quinta-feira, 20 de novembro de 2014

MÉXICO: A violência do crime organizado mexicano ameaça derrubar o governo

Tem certas coisas que a gente pensa que acontecem somente em nosso país. Quando se fala da violência do narcotráfico no Brasil, na maioria das vezes pensamos que o horror do conflito entre policiais e traficantes nos morros cariocas, por exemplo, é um dos maiores do mundo. Esquecemos às vezes por mera ignorância  dos países vizinhos, ou que a medonha realidade criminal brasileira não é só do Brasil, mas da América Latina. Vide o México!

43 vidas assassinadas cruelmente,por motivos banais.
Recentemente descobriu-se que um ônibus, contendo 43 estudantes provenientes de uma escola na zona rural da província de Guerrero, que participavam do movimento estudantil mexicano, foi desviado da rota quando se aproximava da cidade de Iguala, local onde iam protestar contra o prefeito, José Luis Abarca, suspeito de ter ligações com o narcotráfico local. Após o desaparecimento dos jovens, descobriu-se semana passada que todos foram mortos, executados por integrantes do Guerreros Unidos, um dos centenas de cartéis de drogas que se espalha pelo México, após terem sido presos, levados a uma delegacia e entregues aos traficantes. Após o escândalo internacional do caso, o prefeito e sua mulher foram presos e a popularidade do atual presidente mexicano, Peña Nieto, despencou imediatamente de 67% para apenas 33% de aprovação popular, o pior registro de um mandatário no México nos últimos cinquenta anos.

Pelos detalhes do crime, investigados pela Procuradoria Geral da República, os jovens estudantes foram sequestrados e mortos com requintes de crueldade próximo a um lixão (muitos foram asfixiados, enquanto outros foram mortos a tiros) e seus corpos foram incinerados, para que o trabalho da Polícia fosse dificultado, na identificação dos corpos. Apesar disso, descobriu-se a trama macabra que resultou na morte dos estudantes e pode custar a cadeira da presidência do México. Ao saber que os estudantes estavam se aproximando da cidade em um ônibus, e que poderiam interromper um discurso da primeira-dama, Maria de Los Angeles Piñeda, o prefeito Abarca declarou a sentença de morte dos garotos, conforme mostraram as investigações, sendo capturadas conversas telefônicas em que o prefeito ordena aos policiais que abordaram o ônibus, que "se livrassem deles para sempre", tendo o prefeito recebido uma chamada telefônica horas após, com a confirmação dos algozes, de que os estudantes "tinham virado pó".

Nas ruas do México,a revolta de familiares dos estudantes.
A violência criminal do narcotráfico mexicano é uma das piores do mundo, com o histórico de crueldade de seus integrantes, com execuções sumárias e cenas de decapitações vistas à exaustão. Mas o que assusta mais na política criminal mexicana é o comprometimento de alguns setores da Polícia, do empresariado e do próprio governo com os narcotraficantes, em casos flagrantes de corrupção e clientelismo. Tudo leva a crer que Aranda, um megaempresário do ramo da mineração, chegou à política através do apoio de chefões locais do tráfico de drogas, após a desativação dos antigos cartéis da região e a formação de um novo cartel, agora liderado pelo Guerreros Unidos. Em um país onde o IDH é comprometido pelos desvios de recursos públicos e um presidente com pose de galã de novela, mas zero de iniciativa, é preocupante ver o quanto a situação mexicana pode servir de (mau) exemplo para as políticas de repressão penal pensadas em outros países, como o Brasil.

O ex-prefeito de Iguala e sua mulher:presos após a revelação das mortes.
Ao menos um ponto em comum existe entre o caso mexicano e o brasileiro: a corrupção. Assim como no Brasil, no México os lucros exorbitantes produzidos pelo narcotráfico geram dinheiro suficiente para subornar, muitas vezes com sucesso, vários agentes públicos. É um esquema piramidal de corrupção que pode atingir desde policiais a magistrados. Porém, sua faceta  mais medonha encontra-se na classe política, representada por indivíduos demagogos, que diante dos meios de comunicação bradam a plenos pulmões seu compromisso com a "Guerra às Drogas", mas nos bastidores tem o apoio financeiro e político de megatraficantes. Através de uma bancada vinculada aos seus interesses no Parlamento, os grandes traficantes de drogas permanecem ocultos e impunes a frente de uma indústria poderosa, que custa anualmente milhares de vidas, principalmente daquelas relacionadas com a criminalidade violenta associada ao tráfico, tal como a execução dos infelizes estudantes de Guerrero.

Ao menos diante de uma tragédia de tamanha magnitude, o que pode se tirar de lição desse horrível episódio é que a morte dos estudantes serviu para mobilizar a população mexicana e a fortalecer seus movimentos sociais, que impulsionaram fortes protestos que culminaram com a pichação das paredes da residência presidencial. Se a cruzada antitráfico desenvolvida no mandato do presidente anterior, Felipe Calderón, não rendeu sucesso, parece que ao menos o ímpeto do movimento estudantil e a morte de seus 43 representantes, hoje considerados mártires, não cedeu um milímetro. Que ao menos a  sociedade mexicana possa se mobilizar para a efetiva mudança, antes que seja tarde. Afinal, seus jovens filhos mortos merecem ao menos uma revolução social, como justa homenagem.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

DESPREPARO: Entrar numa delegacia para levar tiro de policiais. É isso que se chama de "servir e proteger"?

Despreparo e paranoia parecem ter sido a combinação perversa que resultou na morte do médico Ricardo Assanome, em uma delegacia no ABC paulista. Assanome, médico pediatra, de 27 anos, tinha ido a delegacia apenas para relatar um acidente de trânsito, e estava registrando um boletim de ocorrência no 2º Distrito Policial de Santo André, quando se iniciou um tiroteio dentro da delegacia, iniciado pelos próprios policiais, e que resultou na morte do pediatra.

No funeral de Ricardo Assanome, a revolta.
Segundo a versão apurada pela Polícia de São Paulo, tudo não passou de um mal entendido, produzido pelo agente de comunicações, André Bordwell da Silva, que, ao ver um indivíduo de capacete, correndo apressado para dentro da delegacia, pensou estar sendo vítima de um ataque de bandidos e abriu fogo dentro da própria delegacia, contra o suposto invasor. O médico Ricardo acabou sendo atingido mortalmente por uma das balas disparadas pelo policial. Na ocasião, para piorar as coisas, num tumulto generalizado, outros investigadores, colegas do agente André, tiveram que disparar contra o próprio companheiro de trabalho para pará-lo, findando os disparos quando o principal atirador foi ferido em meio ao tiroteio.

Descobriu-se que o pivô da confusão era apenas um policial militar à paisana, que pressentindo a ação de bandidos enquanto trafegava sua motocicleta, na iminência de um assalto, saiu em disparada em direção à delegacia, perseguido por seus algozes, quando entrou esbaforido dentro da unidade policial pedindo ajuda. Ao invés de encontrar o auxílio e a proteção policial de que tanto necessitava, o referido PM acabou sendo recebido por uma saraivada de balas.

