção do caso de Harris e Klebold, em Columbine, a maior parte dos atiradores de colégios prefere agir sozinho, como criminosos solitários que por não ter ou não se importar com alguém, exercem uma espécie de nihilismo deturpado, dizimando de uma hora pra outra quem eles considerem que simboliza toda sua frustração. É arrepiante pensar que estamos convivendo de perto com pessoas assim, tão angustiadas e dilaceradas psiquicamente.

Enquanto isso, crescem os protestos nos EUA contra a
venda indiscriminada de armas.
 Será que o lobby armamentista aguenta?
Lembro-me do impressionante video-clipe da banda de rock norte-americana, Pearl Jam, que se tornou um clássico dos anos noventa: Jeremy. Na bela e triste canção, cantada até hoje nos shows pelos fãs, vê-se no clipe um garoto solitário e mudo ( interpretado pelo ator Joseph Gordon-Levitt, ainda criança), que, vítima de bullying, caçoado pelos colegas de classe por ser considerado esquisito, isola-se na floresta, entre seus quadros e alucinações, até chegar o refrão, onde a letra diz que o personagem da canção alcança sua catarse, quando finalmente consegue se expressar, numa cena forte, em que o garoto Jeremy imagina seus colegas de turma, petrificados na sala de aula, cada um com uma marca de bala no peito, enquanto o cantor Eddie Vedder, entoa em voz alta o refrão: "Jeremy spoken, yesterday!". Talvez Adam Lanza tenha escolhido a forma mais triste de falar, através das balas que perfuraram as crianças de Newtown. Agora, o que permanece é o seu mórbido silêncio!


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

TERRORISMO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO:O que é o MOVADEF?


O MOVADEF em ação na capital peruana.













Na minha recente viagem ao Peru, tomei um pouco de conhecimento da realidade andina, lendo jornais e vendo o noticiário local. Pude perceber que, se no Brasil, o tema político da vez é o julgamento do "Mensalão", no Peru o que mais se discute são as ações do MOVADEF. Pra quem não sabe, MOVADEF (Movimiento pela Anistia y Derechos Fundamentales) é uma sigla que vem estremecendo a classe política no Peru recentemente, além de se tornar uma ameaça à credibilidade do governo do atual presidente de esquerda no país, Ollanta Humala. É um movimento surgido nas universidades peruanas (em especial na tradicional Universidade de San Marcos, situada na capital, Lima, conhecida por  suas manifestações estudantis), e que conta com o apoio de dissidentes políticos residentes no exterior e ex-integrantes do movimento terrorista de extrema-esquerda, Sendero Luminoso, famoso por seus atentados, assassinatos e ações criminosas na década de oitenta do século passado.

Panfleto do Sendero na década de 80.
Mas o que era o Sendero Luminoso e por que este grupo gera tanto arrepio até hoje na memória dos peruanos? Imagine uma época, um mundo diferente, dividido numa guerra velada entre duas potências mundiais ideologicamente distintas: de um lado, o bloco norte-americano, liderado pelos EUA, e de outro o bloco soviético, capitaneado pela extinta União Soviética. Nesse mundo dividido, com guerras e revoluções como  na Coréia, em Cuba, no Vietnã e ditaduras a pulular por toda a América Latina, (principalmente na América do Sul), surge, no final dos anos setenta, um professor universitário baixinho e carismático, famoso por ministrar aulas lotadas de Filosofia, com seus óculos de aros grossos, fala articulada e fã do líder comunista chinês, Mao-Tsé Tung, pregando uma revolução socialista no estilo maoísta, convocando nas universidades estudantes e na área rural camponeses, para que se iniciasse uma luta armada contra o governo. Esse homem seria Abimael Guzmán, fundador do Sendero Luminoso, mais conhecido na clandestinidade pelo seu codinome: camarada Gonzalo. Através de Guzmán, começa-se a pregar um discurso ideológico radicalizado, como um arremedo da doutrina maoísta aplicado à realidade andina, chamado de "pensamento Gonzalo".

O Sendero Luminoso,numa das épocas mais violentas da história peruana.
Seguiu-se durante toda a década de 80 (e eu me recordo disso), uma série de atentados, explosões, assassinatos de políticos e camponeses, e destruições, tudo levado a cabo pelos militantes do Sendero, em sua maioria estudantes universitários e ex-sindicalistas, seguidores de Guzmán. Os caras chegavam a matar cachorros de rua e empalá-los nos postes da cidade,  com placas aludindo ao nome de políticos da situação que estariam com os dias contados. O Sendero Luminoso foi um retrato violento do seu tempo, de radicalismos e do extremismo das ideologias. As ações sanguinárias dos militantes senderistas poderiam fazer tremer de medo um militante italiano das Brigadas Vermelhas (movimento terrorista de extrema-esquerda que chegou a matar o primeiro-ministro da Itália, Aldo Moro). O problema da contradição do  discurso senderista e a real faceta de seu líder, que de grande ideólogo marxista-leninista, com a apresentação de seus crimes, revelou-se  um verdadeiro psicopata, foi no trato com o principal segmento popular que o Sendero pretendia insuflar. Ao invés de mobilizar camponeses, ganhando sua simpatia com o apoio as suas reivindicações populares, os militantes do Sendero Luminoso quiseram conquistar o apoio dos trabalhadores do campo à força, muitas vezes com coletivização forçada de terras sob sua vigilância, e justiciamentos, com assassinato de camponeses que se recusassem a aceitar as ordens dos militantes senderistas. Segundo a Comissão da Verdade peruana, na época que existiu, o Sendero Luminoso foi responsável por ao menos de 75% das mortes violentas de camponeses humildes, vivendo na zona rural.

A prisão de Guzmán foi o fato político da década no Peru.
Tal realidade, narrada acima, durou mais de uma década, até que no mandato do presidente peruano Alberto Fujimori, após um sagaz trabalho de inteligência, foi finalmente capturado e preso o líder do movimento, Abimael Guzmán. Mostrado ao mundo preso dentro de uma jaula, com a tradicional roupa listrada dos presidiários, um enraivecido Guzmán protestava das condições vergonhosas em que era apresentado ao mundo, mostrado como um animal, e isso suscitou debates na mídia do mundo inteiro acerca do respeito aos direitos humanos e a preservação do princípio da dignidade humana, uma vez que o líder senderista foi apresentado como um bicho, irritado e indignado, bradando contra seus captores, face as condições desrespeitosas em que se encontrava.  Enquanto isso, naquele momento, graças à exposição pública de Guzmán como um troféu, Fujimori galvanizava apoio político para seu projeto duradouro de poder, perpetuando-se no governo através de uma ditadura branca, pelo controle e futura dissolução do Congresso, e por um governo autoritário, com forte apoio militar, montado por um Estado Policial, interessado não apenas em prender terroristas, mas também em eliminar qualquer foco oposicionista que contrariasse o governante peruano, descendente de japoneses.

