"O horror, o horror!". Essa célebre frase empregada por Marlon Brando ao interpretar o personagem do Coronel Kurtz no filme de guerra, Apocalipse Now, poderia muito ser empregada a quem quer que tivesse um mínimo de sensibilidade e estômago fraco, ao ver o vídeo apresentado por detentos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, mostrando em uma rebelião três presos mortos, com as cabeças decepadas. Como se isso não fosse suficiente, na dantesca cena de observar num pátio ensanguentado um cenário de morte e destruição, cheio de corpos esfaqueados e sem cabeça, viu-se fora dos muros da prisão, mas sob a ordem de prisioneiros, outro fato escabroso envolvendo o caos do sistema penal brasileiro. Na semana passada, na capital maranhense, São Luís, um ônibus foi queimado, e dentro dele, ardeu em chamas a menina Ana Clara Souza, de 6 anos de idade. A ordem para atear fogo no ônibus partiu de membros do "Bonde dos 40", uma das facções criminosas que domina os presídios do Maranhão, e dela também partiu o ataque aos presos cujas cabeças ficaram dependuradas sobre seus corpos, na banalização de uma barbárie real que supera, em muito, os filmes de terror.
Historicamente, o Brasil trata de forma desumana os seus presos. Foi somente na reforma penal da década de oitenta do século passado, num clima de abertura política, com o surgimento da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), que o país passou a se comprometer formalmente com normas internacionais sobre direitos do preso, que já vigoravam no mundo há pelo menos três décadas, desde a aprovação das Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, aprovadas no 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado em Genebra, no ano de 1955. Entretanto, mesmo com os avanços legislativos, prevaleceu sempre a visão de que o preso, caso se encontrasse nessa situação, estava assim por que merecia, numa velha e conservadora visão retributiva, anterior mesmo ao positivismo, de considerar o infrator como um pecador, um indivíduo mal, que escolheu o crime por livre arbítrio e, portanto, deveria pagar da pior forma pelo que fez, vivendo o inferno já aqui na terra, largado em uma cela, apodrecendo no sistema prisional.
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Morte e destruição no Maranhão.(jornale.com.br) |
Foi com base nessa concepção, aliada a uma profunda desigualdade social, fruto de uma aguda divisão de classes na organização da sociedade brasileira, que os presídios brasileiros foram criados e desenvolvidos, encarcerando um contingente maciço de indivíduos marginalizados, pertencentes em sua maioria aos setores menos favorecidos e mais explorados ou excluídos economicamente da sociedade. A letra da música já é conhecida, para quem tem o mínimo conhecimento de sociologia ou história do Brasil. Mas, o que ainda choca é que, após 25 anos da promulgação de uma Constituição que ainda pretende ser a mais avançada de todas as Constituições nacionais, num Estado Democrático de Direito com uma presidente que já foi presa política, nós testemunhamos que nada ou pouco mudou na medonha realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros. A realidade do Maranhão, mostrada exaustivamente pelos meios de comunicação na última semana, é apenas um capítulo da epopeia de terror pelo que passam diariamente milhares de encarcerados, centenas de agentes prisionais, uma multidão inteira de familiares de presos, além de juízes, promotores e defensores públicos vinculados à execução penal, que no seu ofício tem que lidar com algumas das mais desumanas violações de normas protetoras do indivíduo e da dignidade humana.