Além da instauração de inquérito policial, com a prisão em flagrante do agente André Bordweel, pela acusação de homicídio doloso,  após sua saída do hospital, também foi instaurado processo administrativo na Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo. Recorda-se que André foi acusado de homicídio com dolo eventual, uma vez que, sendo um agente público armado, dentro de uma repartição repleta de pessoas, principalmente de populares, que vão à delegacia em busca de atendimento, o policial assumiu o risco de ser responsabilizado penalmente por sua conduta, ao efetuar disparos de arma de fogo dentro do local. Naturalmente a defesa do agente de polícia deverá entrar com a tese da legítima defesa putativa, uma vez que o autor do fato acreditava piamente que estava sendo vítima de uma agressão, que se constatou imaginária. 

O problema maior no drama que resultou na morte do médico Ricardo Assanome não é nem tanto a franca responsabilidade de um agente público diante da morte de um inocente, a quem deveria proteger; mas sim o despreparo flagrante de policiais no estado de São Paulo, principalmente em termos psicológicos. A capital paulista e a grande São Paulo são a expressão mais caótica da urbe, com a insegurança e violência criminal típicas de regiões com grande circulação de pessoas e capital. Nessa realidade, é comum policiais trabalharem com altos graus de stress, o que atrapalha seu senso de julgamento em momentos de crise e os levam a ações precipitadas, diante de situações de emergência que envolvem um rápido discernimento. 

Muitos dirão, portanto, que se tratou de uma fatalidade, o triste episódio que envolveu a morte do médico paulista em uma delegacia do ABC. "Poderia ter acontecido com qualquer um", poderiam dizer alguns, "azar o dele", poderiam dizer outros mais insensíveis, ou, simplesmente, poderíamos estar afirmando que o médico estava na hora errada e no momento errado e pouco haveria de ser feito. É lamentável que se pense assim. Quando uma sociedade legitima sua polícia, habilitando o Estado a municiar agentes armados para que estes realizem o policiamento, está se pressupondo que tais agentes agirão com responsabilidade, valendo-se da força somente nos casos previstos em lei, de forma moderada e proporcional, principalmente ao se tratar de uma força armada. O grande problema é que, aliado ao despreparo para usar armas, muitos policiais acabam compartilhando a visão do senso comum onde, diante de uma agressão iminente, a melhor postura é sempre se defender atacando, "metendo bala", como se diz no jargão policial. Isso equivale a situações em que o policial não se diferencia em nada do cidadão comum, atemorizado, pois se revela tão e simplesmente um indivíduo com medo, que no desespero pode fazer coisas absurdas, como disparar uma arma num ambiente onde, naturalmente, ele deveria se sentir seguro. Afinal, pessoas procuram uma delegacia ou posto policial para se sentirem seguras, com a convicção de que serão bem atendidas e protegidas, e não o contrário. Infelizmente, a conduta do policial civil do 2º Distrito acabou depondo totalmente contra essa espectativa.


Acredito que somente com uma devida formação nas academias de polícia, e, principalmente, com um forte monitoramento e treinamento sistemático e periódico de policiais, simulando-se situações de perigo e stress com cobrança de pronta reação adequada, será possível se ter um efetivo policial mais qualificado, que não se deixe levar por situações hipotéticas de violência, que acabam redundando na perda inútil de vidas inocentes. Soma-se a isso o quadro de insegurança nas próprias unidades policiais paulistas, vítimas em anos recentes de ações criminosas de organizações como o PCC (Primeiro Comando da Capital), com ataques de bandidos a delegacias, o que deve ter se tornado objeto de temor do policial André Bordwell, que acabou produzindo o triste fato, que ganhou as manchetes nacionais quando aconteceu.

domingo, 4 de maio de 2014

BARBÁRIE: O linchamento do Guarujá e a internet como fomento da multidão delinquente

Quando o filósofo inglês, Thomas Hobbes, escreveu o Leviatã, em  1651, ele estabelecia que "o homem era lobo do próprio homem". Isso implicava em dizer que, num estado de natureza, em que os homens se encontrassem nas condições mais primitivas, eles não seriam diferentes de outros animais selvagens, e, diante da necessidade ou seduzidos por seus impulsos, poderiam cometer as maiores violências e atrocidades.

Foi num retorno ao estado de natureza que eu concebi o triste episódio envolvendo a jovem dona de casa, Fabiane Maria de Jesus, de trinta e três e anos, no subúrbio de  Morrinhos, na pequena cidade de Guarujá, no estado de São Paulo. Fabiane foi linchada na rua por populares, acusada de um crime que não cometeu, que sequer pode ter existido e que ela nem sabia que estava acontecendo. Fabiane tinha uma vida pacata, junto com o marido e as duas filhas, religiosa, costumava carregar uma bíblia com a foto das filhas guardadas em seu interior,  e talvez seu único erro (se é que dá pra se falar nisso), no fatídico dia 3 de maio, que causou a sua morte, foi ter pintado seus cabelos de loiro!!!

Aconteceu que, no mesmo dia em que Fabiane saiu à rua para se dirigir ao supermercado, após sair da casa de uma amiga, circulava nas redes sociais da cidade a notícia sem fundamento de que uma mulher de cabelos cacheados e loiros, com aparência semelhante a de Fabiane, estaria andando pela cidade, sequestrando crianças, matando-as e as utilizando em rituais de magia negra. A comoção do fato divulgado na internet espalhou-se pela comunidade, e diante de sentimentos primários de medo, ódio e insegurança, descrentes da ação do Estado e da efetiva ação policial na captura da misteriosa criminosa, dezenas de moradores de Morrinhos resolveram sair às ruas e fazer justiça por conta própria. No seu caminho, encontraram Fabiane, e no caminho dela, ela veio encontrar a morte, da forma mais estúpida e brutal possível.

Confundida com a suposta abusadora de crianças, Fabiane foi pega de surpresa e não teve sequer condições de reagir, atingida na boca antes mesmo que pudesse pedir socorro, sendo agredida repetidamente e violentamente por uma multidão ensandecida de pessoas que a espancaram, mediante pedradas, socos e pontapés. Socorrida ainda com vida e levada a atendimento médico, Fabiane entrou em coma com traumatismo craniano e não resistiu aos ferimentos, morrendo no hospital.

A localidade do Guarujá nem de longe hoje espelha o que era nos anos oitenta do século passado, quando milhares de turistas dirigiam-se para lá, no litoral paulista, como um badalado balneário frequentado por surfistas, estrelas de TV e jogadores de futebol. Atingida pela crise econômica no setor de turismo, nos últimos anos, o Guarujá viu aumentar uma população de periferia e baixa renda, com baixa escolaridade, e responsável pela mão de obra subalterna no setor de serviços nos hotéis e restaurantes ainda presentes na região.