O ex-presidente Fujimori, em sua prisão hospitalar.
Mas, nos últimos anos, com uma economia em frangalhos, uma crise social demasiada e uma epidemia de cólera que dizimou o país, mostrando a fragilidade da saúde pública no Peru, Fujimori acabou sendo deposto e fugindo do país, após ser acusado de atos de corrupção. Ele chegou a viver durante um tempo no Japão, donde pediu a cidadania japonesa, posteriormente negada, até ser extraditado novamente para seu país de origem e julgado por seus crimes. Assim como Guzmán, Fujimori hoje vive trancado dentro de uma cela, enfermo, mas com melhores e privilegiadas condições carcerárias do que os terroristas que ele aprisionou, carregando o ônus político de ter sido, ao mesmo tempo, o governante que derrotou o Sendero Luminoso, mas também aquele que acabou atrás das grades junto com seus inimigos políticos; num Peru atrasado e repleto de desigualdades, mas esperançoso de retomar o rumo do desenvolvimento, assim como os demais países sul-americanos, como Venezuela e Brasil.

A polícia peruana é chamada a se mobilizar, a cada ato do MOVADEF.
O que parecia ser apenas um triste pedaço da recente história peruana, acabou por se tornar um problema de Estado, com o surgimento do Movimento Anistia e Direitos Fundamentais. A tese principal de seus integrantes é de que Abimael Guzmán já permaneceu tempo demais na prisão, os tempos são outros, o Peru já vive dias de uma democracia plena, e durante o período autoritário governado por Alberto Fujimori,viveu-se um regime de exceção, um simulacro de democracia, onde o ex-presidente manipulava as eleições e, nesse panorama, o líder do Sendero foi capturado na condição de preso político. É como preso político que os militantes protosenderistas buscam a libertação de seu líder, assim como os familiares de Fujimori, seus dois filhos, Kenji e Keyko (esta última, candidata derrotada à presidente, nas últimas eleições), ambos deputados no congresso peruano, buscam a liberdade de seu pai, alegando, nesse caso, razões hunanitárias, face um câncer desenvolvido pelo idoso ex-presidente, durante sua permanência na prisão. No caso da MOVADEF, a imprensa do país tem sido muito mais intransigente e alarmista, surgindo a cada dia no noticiário um fato novo associado ao movimento, num sensacionalismo que estimula o retorno de uma cultura do medo no solo peruano, a fim de agitar a população sobre um clima de pré-instabilidade institucional. O lema é: “não esqueçamos do que aconteceu conosco. Não deixemos o passado voltar!”.

A polêmica sobre o MOVADEF já atingiu em cheio o governo do presidente Humalla, principalmente através dos meios de comunicação (em especial o diário El Comercio, principal jornal do Peru) que fazem oposição ostensiva ao governante de esquerda, por sua suposta leniência e até mesmo colaboração com os manifestantes protosenderistas. A última notícia que ganhou as manchetes na semana passada, e chamou minha atenção quando eu estava lá, foi a destituição do então embaixador do Peru na Argentina, Nicolás Lynch, pelo fato de ter sido divulgada gravação em que o representante diplomático recebia na embaixada, em Buenos Aires, um grupo de militantes do MOVADEF, para uma breve conversa de cinco minutos. Na ocasião, o diplomata respondeu à imprensa, dizendo que a embaixada do Peru era um lugar aberto a todos os peruanos. Isso foi suficiente para que a imprensa local bombardeasse a conduta do embaixador, exigindo sua renúncia, fato que foi por ele praticado após dois dias de intensa pressão no governo. O primeiro-ministro peruano, Juan Jiménez, foi obrigado a também ir aos meios de comunicação, para criticar publicamente a conduta de Lynch, apesar de entender que a lógica do governo  ainda é a de manter diálogo com seus movimentos sociais e políticos. Quanto ao presidente, restou uma  nota lacônica na imprensa, e o compromisso do governo de defender a democracia, ao mesmo tempo que mantém a promessa de combater o terrorismo. 

No Brasil, parecemos estar distantes da realidade peruana, tendo em vista que aqui, os grupos considerados subversivos de esquerda foram eliminados muito antes, com a prisão ou aniquilação física de todos os seus integrantes na década de setenta, além do movimento no Brasil ter se iniciado num contexto de apoio popular extremamente reduzido a grupos de esquerda, apesar do apoio maciço de um grande contingente de estudantes universitários na gênese de pequenos grupos armados como a ALN, a VPR, o MR-8 e a MOLIPO. Além disso, no Brasil não tivemos um ex-presidente atrás das grades, como aconteceu no Peru com Fujimori, ao mesmo tempo vítima e  algoz do Sendero Luminoso, mas com uma gestão tão controvertida que, apesar de seus méritos por ter erradicado o movimento e prendido Guzman, acabam por ser apagados devidos às denúncias de violação dos direitos humanos em seu governo, e pelos escandalosos atos de corrupção que o levaram a prisão.

A imprensa peruana não perdoa, por meio de suas charges.
Há setores da imprensa peruana que defendem abertamente políticas de lei e ordem, como a prisão de todos os manifestantes e integrantes do MOVADEF, como também a expulsão de estudantes e professores das universidades que compartilharem do mesmo pensamento, sob pena de fechamento dessas instituições de ensino. De qualquer forma, é uma saída truculenta, assim como truculentas são as soluções pregadas pela Nova Direita latino-americana, difundida através dos meios de comunicação, sempre dirigida furiosamente a movimentos sociais com ideologia de esquerda ou comprometidos com alguma bandeira ideológica de cunho marxista. No Brasil, por exemplo, é comum em certos periódicos como as revistas Veja ou Época, ver artigos inflamados de articulistas, defendendo a criminalização de movimentos como os sem-terra ou os sem-teto, ou acusando de terroristas movimentos de pertencimento étnico que defendem a devolução de terras públicas à famílias indígenas ou quilombolas. No Peru, o problema não é ser contrário ao MOVADEF, mas sim como lidar na institucionalidade com movimentos que reacendem velhas polêmicas.