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Em Pedrinhas são 173 mortes desde 2007 (noticias.uol.com.br) |
O Maranhão é emblemático acerca disso porque há décadas o estado é governado por uma oligarquia. A família do senador José Sarney, representada pela filha deste e governadora, Roseana, teve mais do que desvelado pelos meios de comunicação o seu descaso para com o sistema carcerário em sua região. Nas despesas do governo maranhense, nos últimos anos, pôde-se ver o quanto de menos o governo investiu em melhorias no sistema carcerário e o quanto de mais investiu no bem estar do próprio governante, através de valores empregados na compra em licitações de itens considerados supérfluos, tais como (pasmem) lagostas e whisky para o banquete cotidiano do Palácio dos Leões, sede do governo maranhense . Num estado da federação com um dos piores IDHs (índice de desenvolvimento humano) do país, e uma população ribeirinha vivendo em palafitas, agora o Maranhão ostentou mais uma cifra negra de sua economia e governo em frangalhos, demonstrando porque o seu sistema carcerário é um emblema da vergonha nacional. Enquanto o clã Sarney, por meio de seus governantes, esbalda-se com lautas refeições à base de lagostas e camarões, 5.517 indivíduos presos comem um alimento rejeitado até por cães, num lugar cujos presídios só podem abrigar, no máximo, 3.124 pessoas.
Falar de presos não dá voto. Ao lecionar a disciplina de Execuções Penais para estudantes de direito nas faculdades, eu costumo afirmar isso para meus alunos, assim como afirmou o juiz Douglas de Belo Martins, responsável pelo relatório encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça, revelando a deplorável condição dos presídios maranhenses, em especial da caótica situação de Pedrinhas. A partir desse texto, encaminhado ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, no final de dezembro do ano passado, e divulgado à imprensa, podemos presenciar qual é a rotina de horror por que passam todos aqueles vinculados ao sistema prisional do Maranhão. É um relato claro da total ausência do Estado, da ignorância ou falta de atenção e respeito dos governantes com a situação das unidades prisionais, em lugares cuja estrutura dos presídios está tão dilacerada que já se consegue ver celas sem grades, práticas de torturas e assassinatos, além de crimes sexuais.
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A imagem é forte, mas a dor na consciência é pior ainda. |
Num cenário com agentes penitenciários terceirizados a uma empresa privada, sem que o o poder público faça concursos para atrair pessoal, com salários nada convidativos próximos ao salário mínimo e sujeitos a todo tipo de corrupção, não é de se surpreender porque os presídios maranhenses estão numa situação tão calamitosa. Por conta da influência das facções criminosas contidas dentro dos presídios, cujos líderes e integrantes caminham livremente em seu interior sem celas, perambulando impunes por dentro destas unidades prisionais, é possível conceber que em tais locais entra de tudo: telefones celulares, bebidas, drogas, armas, dinheiro e prostituição. Há também casos pavorosos de estupros coletivos, uma vez que a estrutura dos presídios maranhenses é tão desorganizada, que não é regulada a visita íntima, prevista como um direito do preso, conforme o art. 41, inciso X da Lei de Execução Penal. Nesses casos, como ninguém é de ninguém e os presos às vezes tem relações sexuais com suas companheiras sem sequer possuir uma cortina, não é raro que líderes de facções criminosas exijam de seus subordinados que entreguem suas mulheres para servir às sevícias sexuais dos presos mais poderosos, sob pena de serem exterminados, por estrangulamento, golpes de barra de ferro ou por facadas. As regras das principais facções, "Bonde dos Quarenta" e "Primeiro Comando do Maranhão", também preveem que o preso novato, ao entrar no estabelecimento, tenha que obrigatoriamente escolher a qual facção pertence ou servirá, sob pena de ser massacrado e ter sua cabeça exposta como troféu, tal como aconteceu com um dos presos vistos na horrível foto abaixo, um mero ladrão de pneus, que jogado no inferno de Pedrinhas, ao não aceitar fazer parte de um grupo criminoso, acabou sendo morto com requintes de crueldade.
Sobra responsabilidade também para o governo federal, apesar de não ser o gestor direto do sistema prisional desenvolvido nos estados da federação. O governo petista de Dilma Rousseuf assume um ônus político, ao ser o responsável indireto pela desastrosa gestão política do problema prisional no Maranhão, uma vez que a governadora Roseana Sarney é do PMDB, partido do vice-presidente, Michel Temer, e é ela apoiada localmente pelo partido da presidente. Além disso, o governo federal pouco fez nos últimos anos para denunciar, ou ao menos intervir no Maranhão, diante de uma situação que não é nova, e já informada antes, por inúmeras vezes, por órgãos de defesa dos direitos humanos; membros do Conselho Penitenciário, do Conselho Nacional de Justiça, além de comunicados da Vara de Execução Penal.