A agressão sofrida por Fabiane espelha bem o quadro de histeria e insegurança coletiva que vem atormentando a sociedade brasileira nos últimos anos, principalmente na periferia dos grandes centros urbanos. No mês anterior, a imagem de um adolescente negro, espancado e despido, acorrentado  no meio da rua por uma trava de bicicleta numa barra de ferro no Rio de Janeiro, revelou ao Brasil e ao mundo o quanto esse sentimento de insegurança e temor ao crime levou parte da população a adotar soluções extremas, ilegais, degradantes e terrivelmente banalizadoras da violência. Junto a isso, somou-se o apoio mesquinho dos meios de comunicação, quando a telejornalista do SBT, Rachel Sheherazade, aumentou a polêmica ao comentar na TV com desdém a situação do jovem negro espancado, justificando a conduta de seus algozes, sugerindo aos que reclamavam da agressão a adoção do lema: "adote um preso".

Ora, suscitar a violência como a citada apresentadora de telejornal suscitou nos meios de comunicação, ou a ação irresponsável de pessoas na internet divulgando falsos crimes e criando um crime de alarde, a ponto de mobilizar pessoas nas ruas a promover linchamentos, apenas me faz recordar os primeiros capítulos da obra de Hobbes, que após quase quatrocentos anos ainda ganha impressionante atualidade. Jogando para fora as regras mínimas de civilidade, as populações da periferia, carentes de políticas públicas do Estado, ainda tímidas aos mais pobres como educação e segurança, acabam por promover a autotutela, promovendo justiciamentos precipitados, atacando pessoas erradas, ou mesmo simplesmente valendo-se de uma violência que não lhes é autorizado utilizar. O Estado moderno e constitucional surgiu para mediar e conter conflitos, aplicar a lei e promover a Justiça, resguardando-se de princípios de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando o contraditório, e nunca se valendo da força bruta sem fundamento algum. No momento em que uma comunidade não confia no Estado e na sua polícia, não procura os agentes públicos para apurar denúncias, e saí às ruas por conta própria atrás de culpados, vivemos um tempo difícil e tenebroso de insegurança causada não apenas pela criminalidade comum e tradicional nos grandes centros urbanos, mas de medo do outro, numa terrível situação de termos de nos proteger uns dos outros.

Onde está a civilização e onde fica a barbárie, em episódios como esse, como o do linchamento da pobre Fabiane de Jesus? Qual a responsabilidade dos meios de comunicação nisso, e como responsabilizar autores anônimos na internet, ocultos, que mediante visões radicalmente equivocadas e reaçonárias pregam um discurso e uma política do ódio, que acabava por insuflar parte da população? Ao invés de prevenir crimes, esses arautos da discórdia na verdade estão transformando cidadãos inocentes em criminosos, preparando o ovo da serpente, e são poucos os que podem se opor a isso, dentro da ignorância do senso comum a iludir mal informados e mal cuidados cidadãos da periferia. Mesmo com a eventual responsabilização dos assassinos de Fabiane, temo que novas Fabianes possam aparecer por aí, talvez tão ou mais violentadas, como foi a triste dona de casa paulista. Em todo e qualquer linchamento, está na hora de olharmos intimamente para a nossa consciência, e pregar a Justiça no lugar da revolta, e ao pensar na primeira, lembre-se de nunca atirar a primeira pedra!

quarta-feira, 19 de março de 2014

VIOLÊNCIA DO CRIME ORGANIZADO E VIOLÊNCIA POLICIAL: Da morte do tenente Leidson na UPP, até o corpo da trabalhadora Claúdia Ferreira, arrastado pelas ruas numa viatura da PM, não foi arrastado somente o corpo da ASG, mas sim toda a credibilidade da Polícia do Rio de Janeiro.

Tenente Leidson:morto na Vila Cruzeiro(retirado de ipunews.com.br)
Com muita comoção acompanhei nos últimos dias, na mídia jornalística e nas redes sociais, comentários sobre a trágica morte do Tenente da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Leidson Acácio, de 27 anos, subcomandante da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) do Complexo de Vila Cruzeiro, alvejado na cabeça quando fazia patrulhamento no local, no dia 13 deste mês, ao ser surpreendido por traficantes armados. Rapaz de origem humilde, criado com dificuldades pelas família e que superou a pobreza e as tentações da marginalidade, morando na periferia do Rio até chegar ao oficialato na PM, o policial Leidson, com seu passado e sua história de vida, precocemente tirada pela violência do tráfico, foram retratados à exaustão por seus amigos, familiares e companheiros nas redes sociais, comovendo todo o Brasil. Na rede social Whatsapp, por exemplo, pude ver em alguns grupos e comunidades, comentários repassados por outros grupos, com forte teor corporativo, onde mais uma vez se colocava o policial militar numa condição de vitimização, injustiçado por uma sociedade, uma legislação e um governo que não lhe compreendiam, uma vez que o "pessoal dos direitos humanos" (sempre eles), seriam os responsáveis diretos pela morte de Leidson, uma vez que tais militantes impediriam o trabalho dos profissionais da segurança, ao "defender bandidos", enquanto que "verdadeiros homens de bem" eram alvejados e mortos, no cumprimento do dever. Subliminarmente, foi repassada nessas redes sociais uma mensagem tão exaustivamente difundida por um alienante senso comum, de que todos aqueles que criticam os abusos da polícia (em especial da Polícia Militar), no trato com os bandidos, estariam sendo, no mínimo, omissos ou coniventes com a criminalidade, não permitindo que os "bons policiais" varressem as ruas, colocando os perversos criminosos no seu devido lugar; ou seja, na cova. Por conta disso, sem ter como se defender, indefesos policiais seriam alvo fácil de seus inimigos no crime, vindo a ocorrer mais uma morte de policial em serviço, como a de Leidson, engrossando as estatísticas.

Cena terrível: a morte de Cláudia (diariodopoder.com.br)
Por outro lado, não obstante estar sensibilizado com a morte do tenente da Polícia Militar carioca, e solidário com sua família, também não pude deixar de lamentar outra triste morte a ocupar as cifras mórbidas da violência urbana no Rio de Janeiro. No caso, foi a horrível morte da auxiliar de serviços gerais, Cláudia da Silva Ferreira, uma mulher negra de 38 anos, moradora da periferia, na localidade de Congonhas, baleada por uma guarnição da Polícia Militar, ao ser confundida com uma bandida. Socorrida às pressas na viatura dos policiais que a abordaram e alvejaram, Cláudia foi levada ao hospital sem a menor condição de proteção e sem o menor respeito, conduzida desmaiada como um pedaço de carne, pendurada no carro daqueles que deveriam "servir e proteger",  até despencar do veículo e ser arrastada pelo meio das ruas do Rio de Janeiro, por ao menos 250 metros. A cena forte e dantesca, da viatura dos policiais em alta velocidade, arrastando o corpo da mulher pela rua, foi flagrada e captada pela câmera de um cinegrafista amador e enviada para as telas dos meios de comunicação em todo o Brasil. A barbárie da cena só não é maior que o descaso tão recorrente com o ser humano em comunidades de periferia urbana, onde vivem em sua maioria pretos e pobres, acossados pela criminalidade, e que são confundidos todos os dias pela polícia com marginais, a ponto de levar um tiro a pobre trabalhadora Cláudia, tão e simplesmente porque estava carregando uma garrafa de café!