O governo peruano tem resistência em combater o MOVADEF, até porque não há a necessidade de colocar na ilegalidade um movimento que sequer ganhou status legal. O procurador-geral do governo do Peru salientou que o MOVADEF é um grupo informal, formado por professores e estudantes de universidade que consideram Abimael Guzman um “grande filósofo”, e que consideram que sua condição carcerária atual é desnecessária ou extrema. Independentemente do que pensam os militantes do movimento e se é certo  ou errado o que eles defendem, a verdade é que o MOVADEF, ao menos no momento, é uma espécie de senderismo desarmado, onde seus integrantes chocam parte da sociedade peruana, muito mais por suas ideias do que por suas ações. Será que isso é tão perigoso para a democracia e para o Estado de Direito?


Em seu editorial, publicado em 10 de novembro de 2012, o jornal El Comercio afirmou que MOVADEF e democracia são termos antinômicos. Tais grupos deveriam ser combatidos, assim como os movimentos de neonazistas ou movimentos totalitários de inspiração fascista, por serem antidemocráticos. Não poderiam ser admitidos na democracia, onde prevalece a regra de obtenção de apoio da maioria através do voto, onde grupos que defendem a subjugação do outro por meio do tolhimento de direitos, limitando ou eliminando, inclusive, a liberdade de uns em detrimento de outros, podem chegar ao poder somente porque foram eleitos pelo voto. Desta forma, não poderia ser legítimo, eleger “democraticamente” representantes de um movimento, partido ou governante que, após eleitos, restaurassem a escravidão, mandassem aqueles que pensam ou são diferentes para um campo de concentração ou então eliminassem a liberdade de expressão, cumprindo com as promessas contidas em seu programa partidário. Tal argumento busca derrubar a tese do governo peruano de dialogar com o MOVADEF, desde que esse grupo aceite participar do jogo democrático e renuncie a sua ideologia que prega, dentre outras coisas, a luta armada. É um argumento, aparentemente, difícil de contestar.

Guzmán no tribunal,em última de suas aparições públicas.
Entretanto, se eu penso num regime constitucional essencialmente democrático, que eu também devo conceber, no âmbito da liberdade de expressão como direito fundamental, a possibilidade de grupos que apresentam um discurso antidemocrático e até mesmo violento, de terem espaço no debate,  no Brasil a experiência dos últimos vinte anos de democracia demonstrou ser possível a manutenção na legalidade de partidos de linha trotskista, como o PSTU, que defendem uma ruptura completa da ordem institucional burguesa, através de processos revolucionários violentos, como a luta armada, inclusive com a eleição de representantes seus nas últimas eleições municipais. Como impedir que esses grupos ou legendas existam sem comprometer a democracia que eu tanto defendo? Será que não voltaríamos a um Estado-policial, sob o pretexto de garantir a segurança dos cidadãos diante da ameaça de retorno dos prototerroristas?

Entendo que no Peru, assim como no Brasil, e em qualquer outra nação latino-americana que já passou por dolorosos períodos de exceção autoritária, a alternativa ao regime democrático atual não é outra, a não ser o caminho do diálogo. Somente com diálogo será possível estabelecer um ponto em que, tanto liberais, quanto conservadores, moderados e militantes de extrema-esquerda possam coabitar o mesmo espaço político, sem que isso comprometa a manutenção de direitos fundamentais.Acredito que, por mais equivocados que estejam (e bota equivocados nisso), os militantes universitários do MOVADEF merecem, sim, ser ouvidos, mesmo que seja o tempo suficiente para que seus interlocutores digam o quanto eles estão errados. Trata-se de um processo democrático de convencimento, defendido por filósofos consagrados na modernidade, como Habermas, que sentiu na pele, o quanto movimentos políticos antidemocráticos como os nazistas, fizeram desaparecer a democracia na Alemanha, simplesmente porque, ao chegar ao poder, não apresentaram o mesmo comprometimento com o texto constitucional, que seus opositores no debate político. Mas mesmo assim a Nova Direita e saudosos da nazismo existem na Alemanha de hoje,sem que isso comprometa a firmeza de suas instituições democráticas, erguidas dos destroços de uma nação reconstruída no pós-guerra. Se não é bom, que ao menos o MOVADEF possa ser escutado, para entendermos o quanto eles são ruins. Acredito que, nem por isso, facínoras como Abimael Guzmán ou Alberto Fujimori sairão tão cedo da prisão. É pagar pra ver!



sábado, 3 de novembro de 2012

VIOLÊNCIA EM SÃO PAULO: Há algo de podre no Reino da Dinamarca (ou as diferenças entre o crime organizado no Rio e em São Paulo)

Durante as últimas décadas era comum o Rio de Janeiro ser apresentado como a "pátria do crime" pelas imagens sensacionalistas da Rede Globo de Televisão, numa "cidade maravilhosa" rodeada de "comandos" e "falanges", como numa guerrilha urbana em que os morros cariocas encontravam-se repletos de criminosos fortemente armados. Já em São Paulo, na "capital do progresso", a criminalidade encontrava-se então restrita à longínqua periferia, dos conjuntos residenciais e subúrbios das Zonas Leste e Norte de São Paulo, bem distantes do burburinho da Avenida Paulista, e de seu frêmito de carros velozes e de vidros fechados, de seus executivos endinheirados.
 
A polícia paulista agora é alvo dos criminosos. No mínimo,
há cada 32 horas, um policial  é assassinado no Brasil.
Pois parece que a situação agora é diferente, tendo em vista os recentes (e aterrorizantes) casos de assassinatos de policiais e aumento desordenado da taxa de homícidios nas últimas semanas em São Paulo, como que para afrontar a política de bons resultados obtida anteriormente pela gestão do governador tucano Geraldo Alckmin, com redução dos índices de homicídios no começo de sua gestão. Pela primeira  vez, um secretário de segurança entra em confronto direto com um ministro da justiça, num bate-boca desenfreado através da mídia entre o secretário paulista, Antonio Ferreira Pinto e o ministro José Eduardo Cardozo. Entre acusações mútuas de que, por um lado o estado de São Paulo não recebeu ajuda do governo federal para conter a violência no estado, e de outro, o argumento da União de que o governo paulista recusou esse auxílio, tão somente por arrogância, o que se deixou pairar no ar foi uma impressão de completo descontrole do governo de Alckmin, em conter uma violência que vem recheando as páginas policiais dos jornais, e que serve de fator de preocupação não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro, tendo em vista a quantidade de investidores estrangeiros que vem dia a dia ao país (sobretudo banqueiros e representantes de empresas internacionais que vem a São Paulo), e que, com certeza, permanecem amedrontados diante de cenas de tanta violência e medo, com assassinatos de policiais à luz do dia. Afinal, se o Estado não consegue proteger sequer seus agentes de segurança, o que será do cidadão comum?
 