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Resultado da gestão prisional no Maranhão: 3 cabeças decepadas. |
Por falar em direitos humanos, enquanto a sociedade brasileira considerar que falar de direitos humanos para presidiários é defender, na verdade, mordomia para bandidos, viveremos uma situação de barbárie cada vez pior, cultivando um ovo da serpente, que depois eclodirá com uma explosão de criminalidade cada vez maior; uma vez que o crime organizado no Brasil mantém-se internamente através da organização de bandidos nos presídios. O exemplo clássico da criação do PCC (Primeiro Comando da Capital) na década de noventa do século passado, deveria servir de lição para nossos governantes, o que não acontece. O PCC foi uma criação genuína do Estado brasileiro, no momento em que o governo paulista, por meio de sua administração penitenciária, isentou-se de tratar da organização dos presídios, deixando-os sob o controle de presidiários, organizados em torno de uma coletividade com nome e sigla oficial, para que gerenciasse o problema dos estupros e mortes nas celas, com a promessa de receberem telefones, bebida e mulheres. Em síntese, é o Estado brasileiro que gera o problema de seus presídios, seja pela falta de ingerência, pois não é prioridade do governo tal intervenção (é bem melhor investir em saúde e educação, do que investir em presídios, dizem os administradores); seja porque aparece como mais barato manter milhares de presos empilhados em celas diminutas, mantendo tão somente uma alimentação precária; do que investir em presídios e gastar dinheiro público montando megaestruturas, onde o preso possa ser reaproveitado através do trabalho ou do ensino.
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Diante do caos, explicar o que, governadora? |
No Brasil, nem sequer utilizam-se as soluções da política criminal do Estado liberal, como o aproveitamento de presos nas unidades prisionais para o trabalho industrial, na formação de mão de obra capitalista, como ocorre nos sistemas auburnianos e filadelfianos de gestão criminal; onde o preso é explorado no estabelecimento prisional como se fosse o trabalhador de uma fábrica. Apenas em algumas experiências, em unidades prisionais de Minas Gerais e no Paraná, é possível ver o emprego laboral do preso dentro da prisão, como uma forma de controle que o explora financeiramente, mas estabelece também um controle eficaz de sua disciplina e vigor internos, cumprindo-se o que dispõe a legislação.
Enquanto o Estado não assumir para si, como prioridade, não apenas a segurança pública, através de policiais armados e viaturas nas ruas; mas também o sistema carcerário, com profissionais bem pagos, estruturas adequadas e tratamento humano para os presos, cumprindo-se os direitos e os deveres estatais de assistência previstos na Lei de Execução Penal, será muito difícil evitar que novas cabeças sejam cortadas nas prisões, e mais crianças sejam queimadas dentro de ônibus. A sociedade civil, mediante seus representantes, já cobra diuturnamente dos governos que façam a sua parte, assumindo a reforma dos presídios não apenas como temática eleitoral, mas também como compromisso público, para evitar que novas tragédias aconteçam. Infelizmente, o inferno de Pedrinhas é o inferno de todos nós, localizado nos lugares mais obscuros de nosso inconsciente, aquele onde reside a ignorância e a alienação, tolhendo-nos da capacidade de fazer diferente ao escolher nossos governantes. Isso pode custar muito caro no futuro, se não acordamos agora! Como diria Nelson Mandela, falecido recentemente, em célebres e sábias frases:
“Uma nação não pode ser julgada
pela maneira como trata seus
cidadãos mais ilustres e sim pelo
tratamento dado aos mais
marginalizados: seus presos”