Aqui é que se cruzam as narrativas paralelas, envolvendo duas vidas tolhidas pela violência, em lados opostos. Temos de um lado o Estado com sua truculência e seu aparelho repressor, na intervenção contra delitos e delinquentes, contando com policiais abnegados como Leidson Acácio, que acabaram sendo atingidos por balas dessa guerra urbana contra o crime; e do outro lado temos a sociedade, em sua faceta menos abastada, nos bairros pobres e periféricos ocupados por trabalhadores subalternos, como a infeliz Cláudia Ferreira, massacrada por agentes do Estado que deveriam figurar como seus protetores e não como seus algozes.

Tristeza e revolta dos colegas no enterro de Leidson (brasil247.com)
Dentre as postagens críticas enviadas por policiais, amigos ou colegas de farda de Leidson nas redes sociais, encontramos uma em que o interlocutor questiona se seria dada tanta publicidade à morte do tenente da PM na UPP, como foi dada ao pedreiro Amarildo, morto por policiais militares também dentro da área de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Insinua-se que Amarildo, por ser acusado de estar vinculado ao tráfico, teria um fim merecido, como se fosse possível justificar a morte cruel de qualquer um que seja, debaixo de porradas de cacetetes, coturnos e fuzis, e depois ter seu corpo escondido, como quem esconde lixo ou um animal morto. A brutalidade dos crimes realizados por policiais militares contra Amarildo não tem justificativa, assim como não se justifica ter a cabeça fulminada por balas enquanto se encontra em serviço, como aconteceu com a também brutal morte do tenente Leidson Acácio. Coloquemos os pingos nos "is".

Cláudia:mais uma vítima da violência policial (blogueirasfeministas.com)
O que se dizer da morte de Cláudia Ferreira? Ela também mereceu morrer? O problema da morte da auxiliar de serviços gerais é o problema de milhares de cidadãos pobres que moram na periferia das grandes cidades: estar o tempo todo no lugar errado nas horas erradas. Confundida com uma criminosa ou mesmo acusada de estar "dando cafézinho a traficantes", Cláudia também teve um fim que não merecia. Ao mesmo tempo em que encontro postagens nas redes sociais enaltecendo a figura de Leidson, criticando as organizações de defesa dos direitos humanos, e mesmo apresentando um certo ressentimento da corporação fardada com a população do morro, eu não encontrei qualquer mensagem esdrúxula desse mesmo segmento justificando a conduta atrapalhada dos policiais que atiraram em Cláudia,  e que a arrastaram pelas ruas, sob o olhar público de milhares de pessoas. O corpo desfalecido da faxineira Claúdia, dilacerado no concreto em pele, ossos e dignidade, não encontrou ainda quem o justificasse, mas não deixa de ser paradoxal o pensamento comum na deturpada subcultura policial de que matar um PM em serviço é uma injustiça, mas um PM matar um civil por engano é somente um "vacilo". É por conta dos vacilos de policiais como os que mataram Claudia que as estatísticas oficiais estão cheias de casos macabros, envolvendo truculência, brutalidade policial e abuso de autoridade, e não o contrário. Os registros de mortes de policiais em serviço são inversamente proporcionais à quantidade de casos de violência policial, mas isso não vem ao caso. O que é mais importante é constatar que tanto Leidson quanto Claúdia, em lugares, funções e papéis sociais diferentes, foram vítimas do mesmo sistema, um sistema que destrói tanto a vida de policiais quanto de moradores de áreas periféricas.

A meu ver, Leidson e Cláudia são vítimas.Vítimas de uma política criminal fajuta e anacrônica, que além de não dar resultados eficazes em termos de policiamento, não consegue a adesão da população. As UPPs foram criadas no governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, para tentar dar fim à violência ostensiva do crime organizado que dominava os morros, e ao mesmo tempo forjar uma nova imagem da PM, vista com tanta desconfiança e temor por membros da comunidade, visto o histórico de truculência, tortura, e trocas de tiros entre policiais e bandidos, com balas perdidas que sempre alvejavam os moradores dos bairros mais pobres. Em sua primeira aparição as UPPs pareciam um sucesso, com reportagens na mídia e altos índices de popularidade, que levaram, inclusive, o governador à reeleição. Entretanto, a ausência de continuidade da intervenção social do Estado, com políticas públicas que sedimentassem as UPPs, acabaram por colocar tudo a perder. Primeiro foi o escandaloso caso de Amarildo, imensamente divulgado não só no Brasil mas no mundo inteiro, seguindo-se de novos confrontos entre policiais e traficantes, nas áreas outrora ocupadas e que voltaram a se tornar um teatro de guerra. A morte do tenente Leidson é apenas mais um capítulo dessa saga manchada com sangue e violência. A manutenção da subcultura excludente do corporativismo policial e a permanência da desconfiança entre policiais e moradores foi a fórmula cujos ingredientes combinados resultaram na morte de Cláudia Ferreira. Afinal, confundir morador do morro ou favela com bandido é comum no cotidiano da atividade policial, que atua num sistema penal cuja seletividade leva a identificar pobres como criminosos. O problema é quando, com base nessa confusão, pessoas são alvejadas inadvertidamente por guarnições policiais, e transportadas como sacos, arrastadas pelas ruas, como aconteceu na triste morte da auxiliar de serviços gerais, baleada enquanto segurava uma garrafa de café.

A despedida dos familiares de Cláudia (g1.globo.com)
Sem tomar partido nem do tráfico e nem de policiais criminosos, eu prefiro adotar nos casos relatados a mesma ótica adotada pelo cineasta João Moreira Sales, em seu famoso documentário Notícias de uma Guerra Particular. Na película é demonstrando tanto o cotidiano de policiais quanto de moradores de favelas, traficantes e vítimas da violência policial. No final do filme, em cenas emblemáticas, vemos o enterro de um adolescente, vítima da violência policial e das balas perdidas entre policiais e bandidos, como também vemos o funeral de um policial militar, com direito a salva de tiros e todas as honras militares. A violência decorrente da ausência e ineficácia estatal atinge tanto agentes do Estado quanto populares, sem distinção. Aos familiares de Leidson e de Cláudia eu só desejo consolo, nesse momento tão difícil da perda de entes queridos. Ao Estado e a seus governantes eu desejo consciência e vergonha na cara, com a participação intensa de representantes nobres da polícia e da sociedade civil, para que sejam formuladas políticas de policiamento que ao mesmo tempo protejam policiais em serviço, assim como protejam trabalhadores, moradores das áreas ocupadas. Estamos todos no mesmo barco e do jeito que a canoa vem sendo guiada, com a displicência governamental de antes, tudo indica que essa embarcação tem tudo pra afundar. Tomara que eu não esteja dentro dela quando isso acontecer!

sábado, 22 de fevereiro de 2014

CRIME: O chamado "Caso Izânia" é mais do que uma trama complexa, digna de romances policiais.