Entretanto, é preciso salientar algumas diferenças entre a criminalidade no Rio e em São Paulo que talvez ajudem a esclarecer, para alguns curiosos sobre o tema, de um breve ponto de vista criminológico, o que realmente está em jogo para a eficácia dos serviços de segurança pública em ambas as metrópoles. Sabe-se que no Rio de Janeiro a criminalidade desenvolveu mais nos morros, face à acidentada geografia da capital fluminense, com um relevo propício à proliferação de bocas de fumo e sedes de organizações criminosas de grupos armados, montadas como bunkers, e de difícil acesso por grandes viaturas ou veículos blindados, propiciando um clima de guerrilha que muito lembrou as escaramuças entre a polícia e traficantes em outras metrópoles latino-americanas como Bogotá ou Cidade do México, ou um cenário bélico típico de conflitos como a Guerra da Bósnia. Para o Rio de Janeiro, a alternativa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) pareceu ser uma das mais acertadas para a ocupação dessas áreas conflituosas, o que trouxe uma certa credibilidade (e votos) ao governo carioca; algo que agora sente falta o governo paulista, do governador Alckmin.
 
A FACE DO MEDO: Marcola: um
dos fundadores e líderes do PCC.
Jà em São Paulo, se no Rio organizações como o Comando Vermelho já eram velhas conhecidas da crônica policial, na década de noventa do século passado surgiu em São Paulo o Primeiro Comando da Capital (ou PCC), organização criminosa montada nos presídios, e liderada por bandidos como Marcos Willians Herbas Camacho, o "Marcola", atualmente preso no Presídio de Segurança Máxima de Presidente Venceslau. Diferentemente de seus colegas de crime no Rio, atuando de fora das instituições prisionais, os criminosos do PCC vieram direto dos presídios, e de lá se organizaram, mostrando todas as defiências e fragilidade do sistema penitenciário paulista. Se o Rio tinha os seus furos como nas rebeliões do Presídio de Bangu I, os presídios paulistas eram verdadeiros "queijos suiços", montados sobre uma rede de corrupção e impunidade.
 
Por falar em corrupção, o que vem sofrendo tristemente os profissionais da segurança pública (principalmente a PM), são as sequelas de uma das polícias mais organizadas, mas também mais mal remuneradas, violentas e corruptas, como a Polícia de São Paulo.As primeiras grandes ações do PCC que paralisaram a capital paulista nos últimos dez anos, deu-se em represália à ação extorsiva de grupos de policiais corruptos lotados em ambas as organizações policiais estaduais (Polícia Civil e Militar), que em muito contribuíram para o cenário de violência e terror, com ônibus queimados, delegacias metralhadas e policiais baleados, num clima de guerra ou de briga de gangues, que em muito comprometeu a eficácia das ações policiais em solo paulista.
 
O secretário de segurança de São Paulo quis comprar
briga com o governo federal por conta da violência.
Acabou tendo que engolir a ajuda governamental e
receber a pecha de arrogante.
(retirado de noticias.r7.com)
Quanto à eficácia da ação policial na resolução do problema, as opiniões se dividem entre os especialistas, cada qual recomendando ações mais ostensivas da polícia (os defensores de um policiamento mais baseada na linha da lei e da ordem, com um forte auxílio do Exército e da PM), enquanto que outros defendem uma ação maior dos serviços de inteligência policial, e não apenas o emprego armado de efetivos (aqui residem aqueles que defendem uma intervenção policial nos moldes europeus, onde prevalecem as organizações policiais de natureza civil, como a Polícia Civil e a Polícia Federal). De qualquer forma, após muitas controvérsias, finalmente o governo paulista aceitou o auxílio do governo federal, mediante  uma estrutura montada em parceria, no sentido de coibir as ações dos criminosos desde sua origem, nos principais pontos da cidade de onde podem ter partido as ordens para o homicídio de diversos policiais ou de possíveis colaboradores da polícia, numa ação criminosa plenamente intimidatória, típica de grupos altamente organizados.
 
O ministro da justiça, José Eduardo Cardozo. Sem soluções
mágicas para a crise da segurança em São Paulo.
(retirado de oglobo.globo.com)
Dentro dessa Caixa de Pandora que se tornou a segurança pública no Brasil, donde podem partir inúmeras soluções, de boas a ruins, o que se espera no momento é que o noticiário desaqueça de informações tensas, enquanto que as organizações policiais fazem o seu trabalho. Na verdade retomo aqui a velha crítica da reforma estrutural, como forma de solucionar os candentes problemas que assolam a segurança pública, mormente na coibição de atos de corrupção e valorização profissional, com o desmanhe do conluio entre redes criminosas e "bandas podres" de determinadas corporações policiais, além de uma opção racional pela desmilitarização e maior qualificação dos policiais, a fim de que conflitos entre bandidos não virem um mero cenário de guerra, e  evitar que determinados integrantes das corporações policiais se comportassem como se estivessem numa briga de gangues. Todas essas mudanças estruturais partem de investimentos, de novas prioridades do governante e da necessidade de questionamentos acerca dos paradigmas culturais de violência e truculência policial que hoje permeiam o imaginário dos integrantes das corporações policiais. Que venham os bandidos, mas também que venham soluções racionais para o problema da criminalidade, que tanto assola a população e prolifera condutas criminosas como as que aconteceram recentemente na metrópole paulista.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

JULGAMENTO: "Mensalão" e algumas discussões jurídicas no julgamento mais importante do Supremo em 2012.

Em 1940, o criminólogo norte-americano, Edwin Sutherland, publicou pela primeira vez a expressão "White Collar Crime"  (crime de "colarinho branco") para caracterizar a criminalidade desenvolvida pelos mais ricos e influentes, geralmente praticada por pessoas respeitáveis ou de forte prestígio social, no exercício de uma determinada função. No desenvolvimento de sua teoria, Sutherland procurou estabelecer as bases e as razões pelas quais indivíduos detentores do poder político ou econômico ainda sentiam a necessidade de delinquir e, o que é pior, ao praticar esses delitos, agiam com tamanha naturalidade que parecia que suas condutas seriam inofensivas ou não fariam mal a ninguém. Dentre os vários crimes associados a essa teoria, podemos destacar os atos de corrupção praticados por detentores de cargos nomeados ou eletivos. Nesse sentido, o recente julgamento do episódio conhecido na crônica política como "Mensalão" não destoa muito dos caracteres apontados na teoria de Sutherland.
 
Sabe-se que, em sua origem, quando o ex-deputado Roberto Jefferson apresentou o caso à opinião pública, o suposto "Mensalão" teria ocorrido após  a histórica vitória do ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002. Novo governo, nova base aliada, novas esperanças, assumindo o poder sob a desconfiança dos mercados (apesar da histórica "Carta aos Brasileiros"), o governo do representante do Partido dos Trabalhadores sabia dos inevitáveis obstáculos políticos que o esperavam, e da necessidade de se cooptar apoio externo, principalmente da bancada parlamentar. Para isso, segundo a denúncia formulada pelo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, integrantes do governo daquela época (entre eles, o ex-todo poderoso Chefe da Casa Civil, e ex-deputado José Dirceu) compraram apoio político, aliciando parlamentares mediante a compra de votos em votações fundamentais, nos primeiros meses do novo mandato presidencial, praticando, para isso, diversos atos criminosos. Aquilo que na opinião dos defensores dos réus seria apenas a formação de um "Caixa 2" em campanha eleitoral (o que por si só já é errado), transformou-se numa rede de intrigas e corrupções, que culminou não apenas com a queda e exoneração de cargos públicos de diveros políticos, como também com a responsabilização criminal de quase todos eles, numa avalanche de denúncias e punições que culminou com o julgamento do volumoso processo criminal das semanas anteriores, no Supremo Tribunal Federal.
 
O processo do "Mensalão" (na verdade, a Ação Penal nº 470) irá entrar na história não como o mais complexo dos processos criminais já julgados por uma Suprema Corte no Brasil, envolvendo uma quantidade tão grande de personalidades da vida política nacional,  mas sim pela polêmica de seus fundamentos jurídicos, pelas controvérsias sucessivas e inflamadas entre o infatigável ministro relator (Joaquim Barbosa) e o revisor (Ricardo Lewandowski); o fracasso retumbante de medalhões da advocacia brasileira na defesa dos acusados, como o eminente jurista Márcio Tomaz Bastos, que não conseguiram inocentar a maioria de seus clientes, réus do processo; a pressão midiática constante e onipresente durante o processo, que tornou seu julgamento o mais televisionado e o mais comentado da história jurídica recente, em nossos verdes trópicos; além da instrumentalização política e da demonstração cabal de uma cristalizada rivalidade partidária entre as duas principais agremiações políticas do Brasil: o PT e o PSDB.
 
Dentre as teses jurídicas controversas, uma das que foi utilizadas para facilitar a condenação dos réus pelo tribunal foi a da dispensabilidade de ato de ofício nos crimes praticados contra a administração pública. Mudando entendimento anterior da própria corte, em relação a processo julgado nos anos noventa do século passado, quando foi inocentado o ex-presidente da República, Fernando Collor de Melo, os ministros do STF em sua maioria entenderam que, agora, não há a necessidade de que seja praticado um ato de ofício, decorrente da condição do servidor ou agente público de detentor de cargo ou mandato eletivo, para que se configure o crime de corrupção passiva, definido no art. 317 do Código Penal. Agora, segundo o voto do ministro Luiz Fux, basta que o detentor do cargo que solicitou ou recebeu para si ou para outrem, vantagem indevida ou aceitar promessa de vantagem, tenha autoridade para solicitar ou receber tal vantagem ou promessa; pois o ato de ofício é produzido pelo servidor no exercício da função, mesmo quando ele não for provocado. Os ministros entenderam, então, que, por exemplo, pela sua qualidade de chefe  da Casa Civil, o ex-ministro José Dirceu não só poderia, como teria a autoridade para saber que estava havendo compra de votos no Parlamento pelo Executivo, fazendo parte de uma trama urdida por um publicitário do setor privado (Marcos Valério) e por um ex-tesoureiro de partido (Delúbio Soares), no sentido de arrecadar dinheiro a fundo falso perante bancos, beneficiados em contratos estatais, a fim de desviar dinheiro público oriundo desses bancos para não só financiar campanhas eleitorais (como aconteceu não apenas com a campanha do PT para a Presidência, como também do PSDB, anos antes, ao governo do estado de Minas Gerais), como também para pagar parlamentares da base aliada do governo, a fim de votar em projetos de interesse do Poder Executivo.
 
Outra teoria que passou a predominar no julgamento do Supremo foi a do "domínio do fato", já consagrada há mais de cinquenta anos no direito alemão (através dos estudos do jurista Hans Welzel), mas que só veio a ganhar destaque no Brasil na segunda metade dos anos oitenta do século passado, quando então  a velha teoria causalista, de orientação positivista, deixou de ser empregada em sua totalidade, em determinados casos de crimes praticados em concurso de agentes, onde era necessário identificar a figura do "chefão" ou do mandante. Tal teoria caiu como uma luva no julgamento dos "mensaleiros" condenados pelo STF. Mais uma vez, sobrou a pecha de líder de uma organização criminosa, para o ex-deputado, ex-militante estudantil, ex-ativista político e ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. O que valeu aqui, nos supostos atos criminosos praticados, não foi a participação direta do ex-ministro nas negociatas e atos de corrupção que levaram ao "Mensalão", mas sim sua posição no tabuleiro político, como chefe da articulação que teria domínio sobre todos os acontecimentos que se desenrrolaram durante o tumultado primeiro semestre do mandato do ex--presidente Lula. 
 