Descanse em paz, Izânia: mais uma jovem vida tristemente ceifada.
É muito duro ter de escrever sobre casos criminais trágicos, que envolvem como vítimas pessoas que você conhece. Sofri isso no ano passado, ao retratar aqui neste blog a violenta morte da advogada Vanessa de Medeiros. Vanessa foi minha aluna na faculdade, e saber de seu falecimento tão violento, espancada até a morte pelo ex-namorado em um motel foi algo extremamente triste, além de revoltante. Como se não bastasse, no começo deste ano, oriunda da mesma faculdade, a estudante de direito Izânia Bezerra também foi morta, desta vez em uma estrada carroçal, vitimada por tiros disparados contra seu pescoço e cabeça dentro do veículo de seu ex-marido, o tenente da PM Iranildo Félix, acusado de, na semana anterior, ter matado um lutador de MMA na frente da academia onde este trabalhava. Em comum com as duas mortes, os seguintes dados: ambas eram jovens e bonitas, na casa dos trinta e poucos anos; tiveram término de relacionamento amoroso com policiais militares, mas estavam na companhia deles quando foram mortas; eram estudantes ou formadas em direito, oriundas da mesma instituição de ensino.

É óbvio que para muitos as informações acima que comparam os dois crimes são mera e triste coincidência. Mas não é de coincidências que quero escrever sobre esse horrível crime neste blog. Na verdade quero chamar a atenção do leitor para outro fator: a violência contra a mulher. Não estou aqui falando da violência óbvia, bárbara, que matou essa duas jovens mulheres. Falo de uma violência simbólica, de gênero, como antecedente de toda a explosiva agressão que essas moças sofreram e que serviu de crônica anunciada de suas mortes. Será que elas poderiam ter outro destino?

Sem entrar aqui nas vicissitudes de um complexo caso, somente sei que Izânia, testemunha-chave de um inquérito de outro homicídio, onde seu ex-marido era suspeito, iria depor no dia seguinte ao de sua morte. No jogo de manipulações em que mulheres jovens, de origem humilde, acabam por se envolver, parece que a falecida estudante de direito viu-se manipulada por um jogo muito mais perigoso do que se pensava. Segundo a imprensa, em relatos de seus familiares, diz-se que ela mantinha um bom relacionamento com seu ex-companheiro, com quem tinha dois filhos; mas não ficou claro qual era o temperamento de seu ex-marido a ponto de forçar uma superação. O que se sabe é que ele se encontra afastado da Polícia Militar há mais de um ano por problemas de saúde (seria acometido de uma forte depressão), mas no dia da morte de Izânia, quando, segundo ele, dois homens de capacete em uma motocicleta, atiraram contra seu veículo, Iranildo, além de estar armado, usava um colete à prova de balas. Por que tanto cuidado assim ao sair de casa, a ponto de levar uma arma que lhe é proibido usar enquanto estiver de licença médica? E o emprego do colete? Será que ele já sabia que seria vítima de um atentado? E por que entrar numa estrada carroçcal, ao invés de dirigir em uma via principal? São tantas perguntas que devem estar fazendo os delegados destacados para o inquérito da morte da estudante, que as respostas não cabem sequer nesse espaço.

O que é curioso é que a motivação de todos esses delitos converge para o mesmo fator passional: ciúmes ou possessividade de ex-companheiros. No caso da morte do lutador Luiz de França Trindade, que antecedeu a de Izânia, mas que lhe é correlata, um dos motivos apontados para a tese da acusação contra o Tenente Iranildo é de que este estivesse enciumado de sua atual namorada, desconfiando de algum flerte desta com o lutador assassinado. Confirmando-se essa tese, teremos mais um caso de homens possessivos, que em nome de uma suposta honra aviltada ou orgulho ferido, são capazes de matar, enlouquecidos pela paixão. Se as paixões criam relacionamentos, elas também os destroem de forma trágica, principalmente numa região onde o patriarcalismo e o machismo predominam, pois ex-esposas ou companheiras passam a ser tratadas como propriedade e não como seres humanos.

Izânia e Vanessa morreram por motivos diferentes, mas ambas terminaram suas vidas nas mãos de seus ex-companheiros. Mais uma vez eu enfatizo um detalhe que já havia constatado na morte da advogada Vanessa: a condição de policial militar de ambos não serviu para protegê-las, quando, na verdade, pressupunha-se que esses agentes da lei fossem capazes de honrar o juramento que fizeram em suas corporações. Ao invés disso, se não mataram suas vítimas, as deixaram morrer, e isso deve ser profundamente triste também para os dois. Numa espiral de violência, parece que um ciclo de agressões gerou mais agressão, e na bola de neve que se tornou o caso da morte de Luiz de França, fatos macabros parecem corroborar a tese de que se trata de um caso bem difícil de elucidar.

Como professor de direito permito-me ceder espaço à ampla defesa e o contraditório, que venha o resultado das investigações e seja instaurada a ação penal cabível. Encontrando-se ou não os culpados, eu somente sei que uma eventual responsabilização do atual suspeito não trará Izânia de volta, para tristeza de seus familiares e colegas de classe. Que ao menos a justiça seja feita, então! Honremos a memória dessa pobre moça assassinada, encontrando seus algozes.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

MOVIMENTOS SOCIAIS: Seriam os "rolezinhos" fator gerador de delitos, ou é mero racismo e preconceito de classe?

Após as manifestações populares de junho de 2013, falou-se ao final do ano passado que os movimentos sociais tinham esmorecido, o Movimento Passe Livre teria perdido sua força e mesmo as manifestações no Rio de Janeiro contra o governador Sérgio Cabral tinham deixado de ser manchete. Parecia que os Black Blocs tinham saído de cena. No momento em que não despertaram mais a atenção midiática, diversos movimentos populares que continuam acontecendo no Brasil deixaram de ser noticiados porque não geram mais lucro para as emissoras de TV, desaparecendo do noticiário. A impressão que se dava na opinião pública é que o mais do mesmo tinha retornado na tediosa rotina resignada do brasileiro e que o "gigante " tinha adormecido de novo.