De qualquer forma, divide-se a comunidade jurídica entre os que acreditam que o julgamento do "Mensalão" é um marco divisório, na formação de uma jurisprudência sobre casos de corrupção no país, e outra que considera que a tarefa do tribunal se deu muito mais de forma casuística, insuflada por pressões políticas e pelo apelo da opinião pública graças a maciça intervenção dos meios de comunicação na abordagem do caso. Para os velhos estudiosos da criminologia, atos supostamente atribuídos a homens públicos como os "Dois Josés" (José Dirceu e o ex-presidente do PT, José Genoíno), Valdemar Costa Neto, Roberto Jeferson, João Paulo Cunha e uma dezena de políticos e parlamentares de diversas legendas, aliados do governo, atos criminosos que geraram o "Mensalão" são tão corriqueiros quanto é corriqueira a relação de determinados indivíduos com cobiçados cargos de poder, inseridos na Administração Pública ou presentes em instituições privadas. Por fazer a velha política é que os reús do processso julgado com esmero pelo STF agiram como típicos criminosos do colarinho branco, valendo-se de seu prestígio social, ou da importância de seus votos, em votações importantíssimas para o governo, a fim de barganhar vantagem pessoal, lucro financeiro, ou simplesmente para comprovar que determinadas funções públicas só funcionam na base da "grana". É, sem dúvida, uma situação lamentável!
 
A única unanimidade que se coloca até o momento diz respeito ao destino do publicitário Marcos Valério, pivô da rede de relações que culminou com o "Mensalão", pessoa física e particular que amealhou vultosas somas em dinheiro, através de empréstimos a bancos e movimentações financeiras, para beneciar a si próprio e os demais réus do processo. Valério atuou como um mercador da política, um homem da iniciativa privada que reduziu a articulação política dentro do seara estatal num negócio, como se dá tristemente na espúria relação que se estabelece, de quando em quando, na economia capitalista, entre o mercado e o Estado. Por conta disso, sua condenação deve ser uma das maiores, e é grande a possibilidade do empresário ir para a cadeia, por conta do somatório de suas penas indicar um regime inicialmente fechado de cumprimento de pena. Pode-se dizer então que foi Valério um dos maiores prejudicados no julgamento do "Mensalão"; mas,  sem dúvida quem perde mais com isso tudo é o cidadão brasileiro, especialmente aquele que ainda acredita na credibilidade de nossas instituições, e que, independentemente da coloração ideológico-partidária, crê que os agentes públicos possam realizar com um mínimo de ética e decência as atribuições políticas dos cargos a que foram eleitos. Ganha em credibilidade o Supremo, especialmente através das manifestações aguerridas e inquebrantáveis do relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, recém-empossado como presidente de nossa Suprema Corte, incensado pela mídia (em especial pela mídia oposicionista ao governo), como um dos heróis do julgamento, graças a suas posições duras e convictas quanto a responsabilidade dos acusados. Que o episódio do "Mensalão" ao menos passe para a história como uma lição política de como novos governos, progressistas, e com forte apelo popular, identificados com o novo, não se valham de velhas formas politiqueiras relacionadas com vetustas e anacrônicas formas de disputa de poder que não podem mais ser aceitas numa democracia. É pagar pra ver o que vem após esse julgamento do Supremo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

NOVO CÓDIGO PENAL: Entre liberais e conservadores, o mais do mesmo na discussão sobre o novo Código Penal.

No Brasil, um Código Penal adequado à realidade do século XXI é argumento mais do que consolidado. Ninguém se opõe ao discurso de que temos a necessidade de atualizar nossa legislação penal, tendo em vista que o Código Penal em vigor é de 1941. Com a redemocratização do país, desde 1984 vivemos um período curioso, em que o atual Código passou a conviver com uma legislação especial que quase tomou o seu lugar no ordenamento jurídico brasileiro. Foram tantas leis, reformas, revogações de antigos dispositivos marcados pelo anacronismo, abolito criminis e novas penas para antigos delitos que hoje, qualquer professor de Direito Penal precisa ressaltar em  sala de aula, nas universidades, a existência dessas leis extravagantes, sob pena de ministrar um contéudo incompleto para aqueles que querem estudar profundamente os dispositivos penais no Brasil. Ocorre que nessa colcha de retalhos normativa, viu-se muitas leis serem publicadas, umas em discrepância com outras, além de uma briga  de torcidas, envolvendo visões mais conservadoras e punitivistas do crime e das leis penais, enquanto que outras, mais liberalizantes, viram no horizonte do garantismo a abertura de novos espaços para a produção de leis mais consentâneas com um Estado Democrático.

O presidente do Senado, José Sarney, recebe da comissão de juristas o anteprojeto do novo Código Penal(retirado de conjur.com.br)
Mas a população sabe muito pouco (e parece que alguns juristas menos ainda) do que está em jogo na sociedade brasileira com o novo Código Penal (encaminhado ao Congresso através da PLS 236/2012). Ao menos, pelo que se vê nos programas de TV e nas reportagens feitas sobre o assunto, sobra desinformação. Nesse sentido, nem os profissionais da área jurídica entrevistados, parecem contribuir para um debate mais esclarecedor sobre o novo Código. Cite-se, por exemplo, o programa Canal Livre, da Band, ontem, quando foi entrevistado um procurador de justiça de São Paulo sobre suas opiniões acerca do anteprojeto do novo Código Penal, tramitando no Senado Federal. Preso ao velho discurso da lei e da ordem, não faltaram petardos contra o novo Código, acusado de "estimular a criminalidade" , ao invés de combatê-la. Foram várias críticas quanto ao impéto "liberalizante" do Código, que ousava mexer com temas ainda tabu na sociedade brasileira, como a descriminalização do uso de drogas. O nobre procurador, do alto de seu conservadorismo, acha que consumo de drogas ainda é caso de polícia, e não obstante a atual Lei Antidrogas ter estabelecido a despenalização do uso e dependência de substâncias entorpecentes, o nobre representante do parquet paulista entendeu que o fato de ser descriminalizado o porte de drogas, numa quantidade com limites mínimos fixadas por lei ou a possibilidade de liberdade provisória para acusados de tráfico de drogas que sejam réus primários, parece um absurdo. Em seu ímpeto punitivista, o representante do MP paulista criticou, inclusive, as alterações das penas no novo Código, com a redução da pena máxima nos casos do crime de roubo simples, previsto no art. 157 do Código Penal, de 4 a 10 anos, em sua redação atual,  para 3 a seis anos de reclusão.