Rolezinho no Shopping Interlagos(foto Joel Silva.Folhapress)
Entretanto, como os movimentos sociais são fluídos, como fluída é a modernidade líquida dos tempos globalizados atuais, como diz o sociólogo polonês Zigmunt Baumman, na verdade em sua fluidez os movimentos apresentaram novas formas de manifestação e novos atores, e tais manifestos surgiram nos templos de consumismo da modernidade capitalista, nos palácios de consumo onde as classes sociais mais abastadas procuram gastar seus recursos financeiros em troca de bens e conforto. Os shopping centers passaram a ser o novo teatro de operações de multidões de jovens, em sua maioria negros e pobres da periferia das grandes cidades, que de forma ordenada, através das redes sociais, não ocupam somente a praça pública, mas também as praças de alimentação de inúmeros shopping, em várias cidades do país.

Não demorou para que a reação repressiva do Estado tardasse a acontecer. Esses encontros de jovens, que acabam gerando confusão e medo dos mais ricos, fechando lojas e alertando legiões de seguranças para afugentar indesejáveis ocupantes desses templos de consumo, findaram por fazer com que certos governantes dessem declarações das mais esdrúxulas; uns condenando tais encontros de jovens, invocando a necessidade de manutenção da ordem dentro de estabelecimentos privados, mas abertos ao público; outros, minimizando sua importância a ponto de desprezá-los. Juristas posicionaram-se de maneiras variadas, cada um defendendo seu ponto de vista de acordo com o referencial mais ou menos positivista de cada um.

Mas afinal, do que se tratam os "rolezinhos". Na acepção popular, "rolé" é uma gíria adotada pela juventude da periferia, frequentadora de bailes funk, que designa simplesmente o ato de passear; ou seja, "dar uma volta", perambulando por lugares com alta movimentação de pessoas. Assim, rolés podem ser dados em parques, praças, praias e até em lugares fechados, como shopping centers. Por que então tanta preocupação das autoridades com condutas que parecem, aparentemente, ser tão corriqueiras? Talvez a resposta esteja no significado político que tais comportamentos passaram a ter.

Encontros cotidianos de jovens em lugares como shopping centers ou lojas de conveniência são acontecimentos banais no cotidiano das sociedades urbanas, e não tem nenhum significado político ou relevância jurídica. Há pelo menos vinte anos, na década de noventa do século passado, quando o Natal Shopping foi inaugurado na cidade de Natal, por exemplo, como o primeiro dos grandes shopping centers que a cidade viria a ter depois, era comum ver na recém instalada e luxuosa praça da alimentação, o encontro de jovens de formação universitária ou secundarista, vestidos com roupas despojadas, mas de grife, formando uma pequena comunidade de rockeiros e skatistas com seus bonézinhos, que saíam do cursinho ou da faculdade, e iam direto para o shopping center. Tais encontros chegaram até a ser tema de reportagem nos meios de comunicação, tamanha a pitoresca cena de ver um gueto urbano de jovens, que todos os dias, vestidos do mesmo jeito, frequentavam a praça da alimentação. Até aí não havia problema algum com a polícia ou com os seguranças do estabelecimento, e não se falava de violação da ordem. O problema é que, duas décadas depois, o Brasil globalizado, com uma Constituição amadurecida e um Estado democrático forte, que colocou, em sequência, um sociólogo, um operário e uma ex-guerrilheira na presidência, parece não ter escapado das armadilhas sociais próprias de uma sociedade de classes.

O verdadeiro significado político dos "rolezinhos" não está na sua prática, mas sim na repressão estabelecida a esses movimentos. Agora não são mais jovens de classe média alta, curtidores de rock e vestidos com a camiseta de sua banda, recém-saídos da faculdade ou do colégio particular, egressos de suas bem localizadas casas, que ocupam o shopping center, em busca de encontrar sua rapaziada do skate ou para frequentar lojas de discos e eventos de histórias em quadrinhos ou  de RPG. Os jovens que são reprimidos pela polícia na entrada dos shoppings, e lá são proibidos de entrar, são em sua maioria garotos negros de periferia, com baixo poder aquisitivo e sem condições de comprar boa parte das mercadorias e serviços que são prestados nos shoppings. Eles, muitas vezes, entram nesses lugares propositadamente mal vestidos, com a única intenção de chocar os transeuntes mais abastados, como uma forma de reverter a violência simbólica que sofrem, e que foi tão bem definida na obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Os jovens de 2014 que aterrorizam os proprietários de shoppings, são jovens que se organizam pelas redes sociais na internet, combinam de se encontrar em grande número, muitas vezes com o único objetivo de chocar os outros, numa forma de protesto, uma vez que se trata majoritariamente de um grupo maciço de jovens negros de periferia, ocupando um espaço habitualmente frequentado por jovens brancos, de melhor poder aquisitivo.

Como explicar tamanha repressão? No Shopping Itaquera, em São Paulo, onde começaram essas manifestações, chegou-se a reunir seis mil participantes, e todos sofreram forte repressão policial por parte da Polícia Militar. Alegou-se o medo dos consumidores habituais do estabelecimento, que se sentiram amedrontados com a presença de tantos jovens amontoados, mal vestidos e supostamente mal encarados, que poderiam sugerir que o shopping seria vítima de algum "arrastão" de bandidos ou conduta semelhante. Entretanto, em todos os lugares que presenciaram essas manifestações, com exceção de casos isolados, de desentendimentos de jovens com a PM e sua imediata detenção sob acusação de desacato ou resistência, nas delegacias de São Paulo pouco ou nenhum procedimento foi instaurado por acusação de roubo, furto ou qualquer outro crime contra o patrimônio ou contra a pessoa dentro do shopping, por conta dos "rolezinhos".

Para alguns juristas, a concessão de liminares que os proprietários de shoppings obtiveram em algumas cidades, nos últimos dias, visa proteger o direito de ir e vir e o direito de propriedade. Entretanto, no mesmo ambiente jurídico, é possível escutar vozes dissonantes, como do professor da Universidade de Brasília, Alexandre Bernardino, que considera que a repressão aos "rolezinhos" é "claramente uma manifestação de preconceito em relação a um determinado grupamento social que se caracteriza por pobreza e por negritude". A ministra da Igualdade Racial, Luiza Barros, também condenou a repressão aos "rolezinhos", dizendo que os jovens que participaram desses eventos são vítimas de discriminação racial. Os defensores das práticas repressivas, por sua vez, alegam que a proibição dos encontros desses jovens de periferia nos shopping centers, visa prevenir delitos; uma vez que nessas aglomerações é comum encontrar indivíduos mal intencionados, que só querem provocar tumulto, e se aproveitam da multidão para praticar delitos, como depredações e pequenos furtos. Mas como prevenir proibindo antes, sem nem ter a certeza de que delitos realmente acontecerão?A emergência de um direito penal de periculosidade baseado apenas em estereótipos, no lugar de um de culpabilidade, baseado na responsabilidade penal por um delito praticado e não cogitado, a meu ver não parece ser a decisão mais acertada a ser proposta por meio de um entendimento jurídico. Peca também por ser questionável, a tese da validade jurídica do perigo abstrato no lugar do perigo concreto, afirmando que é lícito, penalmente falando, prevenir a entrada desses jovens pobres nos estabelecimentos, pois assim a intervenção penal antecede uma efetiva situação de perigo, onde já se sabe que uma lesão a um determinado bem jurídico (no caso, o patrimônio) vai realmente acontecer. Enfim, diversas teses podem ser aplicadas no caso dos participantes dos "rolezinhos", levando a se desenvolver no direito argumentações das mais reaçonárias até as mais progressistas.

Acredito que o jovem de periferia tem sim, o seu direito a entrar onde quer que seja, uma vez sendo o estabelecimento comercial de acesso ao público. É ele um cidadão, assim como um consumidor, mesmo que não venha a comprar nada, ou mesmo que vá até um desses templos de consumo apenas para se manifestar ou encontrar amigos. Numa democracia, é comum jovens se manifestarem, cabendo a polícia tão somente garantir a ordem, evitando excessos e proporcionando segurança não apenas para os consumidores das lojas, mas também para os próprios jovens manifestantes, permitindo a eles que exerçam um direito, de estar em qualquer lugar e fazer o que bem entendem, que não seja proibido pela lei. Afinal, qual é a lei que proíbe a entrada de jovens negros ou pardos, bem ou mal vestidos, que num anacrônico ideal lombrosiano, tem cara de marginais?

O que choca nos rolezinhos é a sociedade ter uma classe média branca e consumista que se sente confrontada com a imagem de jovens negros, de uma classe social mais baixa, invadindo um lugar que consideram supostamente seu. Não tenho dúvida de que, como todo movimento de massa propagado pelas redes sociais, os rolezinhos tendem a acabar, perdendo a graça após uns meses, arrumando os jovens outras formas de se manifestar. Que assim seja! O que não pode é transformar tais episódios em casos de polícia, tão somente como pretexto para acobertar o racismo e o preconceito de classe tão embutidos no imaginário de parte da população brasileira. Deixa a molecada dar o seu rolé, meu amigo!!

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

SISTEMA PRISIONAL: Na barbárie do Presídio de Pedrinhas, em termos de direitos do preso, o Brasil é um Maranhão!

"O horror, o horror!". Essa célebre frase empregada por Marlon Brando ao interpretar o personagem do Coronel Kurtz no filme de guerra, Apocalipse Now, poderia muito ser empregada a quem quer que tivesse um mínimo de sensibilidade e estômago fraco, ao ver o vídeo apresentado por detentos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, mostrando em uma rebelião três presos mortos, com as cabeças decepadas. Como se isso não fosse suficiente, na dantesca cena de observar num pátio ensanguentado um cenário de morte e destruição, cheio de corpos esfaqueados e sem cabeça, viu-se fora dos muros da prisão, mas sob a ordem de prisioneiros, outro fato escabroso envolvendo o caos do sistema penal brasileiro. Na semana passada, na capital maranhense, São Luís, um ônibus foi queimado, e dentro dele, ardeu em chamas a menina Ana Clara Souza, de 6 anos de idade. A ordem para atear fogo no ônibus partiu  de membros do "Bonde dos 40", uma das facções criminosas que domina os presídios do Maranhão, e dela também partiu o ataque aos presos cujas cabeças ficaram dependuradas sobre seus corpos, na banalização de uma barbárie real que supera, em muito, os filmes de terror.

Historicamente, o Brasil trata de forma desumana os seus presos. Foi somente na reforma penal da década de oitenta do século passado, num clima de abertura política, com o surgimento da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), que o país passou a se comprometer formalmente com normas internacionais sobre direitos do preso, que já vigoravam no mundo há pelo menos três décadas, desde a aprovação das Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, aprovadas no 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado em Genebra, no ano de 1955. Entretanto, mesmo com os avanços legislativos, prevaleceu sempre a visão de que o preso, caso se encontrasse nessa situação, estava assim por que merecia, numa velha e conservadora visão retributiva, anterior mesmo ao positivismo, de considerar o infrator como um pecador, um indivíduo mal, que escolheu o crime por livre arbítrio e, portanto, deveria pagar da pior forma pelo que fez, vivendo o inferno já aqui na terra, largado em uma cela, apodrecendo no sistema prisional.

Morte e destruição no Maranhão.(jornale.com.br)
Foi com base nessa concepção, aliada a uma profunda desigualdade social, fruto de uma aguda divisão de classes na organização da sociedade brasileira, que os presídios brasileiros foram criados e desenvolvidos, encarcerando um contingente maciço de indivíduos marginalizados, pertencentes em sua maioria aos setores menos favorecidos e mais explorados ou excluídos economicamente da sociedade. A letra da música já é conhecida, para quem tem o mínimo conhecimento de sociologia ou história do Brasil. Mas, o que ainda choca é que, após 25 anos da promulgação de uma Constituição que ainda pretende  ser a mais avançada de todas as Constituições nacionais, num Estado Democrático de Direito com uma presidente que já foi presa política, nós testemunhamos que nada ou pouco mudou na medonha realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros. A realidade do Maranhão, mostrada exaustivamente pelos meios de comunicação na última semana, é apenas um capítulo da epopeia de terror pelo que passam diariamente milhares de encarcerados, centenas de agentes prisionais, uma multidão inteira de familiares de presos, além de juízes, promotores e defensores públicos vinculados à execução penal, que no seu ofício tem que lidar com algumas das mais desumanas violações de normas protetoras do indivíduo e da dignidade humana.

Em Pedrinhas são 173 mortes desde 2007 (noticias.uol.com.br)
O Maranhão é emblemático acerca disso porque há décadas o estado é governado por uma oligarquia. A família do senador José Sarney, representada pela filha deste e governadora, Roseana, teve mais do que desvelado pelos meios de comunicação o seu descaso para com o sistema carcerário em sua região. Nas despesas do governo maranhense, nos últimos anos, pôde-se ver o quanto de menos o governo investiu em melhorias no sistema carcerário e o quanto de mais investiu no bem estar do próprio governante, através de valores empregados na compra em licitações de itens considerados supérfluos, tais como (pasmem) lagostas e whisky para o banquete cotidiano do Palácio dos Leões, sede do governo maranhense . Num estado da federação com um dos piores IDHs (índice de desenvolvimento humano) do país, e uma população ribeirinha vivendo em palafitas, agora o Maranhão ostentou mais uma cifra negra de sua economia e governo em frangalhos, demonstrando porque o seu sistema carcerário é um emblema da vergonha nacional. Enquanto o clã Sarney, por meio de seus governantes, esbalda-se com lautas refeições à base de lagostas e camarões, 5.517 indivíduos presos comem um alimento rejeitado até por cães, num lugar cujos presídios só podem abrigar, no máximo, 3.124 pessoas.