Ora, eu até entendo que os representantes do Ministério Público do estado de São Paulo tenham se unido em torno de um projeto alternativo, enviado ao Congresso Nacional, para substituir a atual versão do anteprojeot que tramita no Parlamento, para a criação do novo Código Penal. Afinal, promotores tem um dever a cumprir perante a sociedade, e parte desses deveres é que os acusados de crimes vão a julgamento, e, sobretudo, provada sua responsabilidade, sejam exemplarmente punidos na forma da lei. É o tipo de entendimento racional previsto em todo o planeta, para todos os órgãos acusatórios do mundo: a vontade de punir. Mas discordo do teor de uma certa arrogância, e até mesmo um certo autoritarismo (quando não ignorância) de alguns promotores, ao defender simplesmente a expansão punitiva, sob o pretexto de combater uma crescente criminalidade, quando não se discute racionalmente os efeitos colaterais de tal expansão. Parece que o nobre procurador paulista, no programa de TV comandado pelo jornalista Fernando Mitre, esqueceu-se ou não levou em conta a explosão carcerária decorrente das revoluções punitivas, e seus deletérios efeitos colaterais em toda uma sociedade que tem que conviver com seus indesejáveis. Não se trata apenas de punir muito e bem, mas sim de se observar o que o Estado terá que fazer com um universo gigantesco de homens e mulheres que são apanhados na tortuosa rota do  crime. Estamos acostumados a "jogar a sujeira para debaixo do tapete", quando se trata de discutir nossa política criminal, no tratamento penal de autores de delitos, e com isso contribuímos para um modelo panóptico e repressivo de sociedade, que sacrifica os direitos mais elementares, como a liberdade, em prol de um suposto direito à segurança.

Por outro lado, critica-se também o ar libertário, ou libertólatra de alguns estudiosos, que defendem o minimalismo penal quase como uma crença de fervor religiosa. O problema do garantismo, e das alternativas de um Direito Penal mínimo, bem ao gosto de pensadores como Ferrajoli, é, segundo a crítica do jurista espanhol Juan Ripollés, seu excesso de racionalismo, na ênfase à proteção da liberdade individual em detrimento da intervenção do Estado, utilizando os mesmos argumentos do liberalismo político baseados no laissez faire, às condutas que são apreciadas dum ponto de vista penal. Nesse sentido, qualquer intervenção punitiva do Estado, que passe por medidas aprisionadoras, parece ser parte de um complô, de um estratagema autoritário, para fazer valer um modelo neofascista de organização do poder. Isso é exagero. Se eu digo que um criminoso merece ter o direito à progressão do regime da pena que lhe foi aplicada, como supedâneo do exercício de direitos de cidadania, face o princípio da individualização das penas, tenho que levar em conta, também, que um criminoso condenado, que inicia o cumprimento de sua pena, não é integralmente cidadão. Para se pressupor um cidadão, é preciso que este esteja no exercício pleno de suas liberdades, e, segundo afirma o jurista alemão Günther Jakobs, por cidadãos entende-se aqueles que seguem as regras do jogo democrático, são sujeitos de direitos, assim como estão sujeitos a suas leis. Não é o caso dos apenados, que, não podem ser confundidos com cidadãos livres, não tem o mesmo direito à liberdade que estes outros, tendo em vista terem sido presos pela prática de algum crime. Nesse sentido, o garantismo libertólatra parece ser até ingênuo, quando defende a progressão de penas e a liberdade condicional para serial killers, que, pelo anteprojeto do novo Código, podem pegar pena máxima de 50, no lugar das penas de 30 anos de prisão.

Pálacio da Justiça (foto Alexandre Pereira/flickr)
De qualquer forma, o anteprojeto do novo Código Penal, da forma como foi escrito, contou com a participação de mais de 15 renomados juristas, estudiosos do fenômeno criminal, bem como com a participação de organizações civis e demais representantes da sociedade, através dos fóruns, coleta de sugestões e debates que antecederam a tramitação do projeto no Congresso. Discordo dos argumentos precipitados de alguns representantes do Ministério Público e da magistratura, alegando que uma discussão tão complexa quanto a da elaboração de leis penais no Brasil, não podia ter se encerrado em exíguos nove meses, anteriores à tramitação do novo Código, que agora gera tanta polêmica nos meios de comunicação, por conta de seu âmbito reformador ou liberalizante. Também entendo que a mídia tem um papel de dupla face, no que tange à discussão sobre as reformas penais. Se, por um lado, jornais e a televisão contribuem para o debate, informando a população da chegada do novo Código; por outro lado essa chegada tende a ter uma recepção fria ou pouco monra, diante da sede midiática de sangue, e da necessidade de obtenção dos culpados. Nesse sentido, o rol dos culpados já é estabelecido pela televisão brasileira, e nesse tribunal do vídeo, o único lugar dos infratores é a prisão, pois não existe presunção da inocência durante os intervalos comerciais. Somente espero que pobreza de ideias não venha prejudicar mais ainda o debate sobre o novo Código Penal, pois o preço da ignorância pode ser muito caro, para os que defendem a necessidade de leis penais eficazes, combinadas com um regime de manutenção das liberdades e dos direitos individuais. Vamos até as cenas do próximo capitulo, então!

quinta-feira, 28 de junho de 2012

DECISÃO JUDICIAL: Supremo decide que traficante tem direito à liberdade provisória

Nas aulas de direito processual penal que leciono para meus alunos, sempre enfatizo com eles a predominância dos principios constitucionais na aplicação das prisões cautelares, dentre eles o princípio da presunção da inocência. Para um leigo, parece muito complicada a discussão ou sem sentido falar de inocência de um réu confesso ou de quem é preso em flagrante; mas no Direito, considerando esse ramo do conhecimento como destacadamente científico, há de se estabelecer diferenças importantes.

Em recente e polêmica decisão judicial, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um habeas corpus acerca de um processo por tráfico de drogas, iniciado em 2009, decidiu declarar inconstitucional o art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei Antidrogas), que proibia a concessão de liberdade provisória, dentre outros benefícios, aos crimes de tráfico ou a ele relacionados.Na decisão, os ministros em sua maioria consideraram que  o princípio constitucional da presunção da inocência é mais forte do que a norma do art. 5º, inciso XLIII,   também presente na Constituição, que diz que o crime de tráfico de drogas é equiparável ao de terrorismo e tortura, sendo inscustíveis de anistia, graça ou indulto. Ora, sabe-se que o Supremo já havia derrubado (também pelo argumento da inconstitucionalidade), o disposto no art. 2º da Lei nº 8.072/90 (Lei  dos Crimes Hediondos), acerca da possibilidade de progressão de regime, nos crimes hediondos, ou crimes de tortura, terrorismo e tráfico de drogas, ensejando o surgimento da Lei 11.464, de 2007, que modificou o §1º do citado artigo, estabelecendo que, ao invés de pena cumprida integralmente em regime fechado (como dizia a redação anterior do dispositivo legal), o cumprimento da pena de um traficante de drogas se daria num regime inicialmente fechado. Se um traficante condenado tem direito à progressão de regime no cumprimento de sua pena, por que alguém acusado de tráfico, ainda não condenado, não poderia ter o direito à liberdade provisória?

O Supremo apenas confirmou um  entendimento da doutrina dominante no Brasil, a de que a liberdade provisória é medida cautelar assegurada a todos, derivada do principio constitucional do devido processo legal, uma vez que se trata de uma medida cautelar, e uma vez estando presentes os requisitos para sua concessão, não há de se falar em manutenção da prisão (ao menos não antes da prisão decorrer da execução de uma pena, na sentença penal condenatória que obrigue alguém a cumprir uma pena privativa de liberdade). A chamada "contracautela" que seria a vedação da liberdade nos crimes classificados como inafiançáveis caiu, definitivamente, por terra, na doutrina nacional. Uma vez que inafiançabilidade não se confunde com vedação da liberdade provisória. É só ler os melhores autores de direito penal e direito processual penal da atualidade, para verificar que eu não estou errado.

Apesar do alarde feito pela mídia, tentando suscitar uma certa revolta popular, como é típico das iniciativas do populismo penal, após um mês da supostamente polêmica decisão de nossa Corte máxima, o assunto parace que "esfriou". Não se vê mais nos meios de comunicação quaisquer comentários críticos acerca de uma decisão que apenas, como eu já disse, confirmou o que já vinha entendendo boa parte de nossa comunidade jurídica: a de impossibilidade de manter na prisão,cautelarmente, quem quer que seja, só por conta da suposta gravidade da conduta criminosa de que é acusado. Traficantes não são anjos, mas também não podem restar demonizados por conta do ímpeto sensacionalista de alguns meios de comunicação, que visam, a título de vender manhcetes, sensibilizar a opinião pública para um desnecessário expansionismo penal.

A decisão do STF, por 7 votos a 3, consegue reverter, desta forma, determinadas injustiças, ou mesmo uma afronta não só ao devido processo legal, mas também ao proporcionalidade, uma vez que cada um somente irá responder pelo que efetivamente fez, na medida de sua culpabilidade, não se admitindo uma punição idêntica para quem matou e roubou, e para que tão somente furtou. No caso da Lei Antidrogas, na fixação da responsabilidade do agente, além das distinções clássicas, aprendidas na teoria penal e adotadas pelo Código, entre dolo direto (teoria da vontade) e dolo eventual (teoria do consentimento), o que deve ser observado é de que muitos dos supostos criminosos, acusados por tráfico, que se encontram encarcerados em cadeias públicas como presos provisórios, são apenas soldados de organizações criminosas, muitos funcionando como simples "mulas" (os meros transportadores da droga), que tiveram a infelicidade de serem detidos pela polícia, e que agora respondem pelo mesmo tipo penal destinado aos grandes traficantes.

(retirado de diariopernambucano.com.br)
Isso me faz recordar uma triste cena, recentemente vista por mim enquanto embarcava para uma viagem no aeroporto, quando presenciei uma jovem de aparência humilde, acompanhada de um adolescente, aos prantos, porque, fingindo-se de grávida, tinha sido abordada pela Polícia Federal, que a pegou com 1kg de  cocaína amarrado em seu ventre. Muitos desses pequenos traficantes que são pegos em ônibus, aviões, em carros, ou andando de bicicleta, são meros marionetes de uma engrenagem criminosa poderosa, que recruta voluntários na população mais pobre, desempregada e desqualificada na periferia dos centros urbanos, em prol dos agrados e das tentações da grana fácil (ou não tão fácil assim), que muitas vezes serve para que essas pessoas possam pagar suas dívidas, ou ajudar a alimentar seus familiares. É só ver as estatísticas, principalmente nos presídios femininos, e ver que na maior parte dos casos de mulheres condenadas, que formam a população carcerária, estas responderam por crimes de tráfico de drogas, funcionando na condição de meras transportadoras de droga fornecida por outros. Será que essas pessoas não teriam direito à liberdade provisória? Na maior parte das situações, esses acusados, nos processos penais, não fornecem qualquer embaraço para a instrução criminal, mantendo seus domicílios sem sair deles, além de muitos se mostrarem genuinamente arrependidos do que fizeram, e já no decorrer do processo tentam obter a regeneração; como também não se evadem, comparecendo a todos os atos processuais. Por que manter essas pessoas presas, então? Só porque estão sendo acusadas de um crime que pode ser considerado hediondo?

Alio-me ao entendimento do STF, e não compactuo com as baboseiras afirmadas nos meios de comunicação, de forma precipitada, por alguns membros da Polícia Judiciária e do Ministério Público, que disseram que com a decisão do Supremo houve um incentivo à impunidade. Em nenhum país do mundo está comprovado que manter alguém na prisão contribui para reduzir os índices de criminalidade. No que tange à questão das drogas, está mais do que comprovado que iniciativas preventivas, de cunho educacional e socializador, são muito mais eficazes do que simplesmente trancafiar uma multidão de gente, que por conta de economias dilaceradas, acabam por ingressar no mercado negro e informal da  comercialização de produtos ilícitos, dentre eles as drogas ilegais. Se queremos uma sociedade mais sadia, temos que defender uma sociedade que não estabeleça sançoes penais como cura para nossas doenças sociais, até porque, como diria o célebre filósofo francês, Michel Foucault, a prisão não tem um mínimo propósito ressocializatório, mas sim disciplinador, tornando-se mais uma vitória das instituições e políticas punitivas, a serviço do controle, do que um sucesso penal, atingindo os fins da pena, estes sim propriamente ressocializatórios. Observemos isso!