Falar de presos não dá voto. Ao lecionar a disciplina de Execuções Penais para estudantes de direito nas faculdades, eu costumo afirmar isso para meus alunos, assim como afirmou o juiz Douglas de Belo Martins, responsável pelo relatório encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça, revelando a deplorável condição dos presídios maranhenses, em especial da caótica situação de Pedrinhas. A partir desse texto, encaminhado ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, no final de dezembro do ano passado, e divulgado à imprensa, podemos presenciar qual é a rotina de horror por que passam todos aqueles vinculados ao sistema prisional do Maranhão. É um relato claro da total ausência do Estado, da ignorância ou falta de atenção e respeito dos governantes com a situação das unidades prisionais, em lugares cuja estrutura dos presídios está tão dilacerada que já se consegue ver celas sem grades, práticas de torturas e assassinatos, além de crimes sexuais.

A imagem é forte, mas a dor na consciência é pior ainda.
Num cenário com agentes penitenciários terceirizados a uma empresa privada, sem que o o poder público faça concursos para atrair pessoal, com salários nada convidativos próximos ao salário mínimo e sujeitos a todo tipo de corrupção, não é de se surpreender porque os presídios maranhenses estão numa situação tão calamitosa. Por conta da influência das facções criminosas contidas dentro dos presídios, cujos líderes e integrantes caminham livremente em seu interior sem celas,  perambulando impunes por dentro destas unidades prisionais, é possível conceber que em tais locais entra de tudo: telefones celulares, bebidas, drogas, armas, dinheiro e prostituição. Há também casos pavorosos de estupros coletivos, uma vez que a estrutura dos presídios maranhenses é tão desorganizada, que não é regulada a visita íntima, prevista como um direito do preso, conforme o art. 41, inciso X da Lei de Execução Penal. Nesses casos, como ninguém é de ninguém e os presos às vezes tem relações sexuais com suas companheiras sem sequer possuir uma cortina, não é raro que líderes de facções criminosas exijam de seus subordinados que entreguem suas mulheres para servir às sevícias sexuais dos presos mais poderosos, sob pena de serem exterminados, por estrangulamento, golpes de barra de ferro ou por facadas. As regras das principais facções, "Bonde dos Quarenta" e "Primeiro Comando do Maranhão",  também preveem que o preso novato, ao entrar no estabelecimento, tenha que obrigatoriamente escolher a qual facção pertence ou servirá, sob pena de ser massacrado e ter sua cabeça exposta como troféu, tal como aconteceu com um dos presos vistos na horrível foto abaixo, um mero ladrão de pneus, que jogado no inferno de Pedrinhas, ao não aceitar fazer parte de um grupo criminoso, acabou sendo morto com requintes de crueldade.

Sobra responsabilidade também para o governo federal, apesar de não ser o gestor direto do sistema prisional desenvolvido nos estados da federação. O governo petista de Dilma Rousseuf assume um ônus político, ao ser o responsável indireto pela desastrosa gestão política do problema prisional no Maranhão, uma vez que a governadora Roseana Sarney é do PMDB, partido do vice-presidente, Michel Temer, e é ela apoiada localmente pelo partido da presidente. Além disso, o governo federal pouco fez nos últimos anos para denunciar, ou ao menos intervir no Maranhão, diante de uma situação que não é nova, e já informada antes, por inúmeras vezes, por órgãos de defesa dos direitos humanos; membros do Conselho Penitenciário, do Conselho Nacional de Justiça, além de comunicados da Vara de Execução Penal.

Resultado da gestão prisional no Maranhão: 3 cabeças decepadas.
Por falar em direitos humanos, enquanto a sociedade brasileira considerar que falar de direitos humanos para presidiários é defender, na verdade, mordomia para bandidos, viveremos uma situação de barbárie cada vez pior, cultivando um ovo da serpente, que depois eclodirá com uma explosão de  criminalidade cada vez maior; uma vez que o crime organizado no Brasil mantém-se internamente através da organização de bandidos nos presídios. O exemplo clássico da criação do PCC (Primeiro Comando da Capital) na década de noventa do século passado, deveria servir de lição para nossos governantes, o que não acontece. O PCC foi uma criação genuína do Estado brasileiro, no momento em que o governo paulista, por meio de sua administração penitenciária, isentou-se de tratar da organização dos presídios, deixando-os sob o controle de presidiários, organizados em torno de uma coletividade com nome e sigla oficial, para que gerenciasse o problema dos estupros e mortes nas celas, com a promessa de receberem telefones, bebida e mulheres. Em síntese, é o Estado brasileiro que gera o problema de seus presídios, seja pela falta de ingerência, pois não é prioridade do governo tal intervenção (é bem melhor investir em saúde e educação, do que investir em presídios, dizem os administradores); seja  porque aparece como mais barato manter milhares de presos empilhados em celas diminutas, mantendo tão somente uma alimentação precária; do que investir em presídios e gastar dinheiro público montando megaestruturas, onde o preso possa ser reaproveitado através do trabalho ou do ensino.

Diante do caos, explicar o que, governadora?
No Brasil, nem sequer utilizam-se as soluções da política criminal do Estado liberal, como o aproveitamento de presos nas unidades prisionais para o trabalho industrial, na formação de mão de obra capitalista, como ocorre nos sistemas auburnianos e filadelfianos de gestão criminal; onde o preso é explorado no estabelecimento prisional como se fosse o trabalhador de uma fábrica. Apenas em algumas experiências, em unidades prisionais de Minas Gerais e no Paraná, é possível ver o emprego laboral do preso dentro da prisão, como uma forma de controle que o explora financeiramente, mas estabelece também um controle eficaz de sua disciplina e vigor internos, cumprindo-se o que dispõe a legislação.

Enquanto o Estado não assumir para si, como prioridade, não apenas a segurança pública, através de policiais armados e viaturas nas ruas; mas também o sistema carcerário, com profissionais bem pagos, estruturas adequadas e tratamento humano para os presos, cumprindo-se os direitos e os deveres estatais de assistência previstos na Lei de Execução Penal, será muito difícil evitar que novas cabeças sejam cortadas nas prisões, e mais crianças sejam queimadas dentro de ônibus. A sociedade civil, mediante seus representantes, já cobra diuturnamente dos governos que façam a sua parte, assumindo a reforma dos presídios não apenas como temática eleitoral, mas também como compromisso público, para evitar que novas tragédias aconteçam. Infelizmente, o inferno de Pedrinhas é o inferno de todos nós, localizado nos lugares mais obscuros de nosso inconsciente, aquele onde reside a ignorância e a alienação, tolhendo-nos da capacidade de fazer diferente ao escolher nossos governantes. Isso pode custar muito caro no futuro, se não acordamos agora! Como diria Nelson Mandela, falecido recentemente, em célebres e sábias frases:

“Uma nação não pode ser julgada
pela maneira como trata seus
cidadãos mais ilustres e sim pelo
tratamento dado aos mais
marginalizados: seus presos”